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Decasa Açúcar e Álcool S/A

No documento O abuso de direito na recuperação judicial (páginas 155-159)

10 ANÁLISE DE CASOS

10.2 Evolução da jurisprudência

10.2.8 Decasa Açúcar e Álcool S/A

Logo após o julgamento do caso Cerâmica Gyotoku Ltda., o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo julgou recurso interposto por credor em face de decisão que havia concedido a recuperação judicial à Decasa Açúcar e Álcool S/A.289 O Tribunal entendeu que a assembleia-geral de credores somente é soberana quanto às deliberações que obedeçam aos princípios gerais de direito, as normas constitucionais, as regras de ordem pública e a Lei 11.101/2005. Reconheceu que a valoração da viabilidade econômico-financeira do plano de recuperação compete exclusivamente à assembleia-geral de credores. No entanto, determinou que “o reconhecimento de tal situação é condicionado à inexistência de vulneração à Constituição Federal, aos princípios gerais do direito e às normas de ordem pública”.

Naquele caso específico, o Tribunal entendeu que o plano de recuperação violava tais princípios e normas, inclusive ensejando a manipulação do resultado das deliberações assembleares ao criar um cronograma de pagamento com prazo mais curto para os menores

288 Exceto em relação aos créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho vencidos até a data do pedido de recuperação judicial, como dito anteriormente.

289

Agravo de Instrumento 0168318-63.2011.8.26.0000, Câmara Reservada à Falência e Recuperação, Rel. Des. Pereira Calças, julgado em 17.4.2012. No mesmo sentido, Agravo de Instrumento 0170427-50.2011.8.26.0000, Câmara Reservada à Falência e Recuperação, Rel. Des. Pereira Calças, julgado em 17.4.2012.

credores e mais extenso para os maiores credores.290 Entendeu que o plano era nulo por conter autorização genérica e automática para alienação de ativos integrantes do ativo permanente do devedor, proibir o ajuizamento de ações contra sócios, cônjuges, avalistas e garantidores em geral por débitos da recuperanda, proibir o protesto cambial e a comunicação do inadimplemento aos cadastros de proteção ao crédito, sujeitar os credores legalmente não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial (por exemplo, credores garantidos por alienação fiduciária), ainda por cima equiparando-os aos credores quirografários, violar o princípio da isonomia dos credores, prever o início dos pagamentos aos credores após o prazo bienal do artigo 61, caput, da Lei 11.101/2005, e afastar correção monetária e juros.

Nas palavras do Desembargador Pereira Calças, o plano de recuperação de Decasa Açúcar e Álcool S/A violava “a Lei nº 11.101/2005, norma de ordem pública, escancaradamente, atropelando-se o Parlamento e o Poder Judiciário, ou seja, o plano apresentado coloca-se acima da Lei, sendo, portanto, nulo”.

O Tribunal decretou a nulidade da deliberação assemblear e determinou a apresentação de novo plano de recuperação, a ser confeccionado de acordo com a Constituição Federal e a Lei 11.101/2005, sob pena de decretação de falência.

De forma geral, concorda-se com a solução adotada pelo Tribunal e ressalta-se a sua importância para impedir a implementação de planos de recuperação violadores do ordenamento jurídico.

Vale mencionar que a autorização genérica e automática para alienação de ativos integrantes do ativo permanente do devedor viola frontalmente o artigo 66 da Lei 11.101/2005 e a proibição de ajuizamento de ações contra sócios, cônjuges, avalistas e garantidores por débitos da recuperanda viola os artigos 6º e 49, parágrafo 1º, da Lei 11.101/2005.

290 Nesse sentido, o Tribunal verificou que a proposta de pagamento acordada no plano de recuperação proporcionava um pagamento de forma escalonada, de modo que os menores credores receberiam antes dos maiores credores, ainda que eles pertencessem à mesma classe. O Tribunal entendeu que essa forma de pagamento criava um conflito de interesses entre os credores (“menores contra maiores”), manipulando o quórum de aprovação do plano. De acordo com o Tribunal, “a quebra da isonomia não pode ter por escopo agradar os menores credores para que estes, assim motivados e atraídos pela benesse concedida, aprovem o plano que desfavorece os titulares de maiores créditos”. Naquele caso específico, verificou-se que os menores credores atingiam 50,92% do total de fornecedores e a recuperanda poderia, em tese, até mesmo propor não pagar nada aos maiores fornecedores e ainda assim ter o plano aprovado. Segundo o Tribunal, o plano imporia aos maiores credores sacrifícios superiores aos que eles suportariam no caso de falência. Por essa e outras razões, decretou a nulidade da deliberação assemblear.

A proibição de protesto cambial também viola a lei. O protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida.291 Os credores têm o legítimo direito de efetuar o protesto de instrumentos de dívida. Mais do que isso, o protesto é necessário para embasar o pedido de falência e, em determinados casos, resguardar direito de regresso contra garantidores.292

No entanto, diverge-se em relação a um ponto específico do acórdão. O fato de o plano de recuperação prever o tratamento diferenciado aos credores de uma mesma classe, estipular o início dos pagamentos após o prazo bienal de supervisão judicial, proibir a comunicação do inadimplemento aos órgãos de proteção ao crédito e afastar a incidência de correção monetária e juros sobre a dívida não acarreta a sua nulidade. Pelos motivos expostos nas seções 8.4.1.2, 8.4.1.3 e 10.2.7, essas questões podem ser negociadas pelas partes no plano de recuperação. Entende-se que a sua invalidação poderia ter sido fundamentada pelo Tribunal na teoria do abuso de direito, e não na das nulidades.

Já a questão da sujeição de credores legalmente não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial merece uma análise separada. A Lei 11.101/2005 estabelece, no artigo 49, quais credores estão sujeitos à recuperação judicial, expressamente excepcionando, nos parágrafos 3º e 4º, alguns créditos que, pela sua natureza, não se submetem aos efeitos da recuperação judicial.

De fato, não está na alçada do devedor estipular quais créditos se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial, tratando-se de matéria já definida pelo legislador. Cabe indagar, porém, se essa estipulação seria válida se contasse com a anuência do respectivo credor excepcionado pela lei. Por exemplo, poderia um credor titular da posição de proprietário fiduciário abrir mão dessa posição e optar por se submeter à recuperação judicial?

Ao estipular que os créditos detidos por credores com propriedade fiduciária não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial, o artigo 49, parágrafo 3º, da Lei 11.101/2005 buscou proteger o direito de propriedade desses credores. Parece apropriada uma interpretação teleológica e construtiva de tal artigo, propiciando aos credores a possibilidade

291

Nos termos do artigo 1º da Lei 9.492/1997.

292 Nesse sentido, nos termos do artigo 94, inciso I, da Lei 11.101/2005, o protesto é um dos requisitos para requerimento de falência do devedor que não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título executivo. Já pela Lei das Duplicatas, o portador que não efetuar o protesto da duplicata no prazo de 30 (trinta) dias contado da data do vencimento perderá o direito de regresso contra os endossantes e avalistas. Existe previsão semelhante em relação às letras de câmbio na Lei Uniforme de Genebra, promulgada pelo Decreto 57.663/1966.

de exercer ou não o direito derivado da propriedade fiduciária e dos demais instrumentos lá previstos.

Uma interpretação literal da lei no sentido de que esses créditos jamais poderiam se sujeitar à recuperação judicial traria prejuízo aos credores, que seriam obrigados a excutir o bem em qualquer hipótese, e também ao próprio devedor, que seria privado de um bem relevante à atividade empresarial.293

Entende-se que poderia ser admitida a renúncia por parte dos credores à prerrogativa de não se submeterem à recuperação judicial, com a consequente opção pelo recebimento dos créditos na forma prevista no plano de recuperação. Isso iria de encontro à finalidade econômica e social da Lei 11.101/2005 e aumentaria as chances de recuperação do devedor.

Lembre-se que, apesar de o artigo 49, parágrafo 3º, da Lei 11.101/2005, dispor que determinados créditos não estão sujeitos à recuperação judicial, não há qualquer proibição no referido dispositivo legal de sua inclusão no plano de recuperação.

Ao analisar o referido artigo, Manoel Justino Bezerra Filho leciona que:

[...] a Lei, ao dizer que tais créditos não se submetem à recuperação judicial, mesmo assim não proibiu a inclusão deles no plano. Se houver - embora extremamente improvável - anuência do credor, estes valores podem ser incluídos na decisão que concede a recuperação na forma do art. 58, se houver concordância do credor.294

Assim, caso o credor concordasse com a sujeição aos efeitos da recuperação judicial, o seu crédito poderia ser disciplinado no plano de recuperação.295 Nesse caso, porém, o credor deveria ser classificado como quirografário, não sendo admitida a sua classificação como credor com garantia real. Isso porque o credor teria voluntariamente renunciado à proteção

293 Em contratos de garantia, fica a critério do credor a execução pura e simples, visando ao pagamento da dívida, ou a excussão da garantia. A excussão da garantia é um direito, uma prerrogativa do credor, e não uma obrigação. Direitos são, por natureza, passíveis de renúncia, a menos que sejam irrenunciáveis, como o direito à vida, à liberdade, à personalidade.

294 BEZERRA FILHO, Manoel Justino, 2007, p. 143.

295 Há um julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que analisou essa questão (Agravo de Instrumento 428.701-4/5-00, Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais, Rel. Des. Pereira Calças, julgado em 6.12.2006). O credor titular da posição de proprietário fiduciário renunciou à prerrogativa do artigo 49, parágrafo 3º, da Lei 11.101/2005 e requereu a sua sujeição à recuperação judicial na qualidade de credor com garantia real. Com base nos artigos 49, parágrafo 3º, e 39, parágrafo 1º, da Lei 11.101/2005, o Tribunal entendeu que o credor fiduciário não se submete aos efeitos da recuperação judicial e não tem direito de voto em assembleia-geral de credores. Apesar de o credor ter oposto embargos de declaração visando ao pronunciamento do Tribunal acerca da possibilidade de renúncia da prerrogativa do artigo 49, parágrafo 3º, o Tribunal rejeitou os embargos por entender que essa questão não havia sido levantada no agravo de instrumento.

concedida pelo artigo 49, parágrafo 3º, da Lei 11.101/2005 e a garantia real não se presume, mas sim depende de diversas formalidades para ser constituída (incluindo contrato detalhado, registro e, em alguns casos, transferência da posse do bem dado em garantia).296

Daí decorre a conclusão de que, mediante a anuência do respectivo credor, poderia ser admitida a sua inclusão no plano de recuperação como credor quirografário, por mais que ele não estivesse legalmente sujeito aos efeitos da recuperação judicial. No entanto, a sua inclusão à revelia seria manifestamente ilegal.

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