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8 ABUSO DE DIREITO NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

8.2 Abuso de direito pelos credores

8.2.1 Abuso do direito de voto

8.2.1.1 Caracterização

A Lei 11.101/2005 adotou a regra da participação ativa dos credores, atribuindo-lhes o direito de deliberar sobre o plano de recuperação. Diferentemente da Lei das Sociedades Anônimas, a Lei 11.101/2005 não disciplinou o exercício do voto em assembleia-geral de credores a partir do instituto do voto abusivo, mas sim desenvolveu o instituto do cram

down, a fim de permitir que o juiz possa superar a rejeição do plano por uma classe de

credores quando tal rejeição contrariar o interesse da maioria dos credores na recuperação.202

Porém, os critérios do cram down foram estabelecidos de forma insuficiente pela Lei 11.101/2005, permitindo situações discriminatórias e a prevalência de posições puramente egoísticas assumidas por determinados credores, em detrimento do interesse dos demais e em desrespeito ao princípio da preservação da empresa. Assim, não se pode ignorar a possibilidade de determinados credores abusarem do direito de voto.203

Em linha com o que dispõe o artigo 187 do Código Civil, haverá abuso se o credor exercer o direito de voto de forma manifestamente excedente aos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

O direito de voto do credor existe tendo em vista a finalidade para a qual foi instituído. A finalidade econômica do direito de voto consiste da defesa do direito de crédito. Nesse aspecto, o que legitima o voto exercido pelos credores é exatamente o objetivo de satisfazer especialização técnica e a falta de modernidade na organização e administração dos serviços forenses. Deixa-se a investigação do abuso por essas pessoas para outra oportunidade, tendo em vista as citadas dificuldades práticas e que essa modalidade de abuso é bem menos frequente do que o abuso pelos credores, devedores, sócios e administradores, que têm atuação ativa na recuperação judicial.

202

MUNHOZ, Eduardo Secchi, 2007, p. 292. 203

Arnoldo Wald e Ivo Waisberg reconhecem que o credor não tem a obrigação de aprovar o plano, mas ressaltam que podem surgir situações de abuso no exercício do direito de voto ou conflito de interesses (Arts. 47 a 49. In: CORRÊA-LIMA, Osmar Brina; CORRÊA-LIMA, Sérgio Mourão (Coord.), 2009, p. 320-321).

o crédito. Se o credor exercer o direito de voto ignorando os limites impostos pela sua finalidade econômica, incorrerá em abuso de direito.

No entanto, além do objetivo de satisfazer o crédito, é preciso lembrar que a recuperação judicial tem o objetivo de viabilizar a superação da crise econômico-financeira do devedor, com o propósito último de promover a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Sob essa perspectiva, a finalidade social do direito de voto é cooperar com a promoção da preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. Daí decorre que, se o credor exercer o direito de voto ignorando os limites impostos pela sua finalidade social, também incorrerá em abuso de direito.

Lembre-se que, por preservação da empresa, entende-se a manutenção no mercado da empresa que possui condições de se recuperar e voltar a gerar riqueza econômica, criar empregos e renda, contribuindo para o crescimento e o desenvolvimento econômico e social do país.

É importante esclarecer que a cooperação com a preservação da empresa não se confunde com uma suposta obrigação de o credor aprovar o plano de recuperação em qualquer hipótese. O espírito da Lei 11.101/2005 não é preservar a empresa a qualquer custo, mas sim viabilizar a preservação da empresa recuperável e retirar do mercado a empresa irrecuperável, evitando a potencialização dos problemas e o agravamento da situação dos que com ela negociam.204 E o poder deliberativo sobre o plano de recuperação foi atribuído aos credores, nos termos do artigo 35, inciso I, alínea “a”, da Lei 11.101/2005.

Caberá ao juiz, no caso concreto, identificar eventual abuso do direito de voto. Contudo, é preciso ter cuidado para que não haja uma flexibilização excessiva das situações que justificam o reconhecimento do abuso, impondo-se ao credor uma suposta obrigação de aprovar o plano em qualquer hipótese ou mantendo-se artificialmente em funcionamento empresas irrecuperáveis. Nesse sentido, incumbe ao juiz tanto permitir a recuperação de

204 Conforme parecer elaborado pelo Senador Ramez Tebet sobre o Projeto de Lei da Câmara nº 71/2003, que originou a Lei 11.101/2005.

empresas recuperáveis quanto resistir à tentação de manter artificialmente em funcionamento empresas irrecuperáveis.205

A aprovação do plano pelos credores dependerá do ganho ou perda que venham a suportar. Se os credores acreditarem que o plano os deixará em situação melhor do que na falência, tenderão a aprová-lo. No entanto, se entenderem que o plano os deixará em situação pior do que na falência, tenderão a rejeitá-lo. Adicionalmente à motivação de recebimento do crédito, alguns credores podem querer manter a relação comercial com o devedor.206

Um fator essencial para a adesão dos credores será a demonstração da viabilidade econômica do plano, além do histórico empresarial do devedor e sua credibilidade pessoal. No entanto, por mais que estejam diante de uma empresa viável economicamente, é possível que os credores rejeitem o plano de recuperação por não proporcionar uma justa e equilibrada satisfação do crédito. Isso pode ocorrer, por exemplo, se o plano contiver proposta de pagamento injusta e desequilibrada, impondo sacrifício excessivo aos credores e refletindo o interesse de enriquecimento ilícito do devedor e dos seus sócios à custa dos credores.

Nesse caso, ainda que seja imperativo observar a finalidade social do direito de voto e da própria recuperação judicial, os credores se veriam numa situação de extrema injustiça, não sendo razoável obrigá-los a aprovar um plano de recuperação injusto e desequilibrado. Por isso, Newton De Lucca pontua que o credor tem o direito de rejeitar o plano de recuperação se este for contrário ao seu legítimo interesse de satisfazer o crédito.207

Dito isso, serão analisadas a seguir duas situações exemplificativas de abuso do direito de voto pelo credor (conflito de interesses e abuso da minoria). Lembre-se que o voto é declaração de vontade e, além de poder estar maculado por abuso, sujeita-se às hipóteses de

205 GOLDBERG, Daniel K. Notas sobre a nova Lei de Recuperação de Empresas e sua racionalidade econômica. In: WALD, Arnoldo (Org.). Direito Empresarial: falimentar e recuperacional. v. 6, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 355.

206

Abrem-se parênteses para comentar a análise feita por Mario Engler Pinto Junior sobre a aplicação da teoria dos jogos à recuperação judicial. O autor apresenta a motivação principal de cada tipo de credor para preferir o plano de recuperação em comparação com a falência. No caso dos credores trabalhistas, a motivação estaria na perspectiva de manutenção do emprego, bem como na chance de abreviar o recebimento dos créditos. Os credores com garantia real, por sua vez, seriam mais exigentes quanto às condições de pagamento do seu crédito, pois no cenário de falência a chance de recebimento seria alta em razão da garantia. Já no caso dos credores quirografários, haveria grande incentivo para apoiar a recuperação judicial, considerando que no cenário de falência a chance de recebimento do crédito seria praticamente nula. No entanto, se o crédito detido pelo credor quirografário possuísse garantia de terceiros, seria possível que ele se comportasse de forma semelhante ao credor com garantia real (A Teoria dos Jogos e o Processo de Recuperação de Empresas. In: WALD, Arnoldo (Org.), 2011, p. 458-463).

invalidação previstas nos artigos 166, 167 e 171 do Código Civil (nulidades e anulabilidades).

No documento O abuso de direito na recuperação judicial (páginas 99-102)