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Ham ora bem, deixe cá ver Então, nome não é para dizer, idade tenho 73,

ANEXO 3 – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS

A.: Ham ora bem, deixe cá ver Então, nome não é para dizer, idade tenho 73,

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feitos já este ano, ham… escola… então, tenho uma Pós-Graduação em Engenharia de 12

Arquitectura, que conclui com os meus trinta e pouquinhos, porque fui trabalhando aqui 13

e ali ao mesmo tempo para juntar dinheiro para tirar o meu curso… E depois exerci 14

sempre nessa área, era o que mais eu amava fazer, era dar vida às coisas, era projectar 15

ideias, planear esboços, criar protótipos e depois, consoante os projectos que tinha em 16

mãos e os pedidos das pessoas, adequava conforme o requisitado, e dava vida a tudo 17

aquilo. De certo que compreende todo o esforço, o empenho, o tempo dedicado a uma 18

coisa dessas, porque depois também acompanhava as obras das construções destes 19

projectos, mas era uma coisa que me deixava… felicíssima! Daí fazê-lo sempre, ter 20

optado por não trabalhar em mais área nenhuma senão esta, que era a que me 21

completava, e felizmente tive essa sorte. Dava-me prazer dar forma às coisas e em 22

transformar aquilo que não se enquadrava em lado nenhum. Agora com esta idade já me 23

reformei, mas ainda participo em alguns projectos, dou alguns conselhos, contacto as 24

melhores empresas, escolho as mão-de-obra… coisas desse género. Mais… o que é que 25

falta dizer… Ah! Depois, em termos de… de orientação sexual… Bem, aí é… Então, eu 26

sou transsexual não é, e portanto… Eu sempre fui homem a vida toda, embora nunca me 27

sentisse bem, nem em termos de personalidade, nem comigo mesmo, em nada, em nada 28

me sentia homem. Sentia que estava no corpo errado, ou seja, eu sentia-me como se 29

fosse uma mulher. E se olhar bem para mim, com este aspecto esguio, alta, magra… 30

pareço mais mulher do que homem, também é verdade que sim. Quando era pequena 31

fazia praticamente só brincadeiras de menina. Brincava com bonecas, com coisinhas de 32

196 casa, com roupinhas das bonecas… Não ligava de todo aos brinquedos masculinos. Isto 33

até aos meus 7 ou 8 anos. E olhe que os meus pais repararam e insistiram o máximo 34

possível no contrário, e eu com medo do meu pai ia tentando disfarçar o melhor que 35

podia. Depois, já um pouco mais tarde, quando ficava sozinha em casa, comecei a vestir 36

roupas de mulher, vestia algumas coisas da minha mãe, experimentava saltos altos dela, 37

e claro que me torcia toda, não tinha experiência nenhuma, mas adorava aquela 38

sensação de poder, dava-me um certo empowerment, sabe? E a maquilhagem… 39

Lembro-me do primeiro dia que experimentei maquilhagem sem ninguém me ver! Toda 40

borrada, claro, mas a sensação que tive foi de que aquela imagem que eu via no espelho 41

é que era imagem correcta. Ou seja, aquela pessoa que eu via, uma mulher, é que era 42

aquilo que eu sentia ser! Não um menino, não um rapaz, não um futuro homem, mas 43

sim uma mulher! E um dia, nessa altura creio que tinha eu doze anos, eu toda espertinha 44

que os meus pais tinham saído de casa, porque iam à matiné frequentemente, fui vestir 45

roupas da minha mãe, calcei os seus saltos, e maquilhei-me o melhor que podia! Eu ia 46

fazer a minha própria matiné em casa, para mim e para as minhas bonecas, e então 47

liguei o rádio, e pus o som um pouco mais alto! O suficiente para eu ouvir e não os 48

meus vizinhos, claro. Também não queria chamar atenções indesejadas que me 49

pudessem delatar, obviamente. Tinha tudo programado, qual agente da CIA, apenas não 50

contei com o facto de que eles chegassem mais cedo. E claro que não os ouvi, porque 51

me estava a divertir como tudo e com o som um pouco mais alto, nem dei por eles… é 52

que se não o tivesse ligado, os teria ouvido, claro. E lá estava eu, toda dançante, no meu 53

quarto, lá em cima, até que me virei e no vão da porta vejo a minha mãe a olhar para 54

mim com cara de múmia horrorizada, de mãos caídas, com o casaco longo de peles dela 55

caído no chão, e branca como a cal, sem reacção! Ficou ela, e fiquei eu! Tinha sido 56

apanhada! [Pausa 0,2 segundos] Ainda me recordo da sensação, senti um arrepio de 57

medo gigante a percorrer-me a espinha, e na minha cabecinha tonta, incapaz de prever 58

um desfecho daqueles, de pensar repetidamente: “E agora!?”. E depressa tive a 59

resposta! A minha mãe, assim de repente, entra-me velozmente pelo meu quarto a 60

dentro, fechou a porta do meu quarto atrás dela de imediato, agarrou-me pelo braço sem 61

me fazer qualquer tipo de pergunta, sem sequer emitir um único som – e tudo isto em 62

segundos – e arrastou-me para a casa de banho que eu tinha no meu quarto, e gritou-me 63

assim numa espécie de sussurro, coisa que eu nunca vi, nem achei ser possível: “Vais 64

tirar isto tudo imediatamente, o mais rápido possível, antes que o teu pai entre aqui e te

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veja nesses preparos, porque podes ter a certeza que se ele te vir assim, será a última

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coisa que vez na vida! Vamos, rápido, enquanto eu o distraio e desligo tudo! Já cá

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volto, rápido!”. E assim foi, nem a questionei porque sabia bem o pai que tinha, um pai

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austero, de disciplina rígida, e de poucas palavras. Com a minha mãe até se derretia 69

mais, mas com os restantes, é escusado dizer que não era bem assim. Mas assim foi, 70

despi tudo dela, descalcei os sapatos, tirei a maquilhagem toda o melhor que pude, e em 71

menos de nada a minha mãe tinha voltado para o meu quarto. Agarrou em tudo o que 72

era dela, pronta para o levar para o armário dela, mas começámos a ouvir o meu pai a 73

subir as escadas… ou seja, devia vir cumprimentar-me, que ele era todo dessas coisas 74

das boas maneiras e por aí. E vinha mesmo. Sei que ela só teve tempo de enfiar tudo 75

debaixo da minha cama, para que o meu pai não visse e começasse a levantar questões 76

para as quais não haveria resposta, pelo menos razoáveis, e ao mesmo tempo fingiu que 77

tinha deixado cair um brinco. [Pausa 0,2 segundos] Aquela mulher era incrível. Sabe, e 78

coincidiu mesmo com o momento em que o meu pai entrou no quarto! E lá estava ela, 79

de gatas, acabadinha de guardar tudo debaixo da minha cama, escondida com uma breve 80

reza a Deus, com ela a fingir que procurava o seu brinco acabado de cair, ao que o meu 81

pai lhe perguntou: “[nome da mãe], mas por Deus, o que fazes tu nesses propósitos?”, 82

ao que ela respondeu, levantando-se ao mesmo tempo: “Isto, [nome do marido], isto! 83

Procurava isto!” e estendeu-lhe a mão na direcção da face dele, para que ele pudesse

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ver bem de perto o brinco que ela tinha na ponta dos dedos, quase como se quisesse 85

captar toda a atenção e o olhar dele para aqueles dedinhos fininhos, todos juntos, a 86

segurar num brinco para ele ver bem o que se tratava. Era aquilo e nada mais! E ainda o 87

reforçou com uma explicação, dizendo “Sabes, é que quando abracei o nosso [nome da 88

filha / entrevistada], ele colocou os braços à volta do meu pescoço e bateu no brinco, e

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o brinco saltou. Mas já o encontrei! E tu, o que fazes aqui, não devias estar a ir para a

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cama? Não estavas com uma dor de cabeça intensa?”. E aqui percebi porque é que eles

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tinham voltado mais cedo. O meu pai não estava lá muito bem por causa da dor de 92

cabeça. [risos] E lembro-me bem, mas tão bem, de ter pensado naquele momento “Dor 93

de cabeça estúpida. Estúpidos. Cambada de gente estúpida!” Agora rio-me, mas nesse

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dia não achei graça nenhuma. Ia acontecendo uma tragédia e tudo para causa de uma 95

parva dor de cabeça. Sim, devia de ter uns 12 anos. [Pausa 0,2 segundos] Mas sim, a 96

minha mãe distraiu-o e ele não deu conta das roupas nem de nada, mas depois veio dar- 97

me um cumprimento, e foi quando os dois olharam bem para mim. Eu tinha limpo a 98

maquilhagem sim, mas um dos olhos estava meio negro, meio esborratado, mais escuro, 99

tinha assim uma tonalidade mais escura. Como se eu tivesse um olho negro. Consegue 100

198 imaginar? E eu sabia, porque ia pedir ajuda à minha mãe para me ajudar a tirar o resto 101

melhor, mas com aquilo tudo claro que não deu. E na minha cabecinha, claro, só voltava 102

a pensar “Ai meu Deus, é desta! Ai minha mãe, e agora? E agora? Ele está a olhar para 103

mim, ele vai perceber, ele já percebeu! E agora?”. Fui invadido pelo pânico, mas

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completamente! Quase que vi os lábios dele a mexerem em câmara lenta! Ele 105

perguntou-me logo: “Mas o que é isso? Oh [nome da mulher], olha lá bem para ele… 106

Parece que tem um olho negro… Mas que raio…”. E nisto começou a aproximar-se de

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mim, a cara dele da minha. A minha mãe começou a ficar com um olhar de pânico 108

quando viu a minha cara, que também se estava a tornar de pânico iminente, e ela assim 109

de repente diz: “Bateram-lhe! Sim, foi isso, esqueci-me de contar, sabia que me faltava 110

partilhar algo, mas sim, foi isso! Ele estava a brincar com um amiguinho e eles depois

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desconfiaram a tiveram uma breve discussão assim mais acesa. Mas já está tudo bem,

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eles resolveram tudo, já são amigos de novo! Não te preocupes, não é nada, é próprio

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da idade! Anda, vamos tratar dessa dor de cabeça e de te pôr a descansar na cama!”. E

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começou assim a puxá-lo para irem embora do quarto. O meu pai estranhou, e quis 115

argumentar qualquer coisa, mas a minha mãe sabia bem como levar a dela avante com o 116

meu pai. Enquanto saíam do quarto, a minha vontade era de me derreter como a gelatina 117

e enfiar-me nas frinchas do chão, mas tive de me contentar em permanecer de pé o 118

melhor que pude, com as pernas bambas, a tremer que nem varas verdes. Assim que 119

fecharam a porta, só pensava: “Ufa, consegui. Safei-me!”. E tinha-me safado, sem 120

dúvida, mas devido à minha mãe. Logo a seguir de saírem fui afundar-me na cama, a 121

tentar acalmar os meus batimentos cardíacos, assustadoramente acelerados, e pouco 122

depois voltou a minha mãe para me dar as boas noites, como o fazia todas as noites. 123

Quando ela entrou, voltou a fechar a porta muito disfarçadamente, veio aconchegar-me 124

e dar-me um beijo e apenas me disse “Amanhã faltarás à escola. Passo uma nota em 125

como estás doente e ficas em casa comigo. Temos muito que conversar. Agora dorme.

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Amanhã teremos um longo dia pela frente.” Nem me senti no direito de contra-

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argumentar, apenas anui positivamente com a cabeça e voltei-me de lado para dormir. 128

Sabia que realmente me esperava um grande dia pela frente. E assim foi, no dia seguinte 129

o meu pai foi para o trabalho, a minha mãe ficou comigo em casa e quando estávamos 130

os dois já sós, ela começou a conversar comigo. Lembro-me de ela se sentir meia, 131

parece que incomodada, está a ver? Mas lá se recompôs e começou por me dizer: 132

“Filho, temos que falar sobre o que aconteceu ontem.”, ao que eu concordei com um 133

acenar de cabeça, e ela continuou: “O que te deu para estares naqueles preparos? O 134

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que se está a passar contigo? Estás a passar uma fase? Estás a explorar alguma…

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coisa?” Senti-me verdadeiramente ouvida, e senti que se tinha de falar, que aquele era o

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momento, e era-o com uma pessoa que parecia estar verdadeiramente interessada no que 137

eu tinha a dizer. Possivelmente compreenderia. E compreendeu. E então eu respondi- 138

lhe: “Não te sei explicar mãe, mas não é uma fase. Eu gosto de… ser assim… de ser 139

aquilo que viste. Eu gosto de ser menina. Eu não quero ser um menino. Não gosto de

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ser menino, e não me sinto um menino. E não é uma fase mãe. Não é. Eu sei que não é.

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Sempre me senti assim… Compreendes, mãe?”. Ela no fundo, bem lá no fundo, acho

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que sabia a resposta ao que me perguntou, mas devia ter sempre aquela réstia de 143

esperança que fosse tudo um mal-entendido… Depois do que eu disse, ela ficou em 144

silêncio durante um pouco, como se estivesse a assentar tudo aquilo que eu lhe tinha 145

acabado de dizer, a digerir, e enquanto isso eu baixei a cabeça. Sentia que vinha aí uma 146

enorme confusão e tinha as lágrimas a começarem a fazer-se sentir no canto dos olhos, 147

que eu já não conseguia segurar mais. Foi então que senti a mão dela a levantar-me o 148

queixo, a enxugar-me as lágrimas, e só por isso senti um conforto do tamanho do 149

mundo. E nisto diz-me a minha mãe assim: “Eu sempre reparei que tu eras mais 150

propenso para as coisas de menina. As brincadeiras, os gostos, os gestos, a maneira de

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ser, as roupas que eu encontrava remexidas – sim, eu reparava, não penses lá que eras

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algum agente secreto que mexia em tudo o que era meu e que eu não dava conta! –

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mas… não sei, creio que sempre me disse a mim própria que seria normal, uma fase, ou

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algo assim… Mas na verdade acho que sempre esteve foi bastante à vista.” E calou-se,

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a olhar para mim, com um olhar terno, que só aquele olhar de mãe terna pode dar, como 156

que um colinho de conforto com o olhar. Eu sem saber o que fazer ou dizer, apenas 157

proferi a única coisa que me passava na cabeça desde o incidente da noite anterior: “E 158

agora? E agora, mãe?”. E deixei cair mais umas lágrimas perdidas que ali tinham

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ficado, juntamente com o sentimento de medo e confusão que tinha. Ela voltou a 160

enxugá-las e disse-me: “Agora não sei filho, mas sei que o teu pai não pode saber. Ele 161

não vai compreender, sabes como é que ele é, o que ele acha dessas coisas. E a mim

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também me faz confusão, mas acho que sempre me preparei um pouco mais com tudo o

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que já havia notado. Mas ele não pode saber, ele não vai perceber. Sozinho poderás ser

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o que quiseres, ou mesmo se for eu a estar por casa, assim aos poucos, porque também

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não é algo a que eu esteja completamente habituada, e que faça muita questão… mas se

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é assim que és feliz, então farei por te ajudar, se tiveres a certeza disso… Mas terás de

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te aguentar a ser menino, ou homem, enquanto viveres aqui connosco e perto do teu

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pai, e mesmo na rua. Porque ninguém vai compreender, porque o teu pai vai morrer de

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vergonha, e porque por agora terá de ser assim. E ajudar-te-ei, mas terá de ser aqui,

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por enquanto será assim. Quando fores sozinho, fores à tua vida, aí decides tu. Mas

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aqui terá de ser assim. Desculpa filho.” E foi. Apesar de tudo o que eu estava a sentir,

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de querer ser livre e ser quem queria ser, percebia tudo o que ela me havia dito. E até 173

me sentia grata pela ajuda que ela me queria dar, pelo que me havia dito, pela 174

compreensão possível que foi… Mas sentia-me prisioneira, sentia-me prisioneira num 175

corpo que não era meu, não era aquilo com que eu me identificava. Mas tive que 176

obedecer ao que me tinha pedido. 177