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Os personagens e sua caracterização

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 48-52)

2.2 Os personagens de La pregunta de sus ojos

2.2.1 Os personagens e sua caracterização

Pensar na caracterização como “la suma de todas las cualidades observables”48 (MCKEE, 2004, p.446) nos abre a possibilidade de que analisemos aspectos variados e quase infindáveis sobre um personagem. Como vimos na apresentação das características do focalizador interno, no capítulo anterior, o protagonista Benjamín Chaparro pode ser caracterizado como um homem de 60 anos que, ao final de sua carreira como pró-secretário de uma Secretaria de Instrução de Buenos Aires, sente-se velho, sem rumo e sem saber em que exatamente se converteu com o passar dos anos.

A insegurança que caracteriza Chaparro já é apresentada ao leitor no início da narrativa pela voz do narrador externo. Chaparro é aquele que está “seguro de muy pocas cosas” e que tem “escasas certezas” (SACHERI, 2010, p.9). As hesitações que acompanham o personagem compõem sua caracterização e perfilam uma figura que a primeira vista mostra-se insegura e cheia de incertezas, mas que, como se verá, se desvela através de suas ações no transcorrer da narrativa. É também este narrador externo quem, ao início da obra, nos apresenta um Chaparro já amadurecido pelo tempo corrido, mas que ainda traz impasses antigos, de toda uma vida:

Una novia que tuvo de joven solía burlarse de su manía de mirarse en las vidrieras. Ni a ella, ni a ninguna de las otras mujeres que han pasado por su vida, Chaparro ha llegado a confesarle la verdad: su hábito de mirarse en los espejos no tiene nada que ver ni con quererse ni con gustarse. Siempre ha sido ni más ni menos que otro intento de aprender a saber quién carajos es él mismo.49 (SACHERI, 2010, p.10 – Capítulo “Despedida”)

São muitos os sentimentos de Chaparro que são observáveis ao longo do romance: a dor por ver-se obrigado a anunciar a morte de Liliana Colotto a seu marido: “[…] me ponía en el lugar de ese hombre mutilado que se había quedado sin vida y me horrorizaba por eso.”50 (2010, p.48); a nostalgia indesejável do passado

48 Em português: “a soma de todas as qualidades observáveis” (MCKEE, 2004, p.446) (N. do T.) 49 Em português: “Uma namorada dos tempos da juventude costumada zombar de sua mania de se olhar nas vitrines. Nem a ela, nem a nenhuma das outras mulheres que passaram por sua vida, Chaparro chegou a confessar a verdade: seu hábito de se fitar nos espelhos não tem nada a ver com se amar nem com gostar de si. Sempre foi nada mais nada menos que outra tentativa de descobrir quem, caralho, é ele mesmo.” (SACHERI, 2011, p.7)

50 Em português: “[...] me colocava no lugar daquele homem mutilado que havia ficado sem vida e me horrorizava com isso.” (SACHERI, 2011, p.33).

quando vê as fotografias que o marido de Liliana insiste em mostrar-lhe: “…una sensación de pérdida, de nostalgia incurable, de paraíso perdido detrás de cada uno de esos instantes minúsculos llegados desde el pasado como polizones cándidos.”51 (2010, p.101); a inveja do amor que Morales e Liliana sentiam um pelo outro: “Aunque no del todo, había logrado ponerle un nombre a lo que había sentido mientras lo escuchaba hablar a Morales. Era envidia. El amor que había vivido ese hombre me despertaba una enorme envidia, más allá de la piedad […]”52 (2010, p.150); ou ainda a tristeza diante do fim cruel dado a este amor: “Creo que por primera vez pensé en ellos dos vivos, tomando el café en la cocina de su casa, charlando y sonriéndose; y la vida me pareció insoportablemente cruel y pendenciera.”53 (2010, p. 307).

O processo de conhecimento do personagem pelo leitor ocorre muito de acordo com os desdobramentos do caso que este mesmo personagem se propõe a contar. Mesmo os sentimentos não tão nobres e não tão comumente associados a um herói não são omitidos. Pelo contrário, como quando o personagem assume sentir uma alegria culpada diante das tragédias alheias, como se as chances de que lhe passe o mesmo diminuíssem pelo simples fato de que tenham acontecido com pessoas próximas (SACHERI, 2010, p.17). Ou ainda quando se dá conta de que, junto a seu companheiro de escritório, encara a morte de forma insensível em um jogo de sorte que decide quem assume o homicídio da vez (SACHERI, 2010, p.31). Chaparro também assume a dúvida se seu pudor diante das fotos da autopsia de Liliana tem a ver com alguma espécie de desejo por contemplar o corpo da jovem que acabara de morrer, tal como faziam os policiais na cena do crime (Capítulo “Fojas”). O personagem também confessa sua atitude mesquinha quando se dá conta de que suas ações impulsivas podem ter prejudicado o desenvolvimento do caso: “Aunque fuese ruin, estaba más preocupado en ese momento por no quedar

51 Em português: “...uma sensação de perda, de nostalgia incurável, de paraíso perdido por trás de cada um daqueles instantes minúsculos vindos do passado como cândidos passageiros clandestinos.” (SACHERI, 2011, p.67).

52 Em português: “Embora não totalmente, eu tinha conseguido dar um nome àquilo que havia sentido enquanto escutava Morales falar. Era inveja. O amor que aquele homem tinha vivido me despertava uma enorme inveja, acima da piedade […]” (SACHERI, 2011, p.99).

53 Em português: “Acho que pela primeira vez pensei neles dois vivos, tomando café na cozinha de sua casa, conversando e sorrindo um para o outro; e a vida me pareceu insuportavelmente cruel e belicosa.” (SACHERI, 2011, p.204).

como un chambón que por agarrar al hijo de puta que había hecho aquello, fuese Gómez o cualquier otro forajido.”54 (SACHERI, 2010, p.123)

Nesta medida, seja pela voz do narrador externo, seja por suas próprias colocações no livro que escreve, Chaparro nos é apresentado em seus atributos mais nobres e em seus sentimentos mais baixos. Contraditório em sua essência, sua caracterização concorre para que o leitor construa a imagem de um homem comum, com conflitos existenciais e dilemas que sempre o acompanharam. Como protagonista de La pregunta de sus ojos, Chaparro é caracterizado em sua complexa e profunda cotidianidade, que o torna tão trivial e ao mesmo tempo tão indispensável quanto qualquer outro que se insere no universo criado pela ficção de Sacheri. Seu protagonismo se revela no instante em que se envolve com o caso da morte de Liliana Colotto, pois é o crime da jovem o “incidente incitador” (MCKEE, 2004, p.446) responsável por levar-nos a refletir toda sua potencialidade e tudo aquilo que é único em sua natureza ficcional.

Por sua vez, Ricardo Agustín Morales, o marido da jovem assassinada em 1968, tem sua caracterização construída muito pelas impressões que Benjamín Chaparro tece sobre ele em seu romance, fruto de todos os anos que mantiveram contato por conta dos desdobramentos do caso do crime da jovem:

Jamás se había destacado en nada. Ni en la escuela, ni en los deportes, ni siquiera en la familia había merecido más que algún ocasional elogio por cualidades en el fondo intrascendentes. Pero el 16 de noviembre de 1966 había conocido a Liliana, y con eso había bastado para cambiarle la vida. Con ella, por ella, gracias a ella, él había sido distinto.55 (SACHERI, 2010, p. 25)

Quanto a este último aspecto sobre as caracterizações dos personagens, o teórico espanhol Antonio Garrido Dominguéz56 (2007) explica que as fontes de informação sobre um ser ficcional são muito variadas e vão desde a auto apresentação feita pelo próprio personagem até a apresentação que parte de um narrador não implicado na história. Além destas duas fontes de informações sobre

54 Em português: “Embora fosse um sentimento mesquinho, naquele momento eu estava mais preocupado com não ficar parecendo um inútil do que com agarrar o filho da puta que havia feito aquilo, fosse Gómez ou qualquer outro foragido.” (SACHERI, 2011, p.81).

55 Em português: “Jamais se destacara em nada. Nem na escola, nem nos esportes, nem sequer na família havia merecido mais que algum elogio ocasional por qualidades, no fundo, triviais. Mas em 16 de novembro de 1966 tinha conhecido Liliana, e isso bastara para mudar sua vida. Com ela, por ela, graças a ela, havia sido diferente.” (SACHERI, 2011, p.17)

56 GARRIDO DOMINGUÉZ, Antonio. El Texto Narrativo. Teoría de la Literatura y Literatura Comparada. España: Editorial Síntesis, 2007.

um personagem, em nossa análise de La pregunta de sus ojos tem importância o que Garrido Dominguéz elucida sobre a apresentação realizada por um outro personagem da narrativa:

Diferente es la presentación de un personaje puesta en boca de otro personaje. En este caso la información se ve condicionada por el “campo visual” del personaje-narrador, el cual ha de limitarse a reflejar básicamente el comportamiento y palabras del personaje descrito (aunque también pueda acudir a otras fuentes como testimonios de terceros, documentos o escritos encontrados, etc.). La imagen final del personaje depende en este caso no tanto de la disponibilidad de información sino, en especial, de la “actitud” del narrador hacia él.57 (GARRIDO DOMINGUÉZ, 2007, p.77) As colocações de Garrido Dominguéz aplicam-se em nosso estudo quando temos em mente que conhecemos Morales através da mirada de Benjamín Chaparro. A caracterização do viúvo que chega ao leitor tem por base todas as colocações feitas pelo personagem-autor desde o instante mesmo em que este se propõe a “escribir la historia de Ricardo Morales.” (SACHERI, 2010, p.17). O narrador externo de La pregunta de sus ojos não apresenta o caso da morte de Liliana, como já apontamos no capítulo anterior, e, por isso, em sua narração tampouco surgem os personagens nele envolvidos. Deste modo, certificamos o fato de que não temos acesso ao viúvo Morales senão pelas apreciações que Chaparro constrói sobre a vida do personagem no romance que busca escrever.

No que diz respeito a estas caracterizações mais informativas e esclarecedoras sobre o perfil de Morales, construídas a partir da escritura de Chaparro, sabemos que o viúvo é um homem loiro e alto, que trabalha como caixa em um banco de Buenos Aires. Conheceu Liliana em uma eventual visita da jovem ao banco, quando, recém-graduada, acabara de chegar à capital para viver com umas tias. Pela descrição feita por Chaparro, o leitor se dá conta de que a vida de Morales se resume a uma rotina constante, a qual o personagem se adapta de forma pacífica, como se lhe coubesse viver como vive por forças do acaso. Através da escrita de Chaparro, nos inteiramos de que Morales acredita não ser digno de

57 Em português: “Diferente é a apresentação de um personagem posta na boca de outro personagem. Neste caso a informação se vê condicionada pelo ‘campo visual’ do personagem- narrador, o qual deverá limitar-se a expor basicamente o comportamento e palavras do personagem descrito (ainda que também possa acudir a outras fontes como testemunhos de terceiros, documentos ou escritos encontrados, etc.). A imagem final do personagem depende neste caso não tanto da disponibilidade de informação senão, em especial, da ‘atitude’ do narrador para com ele.” (GARRIDO DOMINGUÉZ, 2007, p.77) (N. do T.)

maiores ganhos e de que se diz satisfeito com a vida sossegada e sem grandes ganhos que leva. Sua maior realização de vida foi ter conhecido Liliana, ainda que sua visão pessimista sempre lhe tenha deixado sob alerta de que, cedo ou tarde, o destino lhe cobraria tamanha felicidade:

– ¿Y por qué se le ocurrió que Gómez podía estar en esta lista?

Ahora fue Morales quien se tomó un instante para responder, como si la pregunta lo hubiese sorprendido. Por fin habló, con una mueca irónica.

– ¿Quiere que le diga la verdad? Por simple aplicación del principio existencial que gobierna mi vida.

– …

– Todo lo que pueda salir mal va a salir mal. Y su corolario. Todo lo que parezca marcharse bien, tarde o temprano se irá al carajo.58 (SACHERI, 2010, p. 217)

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 48-52)