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A originária dimensão pre-teorética aberta no mundar do mundo circundante: apropriação fenomenológica da noção de facticidade.

POSICIONAMENTO DO JOVEM HEIDEGGER FRENTE À PROBLEMÁTICA TRANSCENDENTAL

2. A noção de vivência como elemento central no curso de 1919 e a postura do Jovem Heidegger ante a problemática kantiana a partir da experiência do mundar

2.4. A originária dimensão pre-teorética aberta no mundar do mundo circundante: apropriação fenomenológica da noção de facticidade.

No encalço do mais originário território de manifestação dos fenômenos, Heidegger usa como principio norteador a intencionalidade husserliana, dizendo: “<<tudo o que se oferece originariamente na „intuição‟ [...] deve ser tomado simplesmente como se dá>>. Este é o <<princípio dos princípios>> que nos salvaguarda dos erros de qualquer teoria especulativa (HEIDEGGER, 2005a, p.132). Husserl abrira um caminho, por meio de sua epoché fenomenológica, nos conduzindo diretamente a uma excessiva proximidade com o mundo da vida. O princípio da apreensão imediata é a indicação metodológica para o tênue auscultar da vida que se dá na vivência. A exigência da “simples aceitação” enfatiza a cautela com que se deve proceder na compreensão do que nos é dado no vivenciar. Qualquer deslize na desatenção faz-nos cair na postura teorizante, nos afastando da mais genuína apresentação do mundo.

O que Heidegger pretende com tamanha cautela – em termos weberianos – é contemplar o mundo ainda não desencantado pela razão teorética, que em tudo está submetida à paradigmática postura da relação sujeito/objeto. A face incólume da realidade bruta vem à tona no vivenciar. E é precisamente o que se apresenta no instante da vivência que Heidegger pretende preservar, concebendo isto mesmo como a única abertura possível às coisas elas mesmas.

Para explicitar o saber que se dispõe na vivência da cátedra, Heidegger o torna visível por contraste: demonstra a rapidez descuidada com que, ao observarmos o fenômeno, logo o reduzimos ao analítico olhar da racionalidade geométrica – “superfícies castanhas que se cortam em ângulo reto”. Quase que automaticamente somos transladados para uma outra ordem, suplantando aquela mais originária com a qual lidamos habitualmente. A dimensão histórica é soterrada pela dimensão do conceito. Já não se vê a cátedra do auditório da Universidade de Freiburg, de onde Martin Heidegger ministrava a determinante conferência de 1919. A postura da razão teorética nos faz saltar para o plano do conceito, onde o fenômeno é desvitalizado, ou des-historicizado (HEIDEGGER, 2005a, p. 108). O saber vivido da cátedra é posto em ocaso pela ilustração racional. Porém, é precisamente este saber

tão imediato e trivial que se tem da cátedra histórica (e que, por sua excessiva proximidade, comumente escapa dos olhos da razão) que Heidegger quer colocar na mira da filosofia.

Entretanto, o que torna este apresentar-se histórico e imediato que se dá na vivência tão especial? Certamente não é o simples fato da proximidade, nem o fato de ser a primeira forma de apreensão. O caminho para a trivialidade do que é vivido, esboçado por Heidegger por meio da noção de vivência, quer nos revelar algo mais; algo tão complexo que os tradicionais manuais de filosofia não podem conceder-lhe um nome – nem de fato o podem dar. Trata-se de uma contemplação tão abundante que os diversos termos filosóficos não são capazes de conceituar, restando, na maioria das vezes, como postura mais adequada para expressão de tamanha contemplação o “silêncio essencial” (MÖRCHEN apud SAFRANSKI, 2005, p. 171). A própria estrutura gramatical – sujeita ao modo de compreensão objetivante – apresenta-se como inadequada para explicitação de tal historicidade.

O que realça a complexidade do saber vivido na vivência é sua conexão histórica. Em cada unidade vivencial é detonada uma descarga significativa que faz vir à tona a plenitude do mundo histórico. Como descreve Heidegger, no caso da vivência da cátedra, não a percebemos como uma unidade isolada, mas “na vivência da cátedra algo do mundo em torno se apresenta a mim”. Este em-torno é o que se oferece de mais originário na percepção da cátedra, e de qualquer outro fenômeno vivido. O mundo-em-torno jaz ali, em cada coisa percebida na vida, com todo o seu vigor significante.

Esse instante elementar da vivência, onde o mundo-em-torno vem à tona, e no qual, na maioria das vezes, vivemos, Heidegger o denomina de mundar. Na percepção pré-teórica da cátedra, ou como a encontro no plano da vida vivida, a cátedra munda. Este será um dos primeiros termos forjados por Heidegger com a finalidade de exprimir experiências originárias. Aqui no caso, o termo busca explicitar a totalidade significativa liberada na percepção da cátedra. O mundar que se realiza por meio da vivência da cátedra é a lógica do acontecimento que condiciona o meu situar-se no mundo. O mundar da cátedra faz eclodir tão somente aquilo que desde sempre me acompanha – eu-histórico (HEIDEGGER, 2005a, p. 108). Ao chegar à Universidade, e andar pelos corredores, buscando o auditório no qual a cátedra ainda não defrontada se localiza, já me encontro inteiramente cercado por aquilo que será liberado no mundar da cátedra.

Encontrando-me no mundo as coisas surgem para mim, e é precisamente este acontecimento de mundo que o mundar visa explicitar. Isso está aquém de toda postura

teórico-objetiva. Esta, na verdade, segundo Heidegger, obscurece aquilo que se clareia no mundar – o que ele denomina de “processo da infecção teórico-destrutiva progressiva do em- torno” (HEIDEGGER, 2005a, p. 107). O em-torno é a conectividade da totalidade significativa do mundo, que expressa o nosso ser em situações. Aqui não se trata de um elemento psíquico, mas de uma situação hermenêutica, de uma relação de compreensibilidade que abre o mundo para mim. Sobre isto, afirma Heidegger: “Vivendo em um mundo circundante, o elemento significativo sempre equivale para mim por toda parte ao fato de tudo ser mundano, o mundo munda...” (HEIDEGGER, 2005a p. 88).

Com o mundar se faz ver o ser-dado em cada situação vivida. Heidegger abre o caminho para uma região que se encontra sob o ponto cego da postura teórico-objetivante. Esta região Heidegger a denomina de “o âmbito da vivência do em-torno” (HEIDEGGER, 2005a, p. 106). Esta é a dimensão do originariamente dado, o campo fenomenal “no interior do qual os entes originariamente vêm ao nosso encontro” (CASANOVA, 2009, p. 40). Este irrompimento de uma dimensão mais originária operada pela fenomenologia tem suas fontes na descoberta da facticidade por Lask, o qual tornou viável a compreensão do caráter mundano da experiência imediata. Ao comentar a descoberta de Lask no curso de 1919, Heidegger faz ressaltar ainda mais o modo como se deixa orientar pela noção de faticidade em Lask:

Lask descobre no dever e no valor, como experiência ultima e último experenciado, o mundo. Não como coisa, nem como algo sensoriamente metafísico, assim como também não o compreende como uma espécie de não-coisa exageradamente especulativa, mas o entende muito mais como o fáctico. (HEIDEGGER apud KISIEL, 1995, p. 62).

2.5. O duplo caráter do mundo histórico e o delineamento da postura de

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