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O caráter peculiar da experiência fática da vida em face ao conhecimento científico objetivante

A EXPERIÊNCIA FÁTICA DA VIDA

2. O caráter peculiar da experiência fática da vida em face ao conhecimento científico objetivante

A experiência fática da vida, longe de ser mais um alento metafísico, e de promover as certezas e garantias matemáticas tão peculiares ao conhecimento objetivante da ciência, põe

28 O uso desta passagem demonstra uma dinâmica comum imanente ao Novo Testamento. A noção de que o

conhecimento da realidade espiritual do Reino de Deus encontra-se numa sintonia fora do alcance das capacidades intelectivas do homem é um fator crucial para compreendermos a positividade ontológica inerente a experiência cristã primitiva. A passagem completa de 1 Pedro, diz: “Ora, para vós, os que credes, essa pedra é preciosa. Mas, para os descrentes, a pedra que os edificadores rejeitaram, essa foi posta como a principal de esquina” (1 Pedro, 2.7, Trad. AEC).

em aberto uma situação desoladora – a vida se choca com o vazio imanente ao Dasein. Dentro dos limites da experiência da vida fática não há concepções metafísicas de mundo sobre cujas instâncias pudéssemos nos apoiar. No âmbito da vida fática há apenas a autotransparência da vida para ela mesma, e o que se vê neste aberto da vida fática são as coisas como elas são – “sem teorias”.

Este vazio de fundo, essencial à experiência da vida fática, é para Heidegger o projeto de um novo filosofar que abdica da postura objetivante de uma cultura acadêmica cientificista, que a tudo quer reduzir ao cálculo. Busca, com este caminho, esquivar-se de uma orientação cultural que, após os horrores da Primeira Guerra – bem como o seu resultado frustrante para o povo alemão –, caíra no mais completo descrédito. Mas, também, não se pode comparar o que Heidegger haveria de propor com a experiência da vida fática com os inúmeros discursos progressistas que, em meio à agonia apocalíptica causada pela Primeira Grande Guerra – o que Heidegger também sentira –, surgiam aos montes, portando-se como “profetas do Milênio”, e procurando saciar a carência de discursos edificantes. A “belle époque” havia se desmantelado por completo, juntamente com a filosofia que a nutria. Ainda que os “profetas de cátedra” (GADAMER, 2012, p. 241) intencionassem propor um novo caminho, eles estavam tão enredados em estruturas fáticas oriundas da tradição filosófica que construiriam rapidamente uma nova “belle époque” sem ao menos se darem conta. Pois, o filosofar destes aspirava intimamente um fundamento, algo fixo, uma certeza absoluta com a qual pudessem se agarrar. Neste modo de filosofar permanecia inerente a mesma decadência presente na tradição metafísica. Nos anos da fenomenologia da religião, Heidegger haveria de caracterizar este movimento decadente como distanciamento do que está em aberto na experiência fática da vida.

O caminho que se abre, portanto, com a experiência da vida fática já não pode mais ser aquele trilhado pelo pensamento moderno. A filosofia moderna está de tal forma submetida às estruturas conceptuais provindas da tradição metafísica que todo e qualquer empreendimento filosófico, como afirma Heidegger, apresenta “brechas específicas, nas quais a filosofia deságua nos canais científicos” (HEIDEGGER, 2010, p. 13). Por isso mesmo Heidegger dirá que “todos os grandes pensadores quiseram elevar a filosofia à categoria de ciência” (HEIDEGGER, 2010, p. 14). Este caminho, ao prescindir das certezas e garantias tão peculiares ao método científico, não quer simplesmente se atirar numa espécie de irracionalismo que opere como uma contraproposta ao culto da razão – o que para Heidegger, tanto quanto o racionalismo, é uma postura superficial (MACDOWELL, 1993, p. 114). O

que se pretende, na verdade, é uma recuperação do mais autêntico filosofar, de modo que o desenvolvimento da postura teórica esteja em sintonia com a fundamental “atitude e disposição do espírito em face do ente” (Idem). Por isso mesmo, na primeira parte do curso “Introdução à Fenomenologia da Religião”, Heidegger, ao buscar uma “compreensão própria da filosofia” (HEIDEGGER, 2010, p. 13), indica que “o ponto de partida do caminho para a filosofia é a experiência fática da vida” (HEIDEGGER, 2010, p. 14).

Assim como Kant, Heidegger quer restituir a esfera própria de atuação da filosofia, recuperando a sua autenticidade e ao mesmo tempo garantindo um acesso “às coisas elas mesmas”. A insistente “tese” de que “existe uma diferença de princípio entre ciência e filosofia” (HEIDEGGER, 2010, p. 9) confirma as intenções do projeto que visa o acesso à experiência fática da vida, que é promover uma recuperação da identidade da filosofia em meio a uma crise cultural – crise que fora ratificada pela eclosão da Primeira Guerra Mundial. O distanciamento das regiões de “determinibilidade ontológica dos entes”, que intensificou o obscurecimento dos fenômenos em sua mais radical originariedade, fora ocasionado pela extensão de uma ciência instrumentalizada por ideais substancializados, que se porta como um valor cultural entre outros29. A postura que se assume na experiência fática da vida é a reinstalação de uma ciência que, enquanto modo de ser do homem, “não se cerra ao terror do indomado e ao caos do obscuro” (HEIDEGGER apud MACDOWELL, 1993, p. 115) nos subterfúgios de uma “meta” que está além da física do mundo – produto de uma “atitude teorética” (HEIDEGGER apud MACDOWELL, 1993, p. 113) que, sacramentado como puro saber, volta-se para si mesmo, esquecendo-se de si mesmo (esquecendo-se de sua autêntica essencialidade) 30. Ao invés disso, a experiência da vida fática abre caminho para a essência da filosofia, trazendo a tona o sentido autêntico da ciência, como afirmará Heidegger:

Queremos nós a essência da ciência, no sentido do manter-se firme, a descoberto, numa atitude questionante, no meio da inscosnciencia do ente no seu todo, neste caso esta vontade do essencial cria para nosso povo o seu mundo, um mundo de perigo interno e externo, i.é, seu verdadeiro mundo espirirtual (HEIDEGGER apud MACDOWELL, 1993, p. 113).

Portanto, este caráter específico da clarividência liberada na experiência fática da vida é profundamente marcado por um desgosto para com a atividade cultural corrente, que

29 Comentado tal crítica heideggeriana MacDowell dirá: “A ciência não constitui um valor cultural entre outros,

que se fomenta dentro de uma concepção utilitarista, em vista do progresso da sociedade” (MACDOWELL, 1993, p. 114).

30 Heidegger comente o modo como a ciência moderna esquece de sua essência, dizendo: “Esta sentença sobre a

força criativa original do saber é uma palavra dos gregos, aos quais se gostaria de atribuir com demasiada pressão modelo de um puro saber, voltado para si mesmo e por isso esquecido de si mesmo, que se traduz entre nós como a atitude „teorética‟.” (HEIDEGGER apud MACDOWELL, 1993, p. 113).

sub-repticiamente perpassada pela ideologia metafísica, concorre para os asseguramentos acalentadores de realidades superiores e absolutas, onde se encontram verdades disponíveis que encobrem a inquietação de fundo 31. Esta firmeza diante dos fenômenos, este auscultar o ente em sua aparição, que Heidegger – ao definir a experiência da vida fática – dirá que é “a plena colocação ativa e passiva do homem no mundo” (HEIDEGGER, 2010, p. 16), será decisivo para a interpretação fenomenológica da vida religiosa. Pois, através da fenomenologia da religião, Heidegger buscará dissolver o “tesouro de verdades disponíveis” (SAFRANSKI, 2005, p. 145) que, provenientes da inserção da ontologia grega no modo de interpretação da vida religiosa, obscureceram o sentido originário da vida cristã primitiva. A recepção da conceptualidade grega por parte dos “Pais da Igreja” deu inicio a um processo histórico de “infecção teórico-destrutiva” (HEIDEGGER, 2005, p. 107) do fenômeno da vida religiosa 32, o que em 1927, Heidegger iria caracterizar como a postura teológica que “toma emprestado da filosofia e das ciências as categorias de seu pensar e o modo de seu dizer”, ao invés de “pensar e dizer de acordo com sua própria coisa a partir da fé, para a fé” (HEIDEGGER, 2008, p. 79). A mesma tendência a uma postura objetivante, des-vitalizadora dos fenômenos, que caracterizava a cultura atual 33, havia obstruído a visualização da potencialidade da existência cristã primitiva. A teologia, ciência positiva responsável por abordar o fenômeno da fé, assumira um “pensar e dizer objetivantes” (HEIDEGGER, 2008, p. 78) o que lhe incorreu num fechar-se diante do que se mostra na fé.

E é precisamente na tentativa de explicitar o sentido originário da vida cristã dentro dos limites da orientação suscitada a partir da experiência da vida fática, que Heidegger depara-se com a temporalidade inerente à existencialidade cristã em sua realização. Passaremos a analisar o modo como a ostensão do fenômeno da vida religiosa resultou na eclosão de noções fenomenológicas cruciais para a concretização da ontologia fundamental.

31 Sobre esta inquietação fundamental, afirma Heidegger: “O que inquieta é a realidade da vida, o ser-aí humano

em seu estar preocupado por seu próprio asseguramento não é tomado em si mesmo, mas é considerado como objeto e o objeto é colocado em sua realidade histórica objetiva” (HEIDEGGER, 2010, p. 48).

32 Casanova explica o processo de inserção da conceptualidade grega no modo de compreensão teológico,

dizendo: “Ao tentarem fundamentar a experiência religiosa cristã por meio da conceptualidade grega, os pensadores medievais perderam de vista completamente a diferença entre as duas ontologias históricas, deixando de ver ao mesmo tempo o fosso insuplantável que as separava. Buscando dar suporte conceitual à experiência revelada nas escrituras, os pensadores medievais falseiam a mensagem cristã originária e a transformam em um arcabouço ambíguo que convida à secularização”. (CASANOVA, 2009, p. 54).

33 Heidegger testifica sobre a ameaça de uma compreensão tecnicizante na atual cultura, dizendo: “Hoje, porém,

existe e cresce o perigo de o modo de pensar científico-técnico expandir-se sobre todas as regiões da vida. Com isto reforça-se a aparência enganosa de que todo pensar e dizer sejam objetivantes. A tese que afirma isto, de maneira dogmática, mas ao mesmo tempo infundada, incentiva e apoia, por sua vez, a tendência fatal de se representar tudo ainda só de maneira técnico-científica, enquanto objeto para um possível controle e manipulação” (HEIDEGGER, 2008, p. 86).

Evidentemente, é importante ressaltarmos que os resultados na esfera da ontologia resultam de sua própria dinâmica interior. Não é o caso de buscarmos aqui afirmar que algo da esfera teológica fora exportado para a visão ontológica de Heidegger. A fenomenologia, que é o fazer da ontologia, em seu próprio desenvolvimento conquista para si, e a partir de si, a expansão de compreensões fenomenológicas que já, antes mesmo de uma “fenomenologia da religião”, estava em curso. Podemos constatar isto se tão somente atentarmos para os cursos que antecedem a “fenomenologia da religião”, veremos que a noção de facticidade já estava em desenvolvimento, e que a resistência a uma cultura que a tudo conquista e manipula pelo cálculo, já se fazia valer no pensamento de Heidegger. O próprio curso de “Introdução a Fenomenologia da Religião” não se inicia com a análise do fenômeno religioso, ao invés disso inicia-se com a delimitação da aparelhagem fenomenológica que recepcionará o fenômeno da vida cristã. Então, de que forma o que se mostra na vida cristã primitiva pode contribuir para as intuições que impulsionaram a expansão das noções fenomenológicas capitais da ontologia fundamental de “Ser e Tempo”? A abordagem da vida cristã primitiva, a partir da orientação preestabelecida pela experiência da vida fática, opera como fio condutor do desenvolvimento interno da fenomenologia 34. Isto quer dizer, o modo como o método fenomenológico se pre-dispõe para a ostensão do fenômeno da vida cristã promove uma distensão de suas noções estruturais. Porém, todo desenvolvimento da fenomenologia é resultado de seu metabolismo endógeno. De modo algum, podemos afirmar que os resultados obtidos com a fenomenologia da vida religiosa provenham de uma coadunação entre filosofia e teologia.

3. A noção de experiência fática da vida na “Introdução à Fenomenologia da Religião”

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