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Captar relatos de vidas LGBT na velhice: as entrevistas

2. Processo de Recolha de Dados 1 Definição da Amostra

2.2 Captar relatos de vidas LGBT na velhice: as entrevistas

Dado que o objetivo passava por se aprofundar o conhecimento das realidades destas nove pessoas, recorremos à aplicação de entrevistas semiestruturadas, a fim de conseguirmos captar o olhar destes atores, relativamente aos seus processos de envelhecimento, mediante as suas orientações LGBT.

Decidimos aqui premiar o papel da entrevista, em função dos objetivos do estudo formulados, pelo impacto que esta pode ter, quando bem executada, permitindo-

65 nos adentrar pela intimidade e perceção do mundo pelos olhos do entrevistado. Esta subjetividade que daí provém permite-nos compreender as noções destes, as suas realidades, de um modo mais íntimo e profundo. Tal, feito com cautela, permite-nos desviar do mero senso comum. Como sugere Pais: “A objectividade não tem,

necessariamente, de ficar amarrada à obsessão do mensurável e do quantificável. Com efeito, é tão perigosa a ilusão subjectivista quanto a ilusão objectivista”. (Pais,

2001:109)

Esta fase inicial, e em conjunto com a realização das entrevistas aos indivíduos em questão, passou também pela exploração de seis regulamentos internos de lares públicos e privados, a fim de conseguirmos obter uma visão mais precisa da realidade que vigora ao nível das instituições relativamente à manifestação de uma orientação sexual diferente, à questão da vivência da sexualidade, e ao direito da intimidade e da privacidade. Através da realização simultânea das entrevistas, tornou-se mais fácil de se perceber e interpretar esses mesmos regulamentos nas instituições em que algumas entrevistas ocorreram. Destas leituras, o que foi possível observar e traduzir a este nível foi que esta é uma realidade que se alterna consoante a estrutura da instituição.

A exploração destes seis regulamentos internos de lares públicos e privados durou menos tempo (leia-se, dois meses) do que o período de entrevistas, o qual decorreu, mais ou menos, durante 4 meses, e ocorreu tanto no domicílio, como nas instituições dos respetivos. Estas realizaram-se entre o distrito de Setúbal e o distrito de Lisboa. As entrevistas apresentaram sempre um formato semiestruturado (ver anexo II), conduzindo-se as mesmas com temas e questões abertas, para servir de fio condutor, balizando a conversa, evitando-se a perda de informação ou o desvio do ambicionado. Deste modo, é facultado espaço ao entrevistado para se expressar livremente nos seus termos, que disponha de uma certa liberdade para poder desenvolver as respostas ao que lhe era perguntado.

O guião utilizado foi composto por cinco grandes temas, que fossem comuns a todos os entrevistados, sendo que o guião foi adaptado para o caso dos indivíduos institucionalizados e para o caso dos indivíduos não institucionalizados. Os dois primeiros grandes temas eram iguais nos dois casos, sendo que a partir desse ponto apenas divergem na sua estrutura. Neste sentido, o primeiro grande tema era referente aos seus percursos, trajetórias e retratos de vida, sendo que aqui interessava abranger os planos pessoal, familiar, escolar, profissional e saúde das vidas dos indivíduos. O

66 segundo grande tema diz respeito às perceções que os entrevistados tinham sobre as instituições, sendo que para este tema contavam as suas imagens, perceções, representações sobre as mesmas, e as fontes para a construção dessas «imagens».

A partir daqui, os restantes três grandes temas foram adaptados aos casos dos indivíduos institucionalizados e aos casos dos indivíduos não institucionalizados. Nomeadamente, no primeiro caso, dos indivíduos institucionalizados, o terceiro grande tema refere-se ao processo de escolha da institucionalização, em que interessava aferir o tipo de decisão ocorrida, os fatores que influenciaram, e o peso da orientação sexual. Por sua vez, no caso dos indivíduos não institucionalizados, o terceiro grande tema diz respeito à possibilidade de uma futura institucionalização, em que contam as suas perceções acerca do quotidiano institucional, a forma como vivenciariam o dia-a-dia, a importância dos profissionais da instituição e a importância da privacidade e intimidade. No quarto grande tema, no caso dos indivíduos institucionalizados, diz respeito aos seus quotidianos institucionais, em que para tal interessava abordar pontos como os seus desafios, medos ou dificuldades, a forma como vivenciavam o dia-a-dia e a importância dos restantes utentes e profissionais. Por sua vez, no caso dos indivíduos não institucionalizados, este quarto grande tema refere-se ao possível processo de escolha dos indivíduos no que diz respeito à institucionalização, em que para tal contaram os pontos da tomada de decisão, os fatores que influenciaram essa decisão, e o peso da orientação sexual dos indivíduos.

Por fim, no quinto grande tema, tanto para um caso como para outro, este refere- se à sexualidade, sendo que aqui divergem nos pontos abordados em cada caso. No caso dos indivíduos institucionalizados, foram abordados pontos como a importância da sexualidade, a importância do respeito pela privacidade e intimidade, o papel da instituição, as noções dos comportamentos sexuais de risco, e os tipos de relações experienciadas15. No caso dos indivíduos não institucionalizados, foram abordados pontos como a importância da sexualidade, as noções dos comportamentos sexuais de risco, e os tipos de relações experienciadas. Apesar do referido, é também possível consultar os dois tipos de guiões nos anexos, nos anexos, nomeadamente, o anexo II.

A escolha destes temas e deste formato de entrevista (semiestruturada) deve-se à noção que a entrevistadora tem de que cada indivíduo representa um caso diferente e

15

Aqui referimo-nos a tipos de relações no sentido do número de parceiros que estas tinham, nomeadamente, monogamia, bigamia, poliamorosas, etc..

67 que, como tal, apresentam singularidades que interessam captar. Deste modo, se se recorresse a um guião fechado e se se o aplicasse de forma linear, como se os seniores selecionados fossem todos iguais, estaríamos a homogeneizar todas as situações, deixando de fora essas singularidades que interessam captar. Como tal, um formato semiestruturado permitirá que se possa explorar, de uma forma flexível e aprofundada, os aspetos que se considerem mais relevantes, apesar do guião elaborado pelo entrevistador. A escolha deste tipo de entrevistas é motivada pela razão de que, assim, será possível observar-se os indivíduos e as “(…) leituras que fazem das próprias

experiências, (…) os ponto de vista presentes, (…) [e a] reconstituição de (…) experiências ou de acontecimentos passados”. (Quivy e Campenhoudt, 2005:96)

Estes métodos permitem, como Godoy (1995:62) demonstra, usufruir do ambiente natural onde os entrevistados residem como uma fonte direta de dados, obter bastante informação devido ao seu carácter descritivo, bem como obter o verdadeiro significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida, captar essa subjetividade. Esta escolha prende-se também pela noção de que pode “produzir resultados científicos de

acentuado interesse, muitos dos quais com o potencial de acrescentar inovação”.

(Gomes, 2015:91) O objetivo é enfatizar “os episódios significativos, a sequencialidade

dos acontecimentos em contexto, a totalidade do indivíduo” (Gomes, 2015:92). Por sua

vez, tal é possível porque existe um quadro de significações comum que é partilhado entre os indivíduos: “Entrevistados e entrevistadores exibem determinadas pertenças sociais e posicionam-se em contextos de influência específicos, sendo que estes elementos são fundamentais para a compreensão daquilo que ocorre na relação de entrevista. O resultado da entrevista nasce, pois, desse encontro específico e das interacções nele criadas”. (Gomes, 2015:97)

Através das entrevistas, o discurso ganha poder, no sentido em que apresenta “sentidos derivados dos propósitos das situações sociais” (Duarte, 2014:208), os quais partem dos indivíduos. Ou seja, apesar de haver uma visão pessoal e uma significação própria acerca de uma determinada questão, o que interessa é captar as significações dos seniores LGBT entrevistados (e não as nossas significações pessoais), pois estas variam conforme as interpretações e sentidos que as pessoas atribuem ao que os rodeia. Como tal, dado que o discurso “possibilita, através do estudo da linguagem, os entendimentos

que permeiam a vida do idoso em questão – plena de experiências e valores” (Duarte,

68 dados muito importantes para se captar o conhecimento da realidade na qual o idoso está inserido. As entrevistas, após a sua transcrição e análise, traduzem-se em perfis captados que permitem observar a sua diversificação e semelhança (algo visível adiante), sendo que interessa que estes casos se apresentem como casos analisadores, como casos significativos que sejam expressivos do peso da orientação sexual no processo de envelhecimento dos indivíduos.

Este método, como Ana Brandão explica, “(…) faz, pois, parte de uma tradição

que procura dar conta das influências socioculturais naquilo que o indivíduo é e faz, inserindo-se na linha das metodologias qualitativas de investigação social, sobretudo quando é usada como técnica principal de recolha de dados”. (Brandão, 2007:1) Ao

recorrermos a esta técnica, portanto, premiamos a visão do entrevistado face aos acontecimentos que o marcaram mais, as suas perceções, as suas noções sobre o que o rodeia, nomeadamente, o peso da orientação sexual no seu processo de envelhecimento e tudo o que lhe está inerente.

Um aspeto importante para a compreensão da vida das pessoas, neste caso dos seniores LGBT, passa não só por nos focarmos no peso da orientação sexual não- heterossexual, ou pela sua identidade de género, mas também por fazermos um levantamento da sua história. O peso do passado, do que já viveram até ao momento da entrevista, das experiências que os marcaram de algum modo, é a mais-valia que nos servirá para apurarmos esses dados e transformá-los em conhecimento científico. Como Almack sugere, “An important aspect of understanding the lives of older LGBT people

is not just about their differing sexual orientation or gender identity but also their differing history. Their past becomes important when exploring hopes, fears, and concerns around later life and end of life care when they may be in a position of receiving care from people who they fear might not respect or even recognize their differing sexual orientation or gender identity”. (Almack et al., 2015:3) Torna-se,

portanto, em material de primeira mão, que nos permite enriquecer o estudo.

A história de vida narrada durante a entrevista, permite-nos captar as singularidades dos indivíduos e das suas histórias, através da subjetividade que exprimem com o entrevistador. Cada história de vida representa a vida de um indivíduo, a sua singularidade, pelo que cada uma destas adquire um certo valor muito próprio. Como Brandão sublinha “(…) uma história de vida é sempre individual e única – a

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experiência. (…) contar a própria história é uma forma de reviver os eventos que se recorda e é também um re-experimentar os sentimentos e as emoções que lhes estão associados”. (Brandão, 2007:1-2) É precisamente este “re-contar” e este “re-

experimentar” que confere o valor pessoal a cada história de vida, que caracteriza cada singularidade apresentada por cada entrevistado. Toda esta subjetividade adquire, assim, importância sociológica na execução de um estudo.

Apesar do referido, qualquer sociólogo tem presente a noção de que a subjetividade tem de ser bem gerida para não passar a barreira do senso comum. Todavia, neste caso, é a subjetividade que confere o valor às singularidades captadas. De facto, como Brandão elucida, “(…) uma história de vida não constitui – não pode

constituir – um relato objectivo e exaustivo dos eventos ocorridos na vida do narrador, nem exterior a eles. (…) é um relato dotado de uma afectividade particular justamente porque é através dele que o actor se reconta e se reafirma como entidade distinta das demais”. (Brandão, 2007:2) Exigir uma objetividade que nunca será possível obter por

parte do entrevistado, traduz-se num desvalorizar do material que obtemos em primeira mão, a subjetividade.

De acordo com Brandão, a subjetividade subjacente ao método da história de vida é visto pelo lado científico como algo que rasa o senso comum e que depende da memória dos entrevistados para traduzir fielmente o que nos é contado no momento da entrevista. Esta memória, se for distorcida, poderia, assim, enviesar os resultados, traduzindo-se como um método menos fiável do que a recorrência aos métodos mais objetivos, como o questionário, que depois se traduz em dados representativos. Todavia, como a autora evidencia, o mesmo pode ocorrer com os métodos mais objetivos: “(…)

ao narrar a sua história, o actor sempre omitirá, voluntária ou involuntariamente, aspectos e eventos que poderiam ser relevantes do ponto de vista sociológico. Porém, não existe razão objectiva para considerar que o mesmo não aconteça quando se recorre, por exemplo, ao questionário. Também aqui se está dependente da memória e da vontade do inquirido, da sua capacidade de compreensão das questões que lhe são colocadas e das suas representações do mundo”. (Brandão, 2007:4) Neste sentido,

deve-se reconhecer o valor científico do senso comum, sem o confundir com a mera explicação comum.

Na verdade, se refletirmos sobre o significado da palavra subjetividade, notamos que esta diz respeito ao indivíduo, àquilo que este pensa, que este perceciona, que este

70 reflete face ao que o rodeia ou ao que experienciou. Uma vez que esta subjetividade remete à individualidade, e à ciência interessa maioritariamente a coletividade e não os casos individuais, para que possam ser traduzidos em representações estatísticas, a subjetividade (encontrada em métodos como a história de vida, entrevistas, etc.) é remetida à categoria de método menos fiel e menos rigoroso. “Em geral, as acusações

dirigidas ao estudo de casos articulam-se em torno de argumentos que remetem para questões de (ausência de) representatividade, fiabilidade e rigor. Estas acusações partem da fé num modelo de ciência positivo e dedutivo, no seio do qual a singularidade adquire um estatuto problemático. (…) Tácita ou explicitamente, assume-se que o conhecimento científico procede por dedução e o actor é encarado como peão mais ou menos ignorante das determinantes da sua conduta”. (Brandão,

2007:3)

Uma vez mais, se refletirmos no papel da subjetividade, facilmente percecionamos que esta, ainda que remeta à individualidade e à singularidade dos indivíduos, é igualmente espelho da existência e influência da sociedade no indivíduo: “(…) a experiência subjectiva nunca é exclusivamente individual: ela traduz também

uma experiência comum (…). Se devemos acreditar que até no nosso acto mais individual e solitário a nossa sociedade está presente (…), é ainda através da nossa consciência e da nossa experiência individuais que ela se manifesta. Através do individual é possível chegar à compreensão do modo como o universal se manifesta na singularidade, pois, (…) estudar o social individualizado é estudar a realidade social na sua forma incorporada, interiorizada, permitindo compreender como é que a realidade “exterior”, através da experiência socializadora, se faz corpo.” (Brandão,

2007:5) Portanto, o papel da subjetividade adquire mais valor, traduzindo maior rigor e fidelidade, uma vez que não remete somente ao indivíduo, mas sim à sua existência também espelhada coletivamente.

Portanto, até aqui, é possível extrair que a subjetividade também é representativa, não estatisticamente, mas dos diversos mundos existentes, traduzidos pelas entrevistas e pelas histórias de vida a que recorremos enquanto metodologia eleita para o presente estudo. “A representatividade dos casos analisados – e, portanto, o

valor sociológico dos dados recolhidos – não assenta, nem pode ser avaliada em termos meramente estatísticos, procedimento característico das metodologias quantitativas. São as suas qualidades teóricas e metodológicas – em particular, a sua

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ligação à natureza do fenómeno investigado – que determinam o seu valor em termos de representatividade – no caso, sociológica –, não a sua relação quantitativa com um universo que, aliás, não é, muitas vezes, passível de ser determinado”. (Brandão,

2007:5) Apesar da falta de representação estatística, que também não se prendia com o foco do estudo, estas metodologias permitem a tradução (valorizada) das singularidades dos indivíduos que, no presente caso, interessavam captar.

As singularidades de cada indivíduo, como tal, uma vez que traduzem a presença do coletivo, permitem o alcance de generalização de teorias, de reflexões, e de elucidação sobre certos fenómenos e/ou problemas sociais: “Cada caso pode, assim, ser

visto como uma espécie de protótipo, caracterizando se a singularidade pela concentração do global no local e sendo entendido como um facto, uma espécie, ou uma coisa caracterizadora e não como um traço particular de um facto, de uma espécie, ou de uma coisa. (…) A generalização, nos estudos de casos, refere-se, então, não à extrapolação das conclusões para um universo, sob a forma de enumeração de frequências de resultados, mas mais propriamente à expansão e generalização de teorias.” (Brandão, 2007:6) Neste sentido, a subjetividade obtida através da

metodologia escolhida mantém um papel primordial no que diz respeito ao presente estudo.

O poder das histórias de vida está presente na forma como os diferentes indivíduos contam as suas histórias, na forma como se aproximam e distanciam de tantos outros sujeitos que, sem saberem, partilham momentos chave no decorrer das suas vidas, experiências e histórias com que se identificam, mesmo que se tratem de desconhecidos. Segundo Pais, “As potencialidades do método biográfico radicam,

sobretudo, num valor de subjectividade que permite que a história de vida exista e circule: a via de subjectividade (…) é a que possibilita reconstruir o alcance objectivo de uma consciência individual, de grupos ou de época.” (Pais, 2001:107) Através

destas, bem como da partilha de experiências e de momentos marcantes, pode-se, assim, permitir evidenciar pormenores, problemas, noções de uma realidade, fenómenos que, de outra forma, poderiam passar despercebidos: “(…) em jogo está também a

possibilidade de tornar visível o que (…) nem sempre é empiricamente detectável.”

(Pais, 2001:107) Estas ferramentas traduzem-se, então, numa fonte rica de dados que se revelam bastante importantes para o estudo.

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