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CARACTERÍSTICAS DO(S) GÊNERO(S)

No documento MILENA BORGES DE MORAES (páginas 30-34)

CAPÍTULO I - CORPUS ESCRITO MEMORIA: CARACTERÍSTICAS CONSTITUTIVAS CONSTITUTIVAS

1.3 CARACTERÍSTICAS DO(S) GÊNERO(S)

Simões (2007) em sua tese de doutoramento Sintaticização, discursivização e

semanticização das orações de gerúndio no português brasileiro tece alguns apontamentos

acerca da origem e especificidades do gênero memória, a saber: "à medida que se constituía uma nova identidade luso-brasileira, foi preciso registrar a diacronia dos fatos históricos que demarcavam eventos e feitos significativos da história do Brasil. Nesse momento surgem as memórias históricas14" (SIMÕES, 2007, p. 202). Acrescenta ainda que as memórias são textos de maior formalidade assim como as cartas da administração privada e as cartas oficiais.

No que diz respeito às peculiaridades do gênero memória, Simões (2007) destaca as seguintes: cumpria uma função político administrativa específica do colonizador, caracterizando-se como gênero intermediário entre a carta e a narrativa histórica; tinha em vista um leitor a quem a obra era oferecida; e era fruto de uma produção mais controlada e passível de revisões, o que o aproxima da norma culta padrão da época.

Em relação ao corpus escrito deste trabalho, constatamos algumas das características levantadas por Simões (2007) acerca do gênero Memória, embora não possamos restringir a classificação do documento apenas a este gênero, pois simplificaríamos o texto de Ricardo

Franco e negaríamos, sobretudo, as outras características que o constituem e o tornam um manancial de gêneros. Isso posto, é significativo remetermo-nos à seguinte consideração:

O trabalho com o manuscrito de Ricardo Franco nos mostra que, para dar conta de um discurso enquanto gênero, é preciso levar em consideração que não basta apenas tratar a materialidade discursiva no âmbito de seus constituintes: estilo verbal, conteúdo temático e estrutura composicional, mas descrever|interpretar que cenografias são mobilizadas para que a cena de enunciação se legitime e legitime o seu enunciador. (ANDRADE; SANTIAGO-ALMEIDA; BARONAS, 2012, p. 418).

Observa-se que Andrade, Santiago-Almeida e Baronas (2012), com base na Análise de Discurso de orientação francesa, especialmente nos trabalhos de Maingueneau (1997; 2001; 2005; 2008), ponderam que a análise do manuscrito Memoria, enquanto um gênero, requer que levemos em consideração também que um texto implica uma cena de enunciação que, por sua vez, se constitui de três cenas, a saber: cena englobante15, cena genérica16 e cenografia17.

Nesse perspectiva, é possivel asseverar que Ricardo Franco se utiliza de dois tipos de cena englobante em todo o manuscrito, sendo elas o discurso pragmático-administrativo e o discurso geográfico acerca da Capitania de Mato Grosso e de suas fronteiras. No que diz respeito à cena genérica, conforme já ressaltamos, há uma hetereogeneidade de características constituindo o texto de Ricardo Franco, o que nos permite vislumbrar a convergência dos seguintes gêneros: memória, carta, parecer técnico e plano de guerra.

Conforme evidenciada por Andrade, Santiago-Almeida e Baronas (2012), são exploradas quatro cenografias em forma de cartografias:

1. cartografia hidrográfica da Capitania de Mato Grosso - "a cenografia adotada [...] detalhadamente municiada de informações - número de quilômetros e graus de latitude e longitude - visa agir sobre o destinatário de forma a construir um efeito de veracidade no discurso" (ANDRADE; SANTIAGO-ALMEIDA; BARONAS, 2012, p. 412).

2. cartografia mineral - "além de construir um efeito de veracidade no discurso, visa construir uma imagem eufórica do objeto cartografado e, dessa forma, influenciar o destinatário da necessidade de, por um lado, defender e, por

15 A cena englobante tem um estatuto pragmático no discurso e se integra em um tipo de discurso, como o

publicitário, filosófico, literário, religioso etc.

16 A cena genérica está associada a um gênero do discurso, a uma “instituição discursiva”, como o editorial, o

sermão, o guia turístico etc.

17 A cenografia não se constrói imposta por um gênero, mas é construída no próprio texto: trata-se da cena

outro, ampliar os limites do domínio português" (ANDRADE; SANTIAGO-ALMEIDA; BARONAS, 2012, p. 413).

3. cartografia demográfica - descreve com detalhes quem são os habitantes que residem no domínio português, Capitania de Mato Grosso, e no espanhol. "Esse tipo de saber é fundamental para elaborar estratégias de guerra que visem derrotar ao inimigo" (ANDRADE; SANTIAGO-ALMEIDA; BARONAS, 2012, p. 415).

4. cartografia bélica - "Nessa cartografia, o sujeito enunciador explicita de forma bastante detalhada ao seu destinatário quais são as deficiências em termos de defesa do inimigo num eventual ataque"(ANDRADE; SANTIAGO-ALMEIDA; BARONAS, 2012, p. 416).

Diante do exposto, a constituição do manuscrito Memoria ocorre a partir do discurso pragmático-administrativo e do discurso geográfico; da mobilização de quatro cenografias, a saber: cartografia hidrográfica; cartografia mineral; cartografia demográfica e cartografia bélica; e dos quatro gêneros do discurso, sendo todos convergentes para a manifestação escrita de Ricardo Franco a uma solicitação do então Governador e Capitão-General da Capitania de Mato Grosso.

Outro aspecto a ser considerado no documento é sobre a modalidade de língua, cujo predomínio seria a padrão da época, conforme o conjunto dos recursos utilizados na composição do texto e os tipos de gêneros que influem no estilo linguístico do autor. Inclusive, à guisa de ilustração, a seguir há o fac-símile da folha de rosto do manuscrito

Memoria, na qual verifica-se demarcado, já na primeira página, alguns indícios do controle e

da formalidade do texto, como o nome do gênero, resumo do assunto principal a ser tratado, o nome do autor antecedido pelo cargo, o nome a quem o documento está oferecido antecedido de formas de tratamento e posteriormente o cargo dele; e, por fim, o local e a data:

Figura 3 - Página de rosto do manuscrito Memoria

Fonte: Andrade, Santiago-Almeida e Baronas (2012, p. 40)

Destacam-se nessa folha de rosto as marcas linguísticas - formas de tratamento - "Illustrissimo e Excellentissimo Senhor", utilizadas na época para destacar as distinções que mereciam os ocupantes de posições de maior destaque social, como reis, rainhas, príncipes, governadores, entre outros. Essa necessidade de destacar com marcas linguísticas a hierarquia e as classes sociais foi instituída pelas “leis de cortesias” publicadas em 1597 (Filipe II18) e 1739 (D. João V19) cujo objetivo era o de restringir o uso das formas de tratamento aos grupos

18 A Lei sobre os estilos de falar e escrever (1597) está disponível na página da Biblioteca Nacional de Portugal

(BNP), em endereço citado nas Referências.

19 Não encontramos a versão digitalizada e, por isso, utilizamos para consulta a transcrição realizada por Cintra

(1986, p. 112-115), a partir da obra Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, IV, 1745, p. 304-308.

que as mereciam, a saber: "no alto de todos os papéis, que se lhes escreverem, como também nos sobrescritos se ponha, sendo para Grande Eclesiástico, o tratamento de Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor, e sendo para Grande Secular, o de Ilustríssimo e Excelentíssimo" (1745 apud CINTRA, 1986, p. 112, grifos nossos).

Dessa forma, observa-se que as formas de tratamento desempenham um papel importante na constituição dos convergentes gêneros do manuscrito em estudo, retratando um estado de língua portuguesa padrão da época, bem como as escolhas das formas de tratamento encontradas nele, inclusive nas saudações iniciais e despedida, as quais reforçam o caráter de formalidade linguística e documental. E mais, explicita na materialidade textual os lugares sociais e históricos de quem escreve e o destinatário:

Illustrissimo e Excellentissimo| Senhor. Manda-me VossaExcellencia pela sua Ordem| de 19 de Septembro do passado ano, dar o meu| parecer, e informaçaõ, sobre a defensa da Capita=| nia do Matto Grosso [...] (p. 43, grifos nossos). Saudações Iniciais.

Animando prezentemente estes bem es=| perançados principios, hum Excelso e Il=| luminado General que pelos seus paterna=|| es cuidados, indefectivel equidade, e exemplar| desinteresse, anima os seus subditos, que lo=| graõ contentes o premio das virtudes e fadigas| de quem os Governa com justiça e amor.| Coimbra 31 de Janeiro de 1800. = Illustris=| simo, e Excellentissimo Senhor Caetano| Pinto de Miranda Montenegro. <<Ricardo Franco de Almeida Serra>> Te=| nente Coronel Engenheiro (p. 345-347, grifos nossos). Despedida.

Observa-se que o contato inicial é feito com formas de tratamento - Illustrissimo e

Excellentissimo| Senhor; Vossa Excellencia - bem como faz menção à obediência que esse

texto expressa por meio da declaração de que essa memória representa o cumprimento de uma ordem recebida. Na despedida, primeiramente tece elogios e demonstra subserviência de quem escreve ao destinatário, coloca a data e em seguida, utiliza-se também de formas de tratamento, o nome do destinatário, o nome do autor e seu cargo.

Em suma, as características apresentadas acima em torno da constituição do corpus escrito deste estudo permitem-nos conhecer o contexto de produção do manuscrito Memoria e aspectos da história social e o conteúdo subjacente nele, que será abordados na próxima seção.

1.4 HISTÓRIA DO BRASIL COLÔNIA (1700 A 1800), DA CAPITANIA DE MATO

No documento MILENA BORGES DE MORAES (páginas 30-34)