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VILA MARIA DO PARAGUAI (CÁCERES)

No documento MILENA BORGES DE MORAES (páginas 68-76)

CAPÍTULO I - CORPUS ESCRITO MEMORIA: CARACTERÍSTICAS CONSTITUTIVAS CONSTITUTIVAS

1.5 VILA MARIA DO PARAGUAI (CÁCERES)

Nesta seção, teceremos alguns apontamentos sócio-históricos a respeito do município de Cáceres compreendendo os séculos XVIII ao XXI, por serem imprescindíveis à compreensão do léxico que caracteriza o português falado nesse município e a reflexão em torno da história da formação da língua portuguesa no Brasil.

Vila Maria do Paraguai, "[...] na margem Oriental do Para-| guai, sete legoas a Norte da boca do Iaurû" (14v- 2 a 4), conforme explicitado no documento Memoria à seção "Plano de Guerra", integrava um projeto político, administrativo, econômico e populacional da Coroa Portuguesa, cuja finalidade específica era legitimar espaços na região da fronteira oeste e defendê-los. Inclusive, reza na Ata de fundação dessa vila que ela deveria "resultar grande utilidade ao real serviço e commodidade publica".

Além desse motivo de fundação de Vila Maria do Paraguai, Mendes (2009, p. 30) pontua outros, a saber: abrir um caminho navegável para a cidade de São Paulo; "fertilidade do solo regado por abundantes águas e cheio de pastagens, o que era bom prenúncio de riqueza e prosperidades agrícolas"; facilitar a comunicação e estreitar relação comercial entre Cuiabá e Vila Bela da Santíssima Trindade.

Assim, Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, 4º Governador e Capitão General da Capitania de Mato Grosso, em nome do poder que detinha na colônia, emitiu ordem para fundar em 6 de Outubro de 1778, na localidade que atualmente é Cáceres, um povoado nomeado de Vila Maria do Paraguay. A título de ilustração e, principalmente, pela precisão de dados e detalhes que rememoram a singularidade desse povoado, segue abaixo a Ata de fundação de Vila Maria do Paraguai:

Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de 1778, aos 6 dias do mez de outubro do dito anno, n'este districto do rio Paraguay e margem oriental d'elle, no lugar onde presentemente se dirige a estrada que se seguia a Cuyabá desde Villa Bella, sendo presente o Tenente de Dragões Antonio Pinto do Rego e Carvalho, por elle foi dito que tinha passado a este dito lugar por ordem do Ilmo. e Exm. Snr. Luís de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, Governador e Capitão General d'esta Capitania de Mato Grosso, para com effeito fundar, erigir e consolidar uma povoação civilizada, aonde se congregassem todo o maior número de moradores possível, comprehendidos todos os casaes de índios castelhanos proximamente desertados para estes Domínios Portuguezes da Província de Chiquitos, que fazem o número de 78 indivíduos de ambos os sexos, a que juntando-se todo o outro número das mais pessoas congregadas para o dito fim faz o total de 161 indivíduos de ambos os sexos; cuja povoação, segundo as ordens do dito, se denominará de hoje em diante, em obsequio do real nome de Sua Majestade – Villa Maria do Paraguay, - esperando-se que de semelhante estabelecimento haja de resultar grande utilidade ao real serviço e commodidade publica; e porque supposto o plano do terreno para a dita Villa se acha com alguma disposição para continuar a fundar-se com regularidade: comtudo, como alguns dos alinhamentos não estão conformes ao projecto da boa policia, como deveria ser, determinou elle, dito Tenente, a todos os moradores, em nome de S. Ex., que deixando de fazer mais algum beneficio a varias cabanas existentes, só n'ellas assistem em quanto se fabricavam casas no novo arruamento, que lhe fica prescrito e balisado por elle, Tenente, com marcos sólidos de páo de lei, sendo obrigados a não excederem nem diminuírem a dita construção na altura de 14 palmos de pé direito na frente de todas as casa que se levantarem e 24 palmos de altura no cume; outrossim, determinou que precisamente chamariam para regular os ditos pés direitos ao carpinteiro João Martins Dias, e na falta d'este outro algum intelligente no officio, afim de conservar sem discrepancia, segundo o risco, a largura de 60 palmos de ruas que estão assignadas por elle, dito Tenente; cujas actualmente demarcadas e abalisadas terão os seguintes nome, a saber: a primeira, contando do norte, rua d’Albuquerque, a immediata, para o sul, rua de Mello, as quais ambas vão desembocar na praça e cada uma d'ellas faz face a mesma do norte e do sul, assim como também as travessas de 30 palmos, que dividem os quartéis das ditas ruas, e se denominarão estas travessas, a primeira, contando do poente para o nascente, travessa do Pinto, e a que se segue, contando também para o nascente travessa do Rego, e no alto da praça da mesma banda do nascente cuja frente fica riscada entre as ruas e travessas ditas com 360 palmos cujo numero tem também as mais quadras, poderão os moradores erigir a sua igreja por ficar a porta principal d'ella para o poente, como o determinam os rituaes; e o mais terreno d'esta frente da praça por agora se não ocuparia em casas, deixando-o livre para as do conselho e cadeia, quando se deverem fabricar. Cada morada dos ditos povoadores não terá mais de 100 palmos de comprimento para quintal, que lhes ficam

determinados para o centro de cada um dos quartéis. O que tudo assim executado pelo dito Tenente de Dragões na presença de todos os moradores, mandou a mim Domingos Ferreira da Costa, fiel d'este registro, que, servindo de escrivão, fizesse este termo para constar do referido, o qual assignou com as testemunhas seguintes: [...].

(Termo de Fundação de Vila Maria. Documentos Avulsos sobre Mato Grosso. caixa18, n. 1162. Microficha 273 NDIHR|FUFMT, grifos nossos).

É possível constatar nessa ata que o número de moradores existente na Vila Maria do Paraguai, no momento de sua fundação, era de 161 indivíduos, sendo eles constituídos, predominantemente, de índios castelhanos da Província de Chiquitos. Diante disso, Luiz de Albuquerque, em carta datada de 20 de novembro de 1778, comunica oficialmente ao Reino a fundação da Vila Maria, e solicita que envie "um certo número de famílias brancas para ajudar o povoamento da terra, pois, diz o Governador, os índios selvagens são inconstantíssimos, ferozes e indomáveis, ou de uma indolência e preguiça sem exemplo, preferindo continuar vagando livremente pelas matas" (MENDES, 1992, p.4).

Moraes (2003, p. 35) afirma que, na região onde foi edificada Vila Maria do Paraguai, já existia um sítio. Em 1772, o antecessor de Luiz de Albuquerque, Luiz Pinto de Sousa Coutinho, havia fundado um Registro no local em que a estrada de Cuiabá e Vila Bela atravessava o Paraguai, "a fim de contabilizar o ouro que por ali passava e evitar defraudações do meio quinto, de que estavam isentos os moradores de Vila Bela, sediando no local um pequeno destacamento militar e uma fazenda de gado bastante povoada". Esse sítio tornou-se um dos mais importantes estabelecimentos agropastoris da Província, conhecida atualmente como fazenda Jacobina. Esse local concentrou inúmeros moradores, dentre eles, centenas de escravos para os trabalhos da fazenda. Segundo Mendes (2009, p. 31), "Jacobina é contemporânea da fundação de Cáceres. Já em 1786, Leonardo tinha roça no local, conforme registrou Ricardo Franco que por ali passou de regresso de Cuiabá à Vila-Bela, donde saíra em missão exploradora".

No campo demográfico, observa-se que esse povoado era constituído de índios, negros escravos e colonizadores europeus, espanhóis e portugueses, agregando a essa população, no início do século XIX, "os missionários (padres e freiras) de origem francesa, que viriam a representar importante papel na formação escolar do segmento mais abastado da população" (BISINOTO, 2000, p. 18).

À guisa de ilustração, a seguir há uma representação visual de Cáceres no século XVIII:

Figura 7 - Imagem de Cáceres no século XVIII Fonte: Siqueira (2002, p. 75)

Ao prosseguir nosso percurso histórico a respeito do município de Cáceres, destacaremos alguns fatos que consideramos singulares na formação e transformação da população desse município.

A Guerra do Paraguai, por exemplo, foi um conflito armado internacional ocorrido na América do Sul entre o Paraguai e a Tríplice Aliança, composta por Brasil, Argentina e Uruguai. A invasão em território brasileiro por tropas paraguaias ocorreu primeiramente na Província de Mato Grosso e, depois, na do Rio Grande do Sul. Após o fim dessa Guerra em 1870, houve a abertura da navegação do rio Paraguai e, a partir disso, mudanças consideráveis ocorreram na antiga povoação de Vila Maria do Paraguai, a saber: maior circulação de mercadorias e pessoas provenientes de outras lugares do mundo, transformando dessa forma o modo de vida dos citadinos e suas práticas sociais. O rio Paraguai tornou-se a principal via de escoamento dos produtos das atividades econômicas e dinâmica populacional da época, bem como um meio de comunicação com o mundo exterior, até a instalação em Cáceres, pelo Marechal Cândido Rondon, de uma linha telegráfica.

Ainda no século XIX, iniciou-se a indústria extrativista em Cáceres e crescimento da pecuária. Esse cenário econômico foi intensificado nas primeiras décadas do século XX, quando Cáceres foi considerada uma das mais importantes cidades de Mato Grosso, e chegou a ser considerada a terceira praça comercial do Estado, especializada na exportação de produtos extrativistas e na criação e aproveitamento de gado bovino. Esse contexto sócio econômico atraiu inúmeros trabalhadores para atuarem nas matas de extração da poaia e da borracha, bem como nas grandes fazendas situadas no município, culminando, assim, no progresso dessa povoação e intensificação do aumento da população (CHAVES; ARRUDA, 2011).

No entanto, Cáceres teve seu potencial econômico reduzido e, atualmente, tem investido no turismo por meio da exploração das belezas naturais do município e da pesca no rio Paraguai. Inclusive é realizado anualmente, há mais de três décadas, um evento de repercussão nacional e internacional que atrai milhares de pessoas de toda parte do país e do exterior, o Festival Internacional da Pesca.

Outro fator que interfere na economia, bem como na cultura e educação desse município foi a implementação do ensino superior em Cáceres em 1978, a saber: Instituto de Ensino Superior de Cáceres (IESC), que se transformou na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). De acordo com Zattar (2008, p. 18), a história dessa criação ancora-se em duas imagens que projetam a trajetória dessa instituição: "[...] a de sua origem, constituída pela necessidade de formação de recursos humanos para atuar no magistério de 1º e 2º graus nas escolas de Cáceres e Região; e a de sua institucionalização, determinada sócio-politicamente, no ano em que se comemorava o bicentenário da cidade."

Atualmente, o Campus da UNEMAT em Cáceres oferece treze cursos de graduação, sendo seis bacharelados: Agronomia, Ciências Contábeis, Computação, Direito, Enfermagem e Medicina; e sete licenciaturas: Letras, Pedagogia, História, Geografia, Matemática, Ciências Biológicas e Educação Física. Conta ainda com três programas de pós-graduação em nível de mestrado em: Educação; Ciências Ambientais; Linguística, transformando esse município em uma cidade universitária. Ademais, como política de expansão e fortalecimento dessa instituição, encontram-se no interior de Mato Grosso diversos núcleos pedagógicos e treze

Campi Universitários.

Outro acontecimento refere-se à construção da ponte Ponce de Arruda, atualmente denominada de ponte Marechal Rondon, na BR 070 (Cuiabá- Cáceres), que corta o perímetro urbano de Cáceres, sobre o rio Paraguai, que desempenhou a importante função de facilitar o escoamento da produção e o trânsito migratório, intensificado em Mato Grosso durante a segunda metade do século XX, a partir da política de incentivo Marcha para o Oeste promovida pelo governo Vargas desde os anos quarenta. Em Cáceres esse fenômeno migratório se intensificou com bastante expressão entre as décadas de 1960 e 1970, conforme dados apresentados em quadro demonstrativo comparativo a seguir por Mendes (2009):

MUNICÍPIO E DISTRITO POPULAÇÃO RECENSEADA EM 1960 EM 1970 Total URBAN A SUBUR-BANA RURAL CÁCERES Cáceres (1) Porto Esperidião (1) 28.078 24.160 3.918 86.552 56.522 30.030 17.131 16.467 664 - - - 69.421 40.050 29.399 (1) Distrito (MENDES, 2009, p. 195)

Mendes (2009) ressalta ainda, a partir desses dados, que o município de Cáceres foi o que apresentou maior índice de crescimento no Estado de Mato Grosso nesse período, e foi classificado como em terceiro lugar entre os mais populosos do Estado de Mato Grosso no século XX, "só é superado pelos municípios de Campo Grande e Cuiabá que apresentam 143.271 e 103.427 habitantes respectivamente" (MENDES, 2009, p. 195).

Esses dados comparados aos apresentados por Ricardo Franco na Seção 1.4.3, p. 41,

População portuguesa, população espanhola e governo do Paraguai, nos quais o número

total da população da capitania de Mato Grosso, em 1800, era de 24 (vinte e quatro) mil pessoas, "negros escravos, mulheres, velhos, rapazes, homens", e com o número de 161 habitantes expressos na Ata de fundação do município de Cáceres em 1778, observa-se que quase dois séculos depois, o número de habitantes nesse município foi ampliado de forma expressiva e por extensão o de Mato Grosso, contribuindo assim para a diversidade da população cacerense atual.

De acordo com os dados do senso realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), o município de Cáceres possuía, em 2010, 87.942 habitantes, sendo 11.374 residentes na zona rural e 76.568 na urbana. Esses dados evidenciam que o ritmo de crescimento em termos de número de habitantes foi lento, porém em termos de migração foi bastante expressivo, pois ao compararmos os dados apresentados acima por Mendes (2009), constataremos que dos 86.552 habitantes de Cáceres, em 1970, 69.421 residiam na zona rural, ou seja, houve uma inversão de habitantes entre as áreas rural e urbana.

Sobre a questão demográfica rural e urbana no Brasil, Cunha (1986, p. 203) afirma que

Na segunda metade do século XIX, o Brasil, que fora até então um vasto país rural, com um opressivo e inevitável domínio do campo e de seus modelos socioculturais sobre a vida pública e particular, começa a sentir o depauperamento do patriarcalismo campesino e a ver surgimento de uma nova força, a do patriarcalismo urbano. A cidade passa então a influir normativamente na vida do país, e o faz num

crescendo vertiginoso pelo aparecimento do fenômeno da megalópole e dos poderosos meio de comunicação, como o rádio e a televisão. Em poucos anos altera-se completamente a geografia humana e urbana brasileira, com a fundação de novas cidades e o crescimento desmesurado de outras.

Observa-se que o "patriarcalismo urbano" em Cáceres pode ter ocorrido após o ano de 1970, conforme dados apresentados anteriormente, em decorrência, provavelmente, das condições sócio-histórica de Mato Grosso, como o fato de ter sido colonizado após mais de dois séculos da chegada da Coroa Portuguesa no Brasil. Essa realidade demográfica em torno de Cáceres favorece a nossa hipótese inicial de que o léxico oitocentista está propício à manutenção no uso corrente do informante cacerense.

No cenário geográfico, Cáceres encontra-se, aproximadamente, a oitenta quilômetros da linha divisória que separa o Brasil da Bolívia e, por ser área de fronteira, desde o século XVIII, se instalaram organizações das forças armadas, o que tornou a região altamente militarizada. Esse município sedia órgãos representantes das forças de segurança, a saber: Polícia Federal; Polícia Militar; Polícia Civil; Corpo de Bombeiros; Marinha; Exército Nacional; Grupo Especial de Fronteira (GeFron), os quais possibilitam a vinda de migrantes das mais diferentes regiões do país.

Em termos de território, a seguir encontra-se uma imagem ilustrativa da atual situação geográfica do município de Cáceres.

Figura 8 - Mapa de Cáceres na atualidade Fonte: elaborado por Marcos Pagel

Assim, Cáceres possui uma história eminentemente plural, cercada de diferentes povos que vieram de distintos lugares do Brasil e do mundo e, considerar os fatos mencionados anteriormente, é importante para a compreensão do processo de urbanização nessa região do país, que, por sua vez, auxilia na interpretação dos dados desta pesquisa afim de verificar se favorece ou desfavorece à manutenção, tendência à manutenção, desuso, tendência ao desuso e|ou neologismo semântico das unidades lexicais extraídas do manuscrito oitocentista Memoria.

CAPÍTULO 2 - CONSTITUIÇÃO E TRATAMENTO DOS CORPORA DAS LÍNGUAS ESCRITA E ORAL: APONTAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Em função de este trabalho propor um estudo semântico-lexical a partir de um

corpus de língua escrita, constituído por unidades lexicais extraídas do manuscrito

oitocentista Memoria, e um corpus de língua oral, constituído a partir de pesquisa de campo que testou as referidas unidades lexicais e suas acepções, conforme constam no manuscrito, com a comunidade de Cáceres, Mato Grosso, discorreremos no presente capítulo sobre o procedimento teórico-metodológico utilizado para a constituição desses dois corpora.

No documento MILENA BORGES DE MORAES (páginas 68-76)