ANEXO 3 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS
A.: Ah, sim É a tal história, uma desgraça nunca vem só E no meu caso acho que não
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parou sequer. Depois de ter tirado o meu curso, arranjei um trabalho num hospital. O 281
meu primeiro trabalho na área. Desde que comecei a tirar o curso que tinha arranjado 282
coragem para me assumir novamente. Claro que nada havia mudado não é, os 283
pensamentos e os tabus eram os mesmos. Mas consegui arranjar companheira. Mais 284
uma vez, ali era posta de lado. Os homens repudiavam-me e humilhavam-me como 285
podiam, tinham conversas sobre mim, ao pé de mim, em tons jocosos, e as mulheres 286
afastavam-se de mim com medo de serem associadas a mim como minhas companheiras 287
e sofrerem também o preconceito. Tive apenas dois amigos. Aliás, amigas. Duas 288
enfermeiras. Conheci a primeira pouco tempo depois de ter começado a exercer, que era 289
também um pouco mais velha do que eu, e anos mais tarde, já eu tinha quase 40 anos, 290
conheci esta segunda amiga, sendo ela mais nova do eu uns 15 anos, salvo erro. 291
Actualmente uma delas já não é viva, a primeira amiga que fiz, e foi quem me ajudou 292
no fim desta relação, e a outra, a segunda e mais nova, é quem ainda me ajuda no meu 293
dia-a-dia. Mas bem, passado um tempo de estar a trabalhar e de bastante sozinha, uma 294
172 mulher da parte do bar começou a aproximar-se de mim, o que estranhei. A falar 295
comigo com frequência, a convidar-me para um café aqui, outro ali, e começámos a sair 296
mais vezes juntas. Claro que começou a haver burburinho, mas eu já estava habituada e 297
ela também não se pareceu incomodar com isso. Um dia perguntei-lhe se não tinha 298
medo das represálias por sair comigo e ela respondeu-me que não, que sabia quem eu 299
era muito bem, e que apesar de eu ser uma pessoa sozinha e falada por outros, que era 300
isso que a atraía. Só no fim percebi porquê, mas pronto, foi isso que ela disse. Nisto 301
começamos a namorar. Havia pouca intimidade, não da minha parte, mas da dela, mas 302
pronto, sempre respeitei isso porque cada um é como é e portanto respeitei. De repente, 303
pessoas que eu não conhecia de lado nenhum começaram a vir falar comigo, a dizer-me 304
que ela não era flor que se cheirasse, que não era lésbica coisa nenhuma, que só se 305
queria aproveitar de mim… etc etc etc. Nestes entretantos, faço amizade com aquela 306
primeira enfermeira que era mais velha. Nisto, eu e a [nome da namorada] começámos 307
a ter uma relação mais séria e contei-lhe o que se dizia sobre ela só ter interesse por 308
mim e tudo mais. Ela quis provar-me que não e para me mostrar o quão séria eu era para 309
ela, propôs-me irmos viver juntas. Claro, eu fiquei muito surpresa, mas a ideia de ter 310
finalmente alguém a amar-me de verdade me agradou muito, alguém que me aceitava 311
como eu era e me compreendia. Nem estranhei! E deixei-me levar! Entretanto 312
começamos a fazer planos para nos juntarmos e ela diz-me que tinha problemas com a 313
casa dela, que não podíamos viver lá porque tinha de sair de lá, porque não era dela, era 314
arrendada ou algo assim, e o senhorio queria mudar o contrato, bem, não sei, uma 315
história muito mal contada, vendo bem sem ter o sentimento a toldar-me a visão, mas na 316
altura estava com os sentimentos à flor da pele, claro que acreditei e nem quis saber. 317
Propus-lhe então irmos viver juntas na minha casa! Tinha dois quartos, duas casas de 318
banho, uma cozinha e uma sala, uma varanda e uma despensa. Pronto, era uma casa que 319
não era de muitas divisões, mas era ampla. Dava para vivermos bem ali as duas. E assim 320
foi. Ela mudou-se, começámos a fazer a nossa vida a dois, a adaptar um bocado as 321
nossas rotinas, e depois de uns dois meses juntas, a nossa vida íntima começou a… a 322
esmorecer, vá. Não é que tivéssemos relações todos os dias, mas havia alguma 323
frequência. E ao fim desse tempo começou a diminuir. Resolvi falar com ela, porque 324
comecei também a vê-la assim mais… mais… menos presente, percebe? Andava mais 325
na lua, mais distraída, não sei, diferente. Nisto decidi falar com ela, um dia já perto da 326
hora do jantar, preparei tudo e quando ela chegou, que nesse dia cheguei mais cedo, 327
pedi-lhe para se pôr mais à vontade, para se sentar à mesa, e comecei a falar com ela. 328
173 Expliquei-lhe o que me apoquentava, o que me ia na alma, e nisto ela diz-me que 329
andava assim porque andava com problemas no trabalho e que lhe queriam fazer a 330
folha, ou seja, entalá-la para a dispensarem, pronto. Que se sentia mal, humilhada, mal 331
tratada, que gozavam com ela… mas sem nunca me dizer o porquê, qual a razão disso. 332
E eu, que toda a vida passei por isso, pensei e pensei no que ela me dizia, e resolvi 333
perguntar-lhe se por acaso o motivo para isso não seria eu. Ou seja, se por ela ter 334
assumido uma relação comigo, se andava a ser perseguida e gozada por isso. Porque lá 335
está, havia muito tabu ainda, era das piores coisas que uma pessoa podia revelar ser. Ela 336
não quis olhar para mim, começou a chorar, e não me respondia. E eu percebi. Percebi 337
que era por minha causa, senti-me mal e impotente, frustrada por ver que uma pessoa de 338
quem gostava tanto, que amava daquela forma, não estava feliz por minha causa, por 339
estar comigo, que sofria com isso em silêncio. Era por isso que supostamente a queriam 340
pôr dali para fora, porque ela agora era uma ameaça. Uma lésbica num local de trabalho 341
de mulheres, imagina o pânico que se sentia ali? Tinham todas medo de serem 342
associadas à “fufa” de serviço. Ridículo, mas é verdade. Lá conseguimos falar um 343
pouco e perguntei-lhe o que ela pensava fazer, o que queria, que ideias tinha, o que é 344
que eu podia fazer para a ajudar… Bom, ela lá desenvolve e diz que já tinha pensado em 345
sair dali, que tinha um grande amigo que trabalhava na Suíça (que por acaso eu nunca 346
tinha ouvido falar, mas pronto, podia acontecer), e que tinha calhado falar com ele ao 347
telefone a semana passada, e lhe explicou por alto o que se passava e que ele lhe tinha 348
dito que a podia ajudar a encontrar outro trabalho lá, porque conhecia muita gente e 349
tinha muitos amigos, e então podia ajudá-la, mas que ela tinha de ir viver para lá. Eu 350
fiquei assim em choque, não é, não se ouve isso assim de supetão e se fica tranquilo e 351
muito compreensivo. Comecei a equacionar tudo. Se ela ia, o que eu fazia, onde ficava a 352
nossa relação, o que ia acontecer… tudo! E perguntei-lhe: “Então e nós? O que 353
pretendes fazer? Sabes que te amo, que faço tudo por ti. Se não estás bem nem feliz,
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quero que o sejas. Seja onde for. Mas gostava de não te perder.” E ela responde-me:
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“Eu sou feliz contigo, mas não aqui. Fazes tudo por mim… virias comigo para a Suíça? 356
Podíamos começar do zero lá, ser felizes.” E bem, aquela possibilidade não me tinha
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passado pela cabeça. Tinha pensado na possibilidade dela ir, do ficar sem ela, mas não 358
ir. Não porque não fosse possível, apenas porque não me passou mesmo pela cabeça 359
essa possibilidade. Ou o facto dela querer tanto que eu fosse com ela, que a fazia feliz a 360
esse ponto! E eu disse: “Queres mesmo que vá contigo? E o que faço à casa? Se vamos 361
viver na Suíça não posso manter duas casas, não consigo! E o trabalho? O que eu faço
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no meu caso? Tenho trabalho lá para mim? Meu deus… tanta coisa!” E era, era muita
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coisa! Estava tão assolada com aqueles pensamentos! O que eu ia fazer à minha vida? Ia 364
mesmo fazer aquilo? Estava em pânico! E ela diz-me: “Sim, também há para ti! 365
Vendemos tudo, abrimos uma conta as duas, e vamos! E vamos começar do zero! E
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vamos ser tão felizes! Vamos, não vamos? Vens comigo, não vens?”. Claro, toda aquela
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ideia de felicidade suprema, de irmos juntas para longe de tudo, de começarmos do 368
zero… o pânico deu lugar à idealização, comecei a idealizar tudo, comecei a imaginar 369
as coisas, a sentir um felicidade interior e uma calma que substituíram o medo e o 370
pânico que sentia antes! Nem suspeitei de nada! 371