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A noção de vivência e a atenuação do horizonte histórico radicado na vivenciabilidade imediata: compreensão pre-teorética que condiciona a

POSICIONAMENTO DO JOVEM HEIDEGGER FRENTE À PROBLEMÁTICA TRANSCENDENTAL

2. A noção de vivência como elemento central no curso de 1919 e a postura do Jovem Heidegger ante a problemática kantiana a partir da experiência do mundar

2.3. A noção de vivência e a atenuação do horizonte histórico radicado na vivenciabilidade imediata: compreensão pre-teorética que condiciona a

visualização originária dos fenômenos.

Mas, em que aspecto a noção de vivência em Dilthey se torna elementar para a posição de Heidegger no curso de 1919? E mais especificamente, de que modo tal noção oferece para o jovem Heidegger uma orientação para elaboração de sua postura em relação à problemática transcendental kantiana? E de que forma a recorrência a essa noção pode ser delimitada como posicionamento de Heidegger para com a problemática transcendental? O esclarecimento da noção de vivência, segundo Heidegger, irá possibilitar a resposta para tais questões, o que, por sua vez, possibilita-nos a compreensão do que a princípio fora proposto: apontarmos as significativas inferências do filosofar primevo que trata de recolocar a questão do ser para com a problemática transcendental. Pois, a postura adotada por Heidegger no curso de 1919 o permite imiscuir-se efetivamente na briga filosófica de seu tempo.

Para demonstrar a novidade de sua postura fenomenológica, Heidegger faz uso de uma descrição fenomenológica da vivência da cátedra de onde ministrava sua conferência. Todo o curso estará centrado na explicitação dos aspectos fundamentais que ali são liberados. Não só pelo caráter inédito, mas, sobretudo por causa da própria natureza do que pretendia ser ressaltado, que Heidegger recorre a algo tão peculiar e comum, como é o caso da – até aquele instante – despercebida cátedra de onde falava. Com isso, queria Heidegger indicar que o caráter novo do seu filosofar consistiria precisamente nisto mesmo: possibilitar o irrompimento do que até então estava soterrado no mundo da vida. Uma tendência irresistível para com a tematização daquilo que é trivial, e evidente por si mesmo, marcaria definitivamente a filosofia de Heidegger, a partir daqueles dias. A tentativa de relevar a consciência da vivência da cátedra estava em plena consonância com o caminho que passaria a propor para liberação da “verdadeira realidade e da verdade real”. O voltar-se para a cátedra fora estratégico. Os contornos de um novo método de acesso “às coisas mesmas” se esboçava numa atitude de pensamento que busca ressaltar um “saber” imanente à vida e que constantemente atropelamos com nossa desatenção teórico-objetiva. O flanco que se abre com

a noção fenomenológica da vivência possibilita-nos compreender o modo como Heidegger se posiciona ante a problemática transcendental, bem como sua reação face ao ambiente de discussão neokantiano. Vejamos, pois, essa passagem monumental da conferência de 1919, onde Heidegger expõe a vivência da cátedra:

Vocês vêm como de hábito a esse auditório na hora habitual e se dirigem até seus lugares habituais. Os senhores retêm essa vivência de “ver os seus lugares” ou, se preferirem, podem compartilhar minha própria experiência: entro na sala de aula e vejo a cátedra. Prescindimos de uma formulação linguística da vivência. O que eu vejo? Superfícies marrons que se cortam em ângulo reto? Não, eu vejo outra coisa. Vejo uma caixa, uma caixa pequena colocada por cima de outra grande? De modo algum, eu vejo a cátedra sobre a qual devo falar. Vocês veem a cátedra da qual se falará aos senhores, na qual eu mesmo já falei. Na vivência pura não há – como se diz – nenhum nexo de fundamentação. Ou seja, não é que eu vejo primeiro superfícies castanhas que se entrecortam, e que logo depois se apresentam como caixa, depois como púlpito, depois como púlpito acadêmico, como cátedra, de modo que cole na caixa as propriedades de uma cátedra como se fosse uma etiqueta. Tudo isso é interpretação má e tergiversada, um desvio de direção do olhar puro para o interior da vivência. Vejo a cátedra de um golpe, por assim dizer; não a vejo apenas isolada, vejo o púlpito como sendo alto demais para mim. Vejo um livro sobre ele, diretamente como algo que me importuna (um livro, e não um número de folhas estratificadas e salpicadas de manchas negras); Vejo a cátedra em determinada localização, em uma iluminação, em um fundo [...]

Na vivência de ver a cátedra se me dá algo deste mundo-em-torno imediato. Esse mundo que nos rodeia (a cátedra, o livro, o quadro, o caderno de apontamentos, a caneta, o zelador, a associação de estudantes, o bonde, o automóvel etc) não são as coisas com um conteúdo significativo determinado, objetos, ainda por cima concebidos como isso e significando isso, mas o significativo é primário, e se me apresenta diretamente, sem nenhum rodeio intelectual que passe pela captação de uma coisa-objeto. Vivendo em um mundo circundante, me encontro rodeado sempre por toda parte de significados, tudo tem caráter de mundo, “munda” [es weltet]. (HEIDEGGER, 2005a, p. 85-88)

Um dos aspectos importantes na noção de vivência é a possibilidade de articulação entre o histórico e o elemento lógico, sem que houvesse o risco de uma ênfase unilateral de um destes termos. A dimensão histórica começara a consolidar sua importância no pensamento de Heidegger, o qual queria evitar o caminho trilhado pela filosofia perene, cujo comportamento procurava configurar o caráter da filosofia por ligações com substâncias imutáveis e eternas. Essa tendência para o permanente caracterizava bem os anseios filosóficos de sua época. Porém, é evidente que também se encontra em Husserl e nos neokantianos uma oposição à metafísica tradicional. Mas, o ímpeto desta oposição era brando quando se tratava da problemática transcendental inaugurada por Kant. Tanto Husserl, como

os neokantianos, procuraram levar a cabo o que Kant iniciara. A busca pelo fundamento último, de natureza a priori, responsável pela sustentação de todo conhecimento real, caracterizava o perfil da inquirição epistemológica destes filósofos. No encalço deste a priori fundante sempre se tendia a dimensões a- ou trans-históricas. E, com isso, em sua tentativa de superar a metafísica recaiam outra vez no paradigma que procuravam anatematizar – um princípio substancial e perene que possibilitasse a racionalidade científica. A filosofia neokantiana, bem como a fenomenologia de Husserl, demonstravam sua essencial conexão com paradigma metafísico por meio de sua submissão ao modelo da relação sujeito-objeto, resultando sempre numa compreensão teórico-objetiva da realidade. Tal postura acabara por subtrair a historicidade viva, a qual Heidegger pretende resguardar. Por isso mesmo, é a própria ideia de fundamentação – “contexto fundador” – que Heidegger pretende rechaçar a fim de possibilitar um acesso mais originário às coisas mesmas.

O ambiente de discussão neokantiano, por meio de sua reflexão lógico-epistemológica, ao persistir numa ideia de fundamentação não fora capaz de conciliar lógica e a historicidade da personalidade viva. Nem mesmo Dilthey havia percebido as possibilidades que se abriram com sua noção de vivência, visto que ainda estava enredado num contexto de fundamentação das ciências do espírito. Por isso mesmo, Gadamer irá declarar que a procedência mais autêntica para o projeto de uma hermenêutica da facticidade seja, não Husserl nem Dilthey, mas Nietzsche 21. Nele se encontrava um verdadeiro impulso para manutenção da tensão entre a historicidade viva e pensamento, impulso esboçado por meio de sua crítica a ideia de verdade. Essa influência de Nietzsche se fez sentir na tese de habilitação, quando Heidegger começa a perceber o quanto o turbilhão das forças vitais determinavam o pensamento. Heidegger ratifica tal influencia ao afirmar:

A filosofia vive ao mesmo tempo em uma tensão com a personalidade viva, exaure de suas profundezas e plenitudes vitais o conteúdo e a pretensão valorativa. Na maioria das vezes, por isto, encontra-se a base de toda concepção filosófica uma tomada de posição pessoal do filósofo em questão. Nietzsche, em seu seco e inexorável modo de pensar, e em sua capacidade plástica de representação, formulou essa determinação de

21 Gadamer propõe esta tese, dizendo: “Essa é a razão pela qual os verdadeiros precursores da posição

heideggeriana na indagação pelo ser e no seu remar contra a corrente dos questionamentos metafísicos ocidentais não poderiam ser nem Dilthey nem Husserl, mas Nietzsche. Pode ser que o próprio Heidegger só tenha compreendido isso bem mais tarde. Mas, retrospectivamente, pode-se se dizer: elevar a radical crítica de Nietzsche ao “platonismo” até a altura da tradição criticada por ele, confrontar-se com a metafísica ocidental à sua própria altura e reconhecer e superar o questionamento transcendental como uma consequência do subjetivismo moderno eram tarefas que já estavam esboçadas desde o início em “Ser e Tempo”.” (GADAMER, 2004, p. 345)

toda filosofia com a expressão „a pulsão que filosofa‟ (HEIDEGGER

apud CASANOVA, 2009, p.25).

A noção de vivência viabilizara as intenções nietzscheanas, e Heidegger procurou levar isto a cabo por meio de sua hermenêutica da facticidade. O olhar inerente às vivências que se projeta aquém dos “contextos de fundamentação” possibilitara para Heidegger uma forma de compreensão livre da tendência decadente do pensamento objetivante, o qual, no encalço de uma perene fundamentação a priori, filosofa em detrimento do histórico. A esfera que se abre com a noção de vivência passa a apresentar para Heidegger os contornos de um acesso mais originário às coisas mesmas; uma espécie de compreensão se abria onde o entorpecimento da postura teórico-objetiva não mais amenizava “a face bruta da realidade”.

A radical proximidade que se institui com a noção de vivência possibilita um mergulho genuíno na historicidade do homem. O elemento histórico é autenticamente aceito como condição decisiva para elaboração da verdade real e verdadeira realidade. O saber que se constitui na vivencia não recai em posições a-históricas, como fora o caso da noção de valor preconizado pela escola de Baden. A peculiar maneira de ver que se abre no vivenciar não está em sintonia com os anseios inerentes ao projeto de fundamentação do conhecimento (como fora intencionado pelos neokantianos e pela fenomenologia de Husserl), a própria ideia de fundamento passa a ser compreendida como uma obstrução ao modo de acesso às coisas mesmas. No vivenciar se busca tão somente desenredar-se do distanciamento ocasionado pela postura objetivante que se dá em meio ao paradigma sujeito-objeto. O que se pretende, com isso, é a conquista de regiões que possibilitem uma aparição genuína dos fenômenos, os quais devem ser contemplados no instante em que surgem na vida.

A eclosão da historicidade na vivência possibilitou uma diretriz para a radicalização da fenomenologia de Husserl, bem como o aprofundamento da noção de vivência em Dilthey. O modo como Heidegger apropria-se da noção de vivência, e a maneira como busca superar tanto Husserl como Dilthey, lhe proporciona um posicionamento original para com a problemática kantiana. Portanto, com a descrição da noção de vivência que se dá no curso de 1919 temos em paralelo a superação da temática discursiva de sua época – que condicionava tanto o movimento neokantiano, como também a fenomenologia de Husserl, e que se definia pela tentativa de caracterizar a natureza transcendental do conhecimento – junto a um posicionamento específico para com a problemática posta por Kant. Se seguirmos o modo como é descrito o acontecimento (Ereignis) na vivência poderemos demonstrar em que sentido Heidegger inaugura um novo patamar de discussões que se posiciona aquém da

temática epistemológica que tanto impulsionava o espírito filosófico de sua época. E ao passo em que demonstramos o sentido desta novidade fenomenológica também poderemos expor a peculiaridade de seu posicionamento para com Kant.

2.4. A originária dimensão pre-teorética aberta no mundar do mundo

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