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Características do FP (focalizador-personagem)

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 31-36)

2.1 A importância da focalização como estratégia narrativa: a polifonia enunciativa

2.1.1 Características do FP (focalizador-personagem)

Antes de iniciarmos uma leitura mais detida do focalizador-personagem ou focalizador interno, doravante FP ou FI, de La pregunta de sus ojos, cabe refletirmos sobre o próprio conceito de focalização interna, sugerido por Mieke Bal. A presença de um focalizador personagem no romance é claramente situada na primeira pessoa do singular (Yo) presente nos capítulos cuja organização se dá via classificação numérica. Tendo em vista a presença deste Yo que narra e insere sua perspectiva, seu ponto de vista na narrativa, importa refletirmos sobre algumas questões referentes à caracterização deste focalizador que integra o romance: já que a escritura é o instrumento que o converte em focalizador, o que motiva o personagem

20 Em português: “Quando a focalização corresponde a um personagem que participa na fábula como ator, podemos nos referir a uma focalização interna. Podemos indicar, então, por meio do termo focalização externa quando um agente anônimo, situado fora da fábula, opera como focalizador. Um focalizador externo não ligado a um personagem se abriria como FE”. (BAL, 1995, p.111) (N. do T.)

a escrever? Que dimensão afetiva esta voz introduz no romance? Quais são as nuances dessa voz que narra e ao mesmo tempo participa da história narrada?

O capítulo “1”, o segundo a aparecer na obra de Eduardo Sacheri, já nos coloca de início diante de um personagem que escreve uma história sem maiores certezas das razões que o levam a fazê-lo: “No estoy demasiado seguro de los motivos que me llevan a escribir la historia de Ricardo Morales después de tantos años.”21 (SACHERI, 2010, p.17). De fato, esta incerteza do personagem quanto a suas próprias motivações perpassa grande parte de La pregunta de sus ojos. Há uma clara necessidade do focalizador interno de justificar, perante a um hipotético leitor, o porquê de sua escritura. Leia-se incerto leitor, pois o personagem Chaparro, na incerteza que o define enquanto ser ficcional, não está seguro de que alguém algum dia leia o que ele mesmo escreve. Ao tentar encontrar uma resposta, uma função para sua empreitada como escritor, Chaparro apresenta ao leitor razões múltiplas e distintas para lançar-se ao ato de escrever. A primeira delas, por certo, se relaciona à atração mesma que o caso de Morales exerce sobre o personagem. Chaparro confessa não ter coragem de encarar suas próprias fraquezas e afirma encontrar na vida do outro um caminho mais cômodo de reflexão de seus próprios medos:

Podría decir que lo que le pasó a ese hombre siempre ejerció en mí una oscura fascinación, como si me diera la oportunidad de ver reflejados, en esa vida destrozada por el dolor y la tragedia, los fantasmas de mis propios miedos.22 (SACHERI, 2010, p. 17)

Na medida em que suas justificativas ganham corpo sólido em seu texto, o leitor de Chaparro se dá conta de que o assombro diante dos rumos tomados pelo caso de Liliana não figura como razão única para a escritura do personagem sujeito da focalização interna. No transcorrer de suas divagações literárias, Chaparro acaba por confessar que, se decide escrever a história de Morales, o faz para ocupar um vazio deixado pela saída da Secretaria de Instrução onde trabalhou durante toda sua

21 Em português: “não tenho muito claros os motivos que me levam a escrever a história de Ricardo Morales depois de tantos anos.” (SACHERI, 2011, p.12).

22 Em português: “Eu poderia dizer que o que aconteceu a esse homem sempre exerceu sobre mim uma obscura fascinação, como se me desse a oportunidade de ver refletidos, naquela vida destroçada pela dor e pela tragédia, os fantasmas dos meus próprios medos.” (SACHERI, 2011, p.12).

vida: “Supongo que la cuento porque tengo tiempo. Mucho, demasiado tiempo” 23. (2010, p.18). No mais, se o personagem decide por fim que a trama de sua obra consistirá na história de Ricardo Morales e do crime de Liliana, também o faz, entre outras razões, em função de uma comodidade assumida por ele mesmo:

Lo primero que pensé es que no tengo la imaginación suficiente como para escribir una novela. La solución que encontré fue escribir sin inventar nada, es decir, narrar una historia verdadera, algo de lo que yo hubiese sido, aunque indirectamente, testigo. Por eso decidí escribir la historia de Ricardo Morales. Por lo que dije al principio y porque es una historia que no necesita que yo le agregue nada, y porque sabiéndola cierta tal vez me atreva a contarla hasta el final, sin amedrentarme con la vergüenza de empezar a mentir para llenar baches, alargar la trama o convencer a quien la lea de que no la tire al cuerno apenas transcurridas quince páginas.24 (SACHERI, 2010, p. 21)

No que tange ao fragmento acima citado, depreendemos que o focalizador personagem chama a atenção para o estatuto de verdade do objeto foco de sua mirada. Mieke Bal (1995) também menciona esta pretensão de objetividade por parte de um personagem que se propõe a focalizar, narrar algo. De acordo com a autora, a tentativa de apresentar só o que se vê (ou, no caso de La pregunta de sus

ojos, o que se viu) é acompanhada de um desejo por eliminar qualquer comentário

ou interpretação que fuja à objetividade. No entanto, como coloca a autora, a percepção se apresenta como um processo psicológico inerente ao focalizador, razão que leva Bal a afirmar que o esforço por ser objetivo no ato de narrar carece em grande medida de sentido. De fato, embora Benjamín Chaparro, no fragmento anteriormente citado, demonstre buscar contar a história de Morales com total fidelidade aos fatos e “sin inventar nada”, não consegue fazê-lo no decorrer de sua narrativa. As dúvidas do narrador se apresentam como problemas ficcionais que dão espaço a sugestivas reflexões narratológicas que apontam desde a ficcionalidade do narrado até as possibilidades, procedimentos e limites do ato de narrar, o que comprovamos na seguinte passagem de marcado caráter metanarrativo:

23 Em português: “Acho que as escrevo porque tenho tempo. Muito, demasiado tempo.” (SACHERI, 2011, p.12).

24 Em português: “A primeira coisa que eu pensei foi que não tenho imaginação suficiente para escrever um romance. A solução que encontrei foi escrever sem inventar nada, isto é, narrar uma história verdadeira, algo de que eu tivesse sido testemunha, mesmo indiretamente. Por isso decidi escrever a história de Ricardo Morales. Pelo que afirmei no princípio e por ser uma história à qual não preciso acrescentar nada, e porque, sabendo-a por inteiro, talvez eu me atreva a contá-la até o final, sem amedrontar com a vergonha de começar a mentir para tapar buracos, alongar a trama ou convencer quem a ler a não jogá-la no lixo depois de dez páginas.” (SACHERI, 2011, p.14).

¿Y qué hago con las partes de la historia que no he sido directamente testigo, esas partes que intuyo pero no conozco a ciencia cierta? ¿Las cuento igual? ¿Las invento de pe a pa? ¿Las ignoro? 25 (SACHERI, 2010, p. 22)

Os problemas ficcionais antes citados têm relação direta com os capítulos em que Benjamín Chaparro abandona sua perspectiva de focalizador personagem e passa, também ele, à perspectiva de Narrador Externo aos fatos. Isso ocorre quando Chaparro decide por criar capítulos a partir de fatos que intui terem acontecido no transcorrer da investigação da morte de Liliana. E como ter a certeza de que os capítulos em questão não são estruturados pelo próprio focalizador externo de La

pregunta de sus ojos? O leitor sabe que a voz que narra pertence a Chaparro

porque já compactua da estrutura organizacional dos capítulos proposta pelo romance. Dito de outro modo, a partir do pacto de leitura que o leitor firma com a narrativa, sabemos que o capítulo 13, a título de exemplo, é construído por Chaparro por tratar-se de um capítulo numerado. Narrado em terceira pessoa, este capítulo nos descreve o momento em que o pai de Liliana Colotto, a jovem assassinada em 1968, vai até a casa da mãe de Isidoro Gómez, ainda suspeito da morte da jovem, para tentar conseguir informações sobre o paradeiro do possível assassino. Chaparro e o viúvo Morales confabulam juntos esta empreitada em busca de informações realizada pelo sogro de Morales, mas Chaparro não estava presente nesta expedição e o pai de Liliana a realiza sozinho.

Como Chaparro tem acesso às informações pormenorizadas que narra ao leitor se não estava lá no momento em que sucede a ação? Como apontado aqui anteriormente, o próprio personagem nos avisa, de antemão, que irá “mentir” em alguns momentos “para llenar baches” em sua narrativa. Se o faz, assume que é tão só por uma questão de organização dos fatos para o leitor, já que o que lhe importa é contar o que viveu:

[...] será mejor contar lo que sé y también lo que supongo, porque de lo contrario nadie va a entender un carajo. Ni yo mismo. Y otra cosa complicada, el léxico: en el renglón anterior resalta la palabra “carajo” como un cartel de neón en medio de las tinieblas. ¿Uso esas palabras burdas y soeces, o las elimino de mi lenguaje escrito? Cuántas dudas, carajo. Ahí

25 Em português: “E o que faço com as partes da história das quais não fui testemunha direta, aquelas partes que intuo mas não conheço em detalhes? Conto-as do mesmo jeito? Invento-as de cabo a rabo? Ignoro-as?” (SACHERI, 2011, p.15).

está, de nuevo, el improperio. Al final tendré que concluir que soy un malhablado.26 (SACHERI, 2010, p.22)

A preocupação com a pessoa gramatical se faz acompanhar de dúvidas quanto ao léxico, ilustradas no fragmento anterior e que ratificam esta estrutura de metaficção observável em La pregunta de sus ojos. São muitos os momentos em que Chaparro tece comentários sobre seu próprio ato de narrar, dando-nos a impressão de que constrói seu romance em consonância com o ato de leitura realizado por seu leitor.

En realidad y muy en el fondo, sospecho que esta página que porfío en llenar de palabras va a terminar también, como las diecinueve que la precedieron, echa un bollo en el rincón opuesto de la pieza.27 (SACHERI, 2010, p.20)28

O personagem que se propõe a ser também autor divaga quanto ao método de escritura que utilizará, bem como com relação ao que será ou não objeto ou foco de sua leitura do passado:

La primera dificultad concreta, una vez decidido el tema: ¿En qué persona gramatical voy a redactar esta cosa? Cuando hable de mí mismo, ¿diré “yo” o diré “Chaparro”? Es tétrico que este escollo baste para detener todo mi brío literario. Tal vez sea mejor, para no verme tentado a volcar impresiones y vivencias demasiado personales. Eso lo tengo claro. No pretendo hacer catarsis con este libro, o con este embrión de libro, hablando más exactamente. Pero la primera persona me queda más cómoda. Por inexperiencia, supongo, pero me queda más cómoda.29 (SACHERI, 2010, p. 22)

26 Em português: “[...] será melhor contar o que sei e também o que suponho, porque do contrário ninguém vai entender um caralho. Nem eu mesmo. E outra coisa complicada, o vocabulário: na linha anterior, destaca-se a palavra “caralho” como uma placa de neon em meio às trevas. Uso esses termos chulos e vulgares, ou elimino-os de minha linguagem escrita? Quantas dúvidas, caralho. Aí está, de novo, o palavrão. No final, terei de concluir que sou uma língua-suja.” (SACHERI, 2011, p.15) 27 Em português: “Na realidade, e muito no fundo, desconfio de que página que teimo em encher de palavras vai terminar também, como as 13 que a precederam, embolada no canto oposto do aposento.” (SACHERI, 2011, p.14)

28 Este fragmento ilustra um interessante efeito de ilusão de que a obra escrita por Chaparro é construída em compasso com a leitura realizada pelo leitor. Dito de outro modo, entendemos que este efeito é alcançado pela própria estrutura física da obra. No fragmento, retirado da página 20 de La

pregunta de sus ojos, Chaparro faz referência às dezenove páginas anteriores que já foram escritas

por ele. Refletindo este encaixe de obras dentro de uma única obra, como em uma espécie de boneca russa, são detalhes estilísticos como estes que nos levam inclusive a supor se não seria a própria La pregunta de sus ojos a obra escrita por Benjamín Chaparro.

29 Em português: “Decidido o tema, a primeira dificuldade concreta: em que pessoa gramatical vou redigir este troço? Quando falar de mim mesmo, direi ‘eu’ ou direi ‘Chaparro’? É tétrico que esse obstáculo seja suficiente para deter toda a minha energia literária. Suponhamos que eu escolha a terceira pessoa para a narrativa. Talvez seja melhor, para não me ver tentado a despejar impressões e vivências excessivamente pessoais. Isso está claro. Não pretendo me purificar como este livro, ou,

No transcorrer de sua escritura e em conformidade com a evolução de sua consciência de escritor, Benjamín Chaparro torna-se mais seguro de seus propósitos artísticos e abandona paulatinamente seus devaneios estilísticos e suas dúvidas quanto ao ato de narrar. A história de Morales, como nomeada pelo próprio personagem-autor, passa a ganhar forma e faz com que Chaparro comece a preocupar-se com o que seja ou não importante para o entendimento da história por parte do leitor. Benjamín Chaparro sabe que só teremos conhecimento dos fatos narrados por ele e, enquanto modalizador da recepção leitora, toma decisões que interferem no acesso que o leitor tem aos fatos. Como antes dito, se decide criar a partir do que imagina ter acontecido, o faz pois assume sua posição de autor diante do que narra e de responsável pela melhor transmissão possível de um passado que ainda lhe parece próximo e que faz nascer no personagem o desejo de sua organização e transmissão via escritura. No mais, esta análise de Chaparro na qualidade de autor, focalizador de uma história já vivida, se complementará com a análise que se fará de Chaparro enquanto personagem, em um capítulo específico que será reservado à leitura desta categoria narrativa no romance.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 31-36)