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Evolução do instituto

3 ASSEMBLEIA-GERAL DE CREDORES

4.3 Evolução do instituto

Apesar de o Código de Napoleão não versar expressamente sobre o abuso de direito, a jurisprudência francesa é tida como pioneira ao sancionar atuações abusivas, especialmente em matéria de vizinhança. A expressão abus de droit foi introduzida pelo belga Laurent para cobrir as situações de responsabilidade relacionadas ao famoso caso da chaminé falsa de

102 LOTUFO, Renan, 2004, p. 505-506.

Colmar.104 Àquela época, a repressão do abuso de direito era feita pelos juízes no caso concreto, ainda que não fossem acompanhados pela evolução paralela da doutrina.

Josserand foi um dos primeiros a tratar do tema. Explicou que o direito deveria observar a função ou espírito que lhe era inerente. Partiu da concepção de Jhering de direito subjetivo como um “interesse juridicamente protegido”, instituído com base em uma função.105 A função poderia ser tanto pessoal -- função de exercício do direito para satisfazer necessidades pessoais e não apenas para prejudicar terceiros --, quanto social ou econômico- social -- função de exercício do direito em prol da sociedade.

Das lições de Josserand surgiram perguntas de difícil resposta como: qual é a finalidade dos direitos? Qual é o seu espírito capaz de levar à conclusão de que, se violado, existirá abuso de direito? O que impõe tal espírito?106

Ripert associa o abuso de direito à chamada “regra moral”, sustentando que o abuso de direito existirá quando uma pessoa exerce o direito de modo anormal, causando prejuízos intencionalmente (animus nocendi). Nessa linha, o abuso de direito consistiria de uma atuação ofensiva aos deveres morais de justiça, equidade e humanidade.107

É de Planiol a crítica de que a doutrina do abuso repousa em uma linguagem insuficientemente estudada: “a sua fórmula ‘uso abusivo dos direitos’ é uma logomaquia, porque se eu uso o meu direito, o meu acto é lícito; e quando ele é ilícito, é porque ultrapasso o meu direito e ajo sem direito, injuria, como dizia a lei Aquilia”.108 Daí surgiu a conhecida expressão “o direito cessa onde começa o abuso”.

Josserand criticava essa posição, afirmando que se poderia perfeitamente ter um direito e, ao mesmo tempo, contrariar o Direito em conjunto, “e é esta situação, nada contraditória mas perfeitamente lógica, que traduz o adágio famoso: summum jus summa injuria”.109

Deixando de lado a aparente contradição terminológica na expressão “abuso de direito”, vale dizer que o desenvolvimento do conceito de abuso ocorrido na França não foi

104 CORDEIRO, António Menezes, 2009, p. 71. 105

Ibid., p. 91.

106 ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Do Abuso de Direito. Coimbra: Almedina, 1983, p. 17-18.

107 Apud GUERRA, Alexandre Dartanhan de Mello. Responsabilidade Civil por Abuso do Direito. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007, p. 71.

108

Apud ABREU, Jorge Manuel Coutinho de, op. cit., p. 45.

109 JOSSERAND, Louis De l’esprit des droits et de leur relativité. Theórie de l’abus dês droits. Paris: Dalloz, 1927, p. 313.

acompanhado, em um primeiro momento, na Alemanha. Para os alemães, a repressão do abuso parecia estar restrita aos atos emulativos.

Nesse sentido, apesar de o Código Civil Alemão (BGB) ter sido o primeiro a positivar a repressão do abuso de direito, limitava-se aos atos praticados com o intuito de causar dano a outrem e acabou não inibindo atos atentatórios à boa-fé.110

Assim dispõe o BGB, que entrou em vigor em 1900, em seu artigo 226: o exercício de um direito é inadmissível somente quando tem o propósito de causar danos a outrem.111

O artigo 226 do BGB não teve muita relevância prática na Alemanha, considerando a enorme dificuldade de se comprovar que o ato foi praticado com o único propósito de causar dano a outrem.112 Os tribunais alemães acabaram utilizando outros dispositivos do BGB para sancionar atos abusivos, principalmente os artigos 242 (obrigação de efetuar a prestação em boa-fé), 157 (interpretação dos contratos de acordo com a boa-fé) e 138 (nulidade de transações contrárias à ordem pública).

Em seguida veio o Código Civil Suíço, que entrou em vigor em 1912. Em seu artigo 2º, dispõe que todos devem exercer os seus direitos e executar as suas obrigações de acordo com a boa-fé; o aparente abuso de um direito não é protegido pela lei.113

Já o Código Civil Italiano, de 1942, não prevê expressamente a figura do abuso de direito. Apesar disso, uma parte da doutrina indica a aplicação do instituto nas disposições sobre a proibição dos atos emulativos. Outros, porém, rejeitam essa aplicação.114

Pietro Perlingieri conceitua o abuso de direito como um comportamento não justificado pelo interesse impregnado na função da relação jurídica da qual faz parte a situação. Não seriam limites a cada direito, mas sim uma relação com a função mais ampla da situação global da qual o direito seria expressão. A sua valoração seria complexa exatamente por

110 LOTUFO, Renan, 2004, p. 499. 111

“§ 226 Schikaneverbot. Die Ausübung eines Rechts ist unzulässig, wenn sie nur den Zweck haben kann, einem anderen Schaden zu zufügen”.

112 GROTHE, Helmut. Münchener Kommentar zum BGB. 5. ed. München: C.H. Beck, 2006, nota 1 aos comentários ao artigo 226.

113

“Art. 2. 1. Jedermann hat in der Ausübung seiner Rechte und in der Erfüllung seiner Pflichten nach Treu und Glauben zu handeln. 2. Der offenbare Missbrauch eines Rechtes findet keinen Rechtsschutz.”

requerer a verificação da existência de interesses contrários juridicamente relevantes, que deveriam ser considerados de forma harmônica e proporcional.115

A violação ao dever de boa-fé na execução do contrato também pode configurar abuso no direito italiano nos casos em que o contraente exerce direito que deriva da lei ou do contrato para realizar um escopo diverso daquele para o qual o direito foi constituído.116

Francesco Macario aponta a tendência de o ordenamento jurídico incluir regras baseadas na valoração do comportamento das partes, a fim de sancionar desvios e garantir um contrato justo. Segundo ele, a teoria do abuso delega ao intérprete a tarefa de conceituar critérios amplos e indefinidos, o que poderia eventualmente colocar em risco a chamada “certeza do direito”. A ideia de abuso representaria uma síntese conceitual extrema das diversas manifestações do exercício do direito em contraste com regras metajurídicas em um determinado contexto social.117

Logo após a Segunda Guerra Mundial, o Código Civil Grego, que entrou em vigor em 1946, veio em seu artigo 281 dispor que o exercício de um direito é proibido se exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico do mesmo direito.118 Verifica-se, aqui, forte influência da doutrina alemã da boa- fé.

Já o Código Civil Português, que entrou em vigor em 1967, dispôs em seu artigo 334: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Nota-se que o artigo 187 do Código Civil Brasileiro é quase uma cópia do artigo 334 do Código Civil Português, que é praticamente idêntico ao artigo 281 do Código Civil Grego, que por sua vez foi inspirado na doutrina alemã da boa-fé.119 Ainda que o diploma português

115 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 683. 116 GALGANO, Francesco. Il Dovere di Buona Fede e L’Abuso Del Diritto. Disponível em: <http://www.personaedanno.it/cms/data/articoli/files/019343_resource1_orig.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2011, p. 30.

117

Apud SIRENA, Pietro. Il DirittoEuropeo dei Contratti D’Impresa: Autonomia negoziale dei privati e regolazione del mercato. Milano: Giuffrè, 2006, p. 277-315.

118 ABREU, Jorge Manuel Coutinho de, 1983, p. 50. 119

“O abuso do direito do Código grego é o produto da doutrina germânica; a sua aplicação desenvolveu-se porque e na medida em que essa doutrina foi efetivamente recebida pelos juristas gregos. O artigo 334º, apesar de ser fruto material dos codificadores gregos, equivale a decênios de doutrina germânica [...]” (CORDEIRO, António Menezes, 2009, p. 76).

tenha se inspirado no grego, que por sua vez se inspirou no alemão, provavelmente por razões linguísticas a doutrina brasileira sobre abuso está muito mais vinculada à portuguesa.

Para a doutrina portuguesa, são abusivas todas as hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultar, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva ao sentido ético-jurídico. O que juridicamente se entende por exercício abusivo de um direito é o comportamento que tenha a aparência de legalidade e, no entanto, viole a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício.120

Daí decorre que o comportamento abusivo não seria senão o exercício de um direito aparente, isto é, o direito na verdade não existiria ou não poderia ser invocado no caso concreto. A aparência estrutural de direito não seria integrada pela sua intenção normativa. A forma estaria presente, mas o valor ausente. Em outras palavras, a realidade fingiria o direito e o comportamento do titular violaria os limites materiais que resultariam do fundamento axiológico para a qualificação jurídica em termos de direito subjetivo.121

Por um critério um pouco diferente, pode-se dizer que haverá abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, traduzir-se na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem.122

Nesse sentido, os direitos subjetivos são instrumentos de realização de necessidades. A invocação de um direito para legitimar comportamento inadequado à sua função seria espúria, não se tratando efetivamente de exercício de um direito, mas sim de aparência de um direito. Essa aparência seria o principal sinal distintivo entre o abuso de direito e a simples ilegalidade.

O abuso de direito retrata uma atuação humana consoante com as leis, mas que seria ilícita por contrariar o sistema na sua globalidade.123

Verifica-se a forte influência exercida pela doutrina portuguesa sobre a brasileira. É plenamente aplicável ao direito brasileiro a lição portuguesa de que a situação apenas

120

ABREU, Jorge Manuel Coutinho de, 1983, p. 19 e 22.

121

SÁ, Fernando Augusto Cunha de. Abuso do Direito. Coimbra: Almedina, 1997, p. 467. 122 ABREU, Jorge Manuel Coutinho de, op. cit., p. 43.

aparenta ser jurídica, mas na realidade o comportamento do titular do direito viola os limites que resultam do fundamento axiológico do direito.

O sistema estabelece exigências que se projetam no interior dos direitos subjetivos e, no caso concreto, é exatamente o desrespeito a essas exigências que leva ao abuso de direito. Um comportamento contrário ao sistema é disfuncional e essa disfuncionalidade constitui a base ontológica do abuso de direito.