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Primeira Parte

CARACTERÍSTICAS DOS DOIS CIRCUITOS DA ECONOMIA URBANA DOS PAÍSES SUBDESENVOLVIDOS

CIRCUITO SUPERIOR CIRCUITO INFERIOR

Tecnologia Capital intensivo Trabalho intensivo

Organização Burocrática Primitiva

Capitais Importantes Reduzidos

Emprego Reduzido Volumoso

Assalariado Dominante Não obrigatório

Estoques Grande quantidade e/ou alta

qualidade.

Pequena quantidade, qualidade inferior.

Preços Fixos (em geral) Submetidos à discussão entre

comprador e vendedor (haggling)

Crédito Bancário institucional Pessoal não-institucional

Margem de lucro Reduzida por unidade, mas importante pelo volume de negócios (exceção produtos de luxo).

Elevada por unidade, mas pequena em ralação ao volume de negócios.

Relações com a clientela Impessoais e/ou com papéis Diretas, personalizadas

Custos fixos Importantes Desprezíveis

Publicidade Necessária Nula

Reutilização de bens Nula Freqüente

Overhead capital Indispensável Dispensável

Ajuda governamental Importante Nula ou quase nula

Dependência direta do exterior Grande, atividade voltada para o exterior

Reduzida ou nula Fonte: Santos, 1979: 34.

O circuito superior apresenta as características do capitalismo mais avançado, com traços monopolistas: capital intensivo, emprego reduzido em comparação ao volume de capital empregado, preços fixados pelas empresas - dado o seu poder monopolista frente ao mercado -, facilidade em obter créditos bancários e ajuda governamental, necessidade de importante adiantamento de capital para início das atividades (overhead capital) – muitas vezes fornecido pelo poder público.

Com as transformações por que passou o modo de produção capitalista desde meados da década de 1970, alguns elementos do quadro elaborado por Santos devem ser revistos, como a alta quantidade de estoques retidos pelas empresas do circuito superior, já que ocorreu, desde 1973, um movimento em direção à redução dos estoques nas empresas (just

in time). A organização burocrática fordista também passou por transformações rumo a

uma maior flexibilização do uso da força de trabalho e menor verticalização das atividades produtivas. As inovações tecnológicas nos ramos da informação permitiram uma maior

fluidez das informações e comandos no interior das grandes empresas e dos grupos empresariais. Também as empresas passam a buscar maior flexibilidade em suas linhas de produtos de moda a fornecer um produto mais personalizado e ligado a nichos de mercado específicos, bem como buscam eliminar os encargos trabalhistas do mercado de trabalho formal através da terceirização de atividades, precarizando as relações laborais10. Também o papel do mercado financeiro cresceu muito na articulação do setor produtivo com a valorização do capital, sendo essa uma característica marcante do modo de produção capitalista a partir do último quarto do século XX, e que pode contribuir para caracterizar, atualmente, as empresas ligadas ao circuito superior do capital. Ou seja, as empresas que possuem grande ligação com o mercado financeiro são as empresas “de ponta” na atual configuração da economia capitalista. Também não se pode mais considerar que as empresas do circuito superior possuem atividades somente voltadas para o mercado exterior, particularmente se pensarmos o Brasil, onde o maior mercado para as grandes empresas (com poucas exceções) é o mercado interno, dadas as dificuldades estruturais e conjunturais para o aumento das exportações (altos custos de infra-estrutura, oscilações cambiais, protecionismo dos países ricos).

Já o circuito inferior é marcado pela quase ausência de capital fixo, pelo predomínio do trabalho mal remunerado e por conta própria, pela falta de créditos e de ajuda institucional para o desenvolvimento dos negócios, pela grande reutilização dos bens, pela informalidade nas relações de trabalho. Mas os trabalhadores desse circuito muitas vezes entram em contato com o circuito superior, quando, por exemplo, vendem matéria-prima reciclada para as empresas (latas de alumínio, papel) ou quando vendem a própria força de trabalho. E esse circuito, dada a abertura da economia nacional após 1990 e com o barateamento dos custos de transporte, passa cada vez mais a transacionar com produtos trazidos do exterior, através de contrabando e pirataria, sendo essa uma forma das pessoas que não podem pagar pelos produtos caros do circuito superior obterem sucedâneos destes.

O setor imobiliário, no caso brasileiro, é um caso regido pela lógica dos “dois circuitos”, na medida em que convivem um setor capitalista de produção de moradias para as camadas mais abastadas da população e de imóveis para o setor de negócios, e um setor

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Para mais detalhes sobre as transformações nas empresas capitalistas pós-1970 ver Harvey, 1992 e Botelho, 2000.

de construção de moradia realizado pelos próprios moradores, muitas vezes em loteamentos clandestinos11 ou áreas de ocupação12.

Não é somente nas periferias distantes dos bairros mais ricos que o circuito inferior imobiliário se desenvolve. Áreas ricas e pobres convivem proximamente em São Paulo, acentuando visivelmente o contraste entre os dois circuitos na paisagem. Por exemplo, o bairro do Morumbi, considerado de alto padrão, apresenta uma população favelada de 47,7% do total de moradores. Segundo reportagem do jornal “O Estado de São Paulo”:

“Três favelas circundam o Morumbi. A maior é a do Real Parque, onde moram cerca de 16 mil pessoas - três mil em apartamentos do Cingapura. Na comunidade do Panorama, são cerca de 2 mil habitantes. A menor é a de Porto Seguro, com 1,5 mil moradores. A região, porém, se localiza numa das áreas mais valorizadas do bairro - o Jardim Morumbi.” (Capiteli, 13/10/2002)13.

Segundo a mesma reportagem, a renda dos moradores das favelas é proveniente de empregos nas casas dos “vizinhos” ricos (empregadas domésticas, babás, seguranças etc.). Esse exemplo também nos mostra como os dois circuitos estão interligados, mas, como já visto, o circuito inferior é dominado pelo superior. E que a proximidade entre ricos e pobres não leve a enganos, pois a segregação sócio-espacial aí é mais visível, já que as áreas de loteamentos dos ricos são muradas e isoladas de seu entorno imediato, e possuem toda a infra-estrutura necessária para a vida (saneamento, vias públicas, etc.), enquanto que as áreas de favela enfrentam as mesmas carências que os loteamentos clandestinos ou favelas de outros pontos mais distantes da cidade.

Pode-se observar uma vez mais os dois circuitos da economia no setor imobiliário na medida em que cerca de 80% da produção de moradias não passa pelo sistema de

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Um loteamento é considerado clandestino quando o loteador não iniciou sequer o processo de sua regularização na Prefeitura, e é considerado irregular quando não foi aprovado, devido à falta de requisitos para sua aprovação. Nesses casos, os moradores não tem título de propriedade, mas têm como provar que pagaram pelo terreno sendo, frente ao poder judiciário, os proprietários legítimos dos terrenos. Já as favelas são áreas de ocupação de terrenos (Torres & Marques, 2002: 6).

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Luiz César de Queiroz Ribeiro (1997: 298), em seu estudo da cidade do Rio de Janeiro, conclui pela existência de um mercado segmentado: de um lado, a construção sob relações capitalistas organizado pelo capital de incorporação e, de outro, a autoprodução nas favelas e nos loteamentos periféricos, realizada pelas camadas de baixa renda.

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Embora a reportagem cite três favelas, no Morumbi há duas outras favelas importantes, as favelas de Paraisópolis (a maior delas) e Jardim Colombo.

financiamento de recursos provenientes do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE) (Castelo, 1997: s.p), ou seja, estão à margem dos recursos oficiais, revelando uma elevada carga de autofinanciamento na produção de imóveis no país, principalmente na construção de casas pelos seus próprios moradores, em condições precárias e em áreas periféricas. Assim, os trabalhadores, ao construírem suas próprias moradias em precárias condições, barateiam a força de trabalho consumida pelo capital, ao assumirem os encargos de um aspecto fundamental de sua reprodução: a moradia. E como sua reprodução também faz parte do processo de reprodução das relações de produção capitalistas, a chamada “autoconstrução” não está “à margem” da reprodução do capital, mas é um componente fundamental na reprodução capitalista dentro das especificidades do Brasil.

Já grandes empreendimentos imobiliários para a classe alta e para os negócios, além dos recursos do sistema bancário e público, podem contar com outros instrumentos financeiros (como os Fundos de Investimento Imobiliário, a securitização dos imóveis, a formação de Consórcios, por exemplo). Eles entram também na reprodução do capital, ao gerarem lucros no setor da construção por incorporação.

Dessa forma, o presente trabalho tem entre seus objetivos estudar o caso de São Paulo tendo como pano de fundo teórico a idéia de que há uma intensa relação entre o crescimento da segregação sócio-espacial e o modelo de crescimento econômico adotado há décadas pelo Estado brasileiro em conformidade com o empresariado dito nacional.

Esclarecimento para os capítulos posteriores

Considerando-se que o espaço urbano é produzido e consumido produtivamente, tornando-se um importante elemento na estratégia de valorização capitalista, uma maneira de se aproximar do entendimento de como funciona essa produção e consumo pode ser realizada através do estudo da repartição da mais-valia gerada no setor imobiliário, ou seja, através da análise da Renda Fundiária Urbana paga aos proprietários, do Lucro dos agentes imobiliários em suas operações e dos Juros obtidos pelo capital financeiro, formando uma tríade14. Dessa forma, pode-se entender um pouco da dinâmica urbana guiada por esses

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Tal tríade baseia-se no capítulo “A Fórmula Trinitária” de Marx em O Capital (MARX, 1989(c)) e na sugestão de análise do real feita por Henri Lefebvre em La production de l’espace (LEFEBVRE, 2000), para quem os elementos da tríade “se implicam e se dissimulam uns nos outros”, tal qual ocorre no caso da análise

agentes, que conjuntamente com o Estado, possuem grande poder de decisão na estruturação do espaço urbano sob o modo de produção capitalista.

A análise dos agentes mencionados será feita nos capítulos que se seguem, começando pela análise do que aqui se entende por setor imobiliário.

do setor imobiliário, onde lucro - juro – renda fundiária se confundem e obscurecem a análise da produção do espaço urbano decorrente das ações desse setor, sem esquecer, é claro, do papel do Estado e do urbanismo nesse processo.