• Nenhum resultado encontrado

2 PLANO DE RECUPERAÇÃO

2.1 Natureza

2.1.2 Regime atual

A recuperação judicial difere em muito da concordata. Não mais se trata de favor legal, mas sim de acordo entre devedor e credores, formalizado em um plano de recuperação votado em assembleia-geral de credores e homologado judicialmente quando da concessão da recuperação judicial.

Doutrina e jurisprudência já se manifestaram nesse sentido, determinando que a recuperação judicial não mais constitui favor legal.40 Ainda que praticamente inexista dúvida quanto ao fato de a recuperação judicial não mais constituir favor legal, a discussão sobre a natureza legal do plano de recuperação e do próprio processo de recuperação judicial é bastante intrincada.

A maioria dos doutrinadores entende que o plano de recuperação tem natureza contratual.41 Ao destacarem a natureza contratual do plano, porém, utilizam expressões diversas como “negócio jurídico privado sob supervisão judicial”42, “contrato judicial, com feição novativa”43 e “negócio de cooperação”44, destacando as peculiaridades de o plano estar sujeito à homologação judicial e ao cumprimento das exigências legais.

39

ABRÃO, Nelson. Curso de direito falimentar. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 176.

40 MANDEL, Julio Kahan. Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas anotada. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 93; BENETI, Sidnei Agostinho. O Processo da Recuperação Judicial. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito Falimentar e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 228-230; Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Agravo de Instrumento 505.750.4/9-00, Câmara Reservada à Falência e Recuperação, Rel. Des. Pereira Calças, julgado em 4.3.2009. 41 MARZAGÃO, Lídia Valério. A Recuperação Judicial. In: MACHADO, Rubens Approbato (Coord.).

Comentários à Nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 94;

MENEZES, Mauricio Moreira Mendonça de, 2012, p. 242-243. 42

PENTEADO, Mauro Rodrigues. Comentários à Lei de Recuperação e Falência: Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. In: SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes (Coord.), 2007, p. 84-85.

43

CAMPINHO, Sergio. Falência e recuperação de empresa: o novo regime da insolvência empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 12-13.

44 FRANCO, Vera Helena de Mello; SZTAJN, Rachel. Falência e recuperação da empresa em crise. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 234.

Outros ressaltam o caráter processual e legal da recuperação judicial, criticando a teoria contratual por entender que ninguém pode ser obrigado a contratar contra a própria vontade.45 Paulo Sérgio Restiffe chega a dizer que a relação jurídica formada entre devedor e credores não decorre de um negócio jurídico, mas sim da tutela jurisdicional prestada.46

Um terceiro grupo entende que a recuperação judicial tem natureza de direito econômico.47 Nesse grupo está Jorge Lobo, que, apesar de ressaltar os diversos aspectos envolvidos na recuperação judicial (ato coletivo processual, favor legal e obrigação ex lege), conclui se tratar de instituto de direito econômico.48

A despeito da grande divergência doutrinária sobre o tema, a jurisprudência consolidou o entendimento de que o plano de recuperação tem natureza contratual. Em diversas oportunidades, os tribunais estaduais determinaram a “inegável natureza contratual” do plano de recuperação.49 Mais especificamente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo determinou que o ordenamento jurídico confere ao plano de recuperação “a natureza de contrato que se constitui pela livre negociação entre credores e empresa devedora, que é complementado pela decisão judicial concessiva da recuperação”.50

Adere-se ao entendimento de que o plano de recuperação tem natureza eminentemente contratual, principalmente considerando que a sua proposta, redação, discussão, modificação e votação derivam de ampla e livre negociação entre devedor e credores em assembleia- geral. Além disso, o plano de recuperação implica a novação de todos os créditos anteriores ao pedido, obrigando o devedor e os credores e ele sujeitos. Vale dizer, a aprovação do plano e concessão da recuperação judicial faz surgir obrigações novas, que substituem as anteriores.

45

SCHEINMAN, Maurício. Da natureza jurídica da recuperação judicial e da inexistência de concurso de

credores no processo e da necessidade de exato cumprimento do plano apresentado. Disponível em:

http://www.blogdoscheinman.blogspot.com/2011/03/da-natureza-juridica-da-recuperacao.html. Acesso em: 4 ago. 2012, p. 4 e 6.

46

RESTIFFE, Paulo Sérgio. Recuperação de Empresas: de acordo com a lei 11.101, de 09.02.2005. Barueri: Manole, 2008, p. 45 e 243.

47 FARIA, Ely de Oliveira. Reflexões acerca do abuso do direito de voto de credor contra o plano de recuperação e soluções. Revista de Direito Empresarial e Recuperacional, São Paulo, 2010, p. 34.

48 LOBO, Jorge. Da Assembléia-Geral de Credores. In: TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique (Coord.), 2010, p. 172-176.

49 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Agravo de Instrumento 580.551.4/0-00, Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais, Rel. Des. Pereira Calças, julgado em 19.11.2008; Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Agravo de Instrumento 1.0079.07.348871-4/001, 5ª Câmara Cível, Rel. Des. Dorival Guimarães Pereira, julgado em 29.5.2008; entre outros.

50 Agravo de Instrumento 994.09.282082-5, Câmara Reservada à Falência e Recuperação, Rel. Des. Pereira Calças, julgado em 6.4.2010.

Inobstante a sua natureza eminentemente contratual, não se pode ignorar o fato de que algumas peculiaridades do plano de recuperação colocam o caráter contratual em xeque. Pode-se mencionar que o plano de recuperação obriga os credores ausentes e dissidentes e somente implica a novação dos créditos se o juiz conceder a recuperação judicial. Além disso, o descumprimento pelo devedor das obrigações que vencerem no prazo de dois anos contados da concessão da recuperação judicial acarreta a convolação da recuperação judicial em falência, reconstituindo as obrigações nas condições originalmente contratadas. Tais peculiaridades fazem com que o plano de recuperação perca algumas características contratuais e assuma outras processuais.

Em relação à primeira peculiaridade, não se pode ignorar que a vinculação dos credores ausentes e dissidentes ao plano de recuperação caracteriza a formação de um contrato em uma situação onde inexistiu o consentimento desses credores.

O consentimento das partes é elemento constitutivo do contrato, o qual surge exatamente quando são integradas, fundidas e harmonizadas as vontades de cada parte.51 A princípio, ninguém pode ser obrigado a aceitar um contrato contra a sua vontade. No entanto, essa obrigação pode existir, excepcionalmente, em algumas hipóteses.

Uma delas é o contrato obrigatório, onde as partes são obrigadas a contratar independentemente da sua vontade. A obrigação de contratar pode ser imposta por lei52 ou resultar do prévio comportamento das partes (por exemplo, no caso de contrato preliminar).53 Nesse último caso, a obrigação de contratar pode ser até mesmo cumprida por sentença judicial substitutiva, nos termos do artigo 464 do Código Civil, que prevê a possibilidade de o juiz suprir a vontade da parte inadimplente, conferindo caráter definitivo ao contrato preliminar.

O contrato obrigatório é uma clara exceção ao princípio de que toda pessoa pode livremente se recusar a contratar. De fato, a liberdade de recusar um contrato ou mesmo a determinação do conteúdo do contrato vem sendo restringida por diferentes processos e

51 GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. Rio de Janeiro; Forense, 2007, p. 56-57. 52

Por exemplo: prestação de serviços públicos ou de assistência vital, seguro obrigatório, locação prorrogada por determinação legal, contratos celebrados pelos que exercem atividade econômica em caráter de monopólio e contratos de direito de família (Ibid., p. 31, 34, 359, 360).

técnicas negociais. Esse fenômeno ocorre não apenas nos contratos obrigatórios, mas também nos contratos de adesão, acordos normativos54, acordos associativos, entre outros.

Como ensina Orlando Gomes, essas restrições decorrem da tendência autoritária de substituição de regras dispositivas por regras imperativas, fazendo surgir novas figuras na área da autonomia privada, “mas tão esquisitas que se duvida de seu caráter contratual”.55 Essas mudanças muitas vezes decorrem da necessidade de intervenção estatal sob a ótica das repercussões dos contratos na vida econômica e social, a fim de evitar ou coibir abusos.

As lições sobre os contratos obrigatórios podem ser muito bem utilizadas no estudo da natureza do plano de recuperação. O legislador previu a possibilidade de aprovação do plano de recuperação contra a vontade de determinados credores exatamente para garantir que prevalecesse a vontade da maioria e para evitar que os credores que tivessem uma posição individualista ou egoísta impossibilitassem a aprovação de um plano que atendesse aos interesses da maioria. Com isso, buscou viabilizar a consecução do propósito maior da recuperação judicial, que é a preservação da empresa.

De fato, existe uma vinculação que independe do consentimento de todos os credores. No entanto, apesar de isso realmente colocar em xeque a natureza contratual do plano de recuperação e dar margem a questionamentos, viu-se que a situação não é exclusiva à recuperação judicial. Nos contratos obrigatórios ocorre exatamente isso e as partes a ele se vinculam independentemente da sua vontade.

Além disso, a sujeição de todos os credores ao plano de recuperação decorre do princípio das deliberações majoritárias nas relações empresariais e da vinculação de ausentes e dissidentes.56 Nesse sentido, a maioria dos credores foi autorizada pela Lei 11.101/2005 para servir como fonte de declaração de vontade dos demais credores. Vale reiterar que a deliberação da assembleia-geral de credores considera o interesse da coletividade dos credores, tendo em vista o princípio da preservação da empresa.

A necessidade de concessão da recuperação judicial pelo juiz também não parece suficiente para descaracterizar a natureza contratual do plano. Independentemente do importante papel desempenhado pelo juiz, é fundamental a participação do devedor e dos credores em relação à redação e aprovação do plano. De qualquer forma, lembre-se que nos

54

Por exemplo, o acordo ou contrato coletivo de trabalho. 55 GOMES, Orlando, 2007, p. 33.

contratos obrigatórios também existe a possibilidade de o juiz suprir ou completar a vontade das partes, como no caso do contrato preliminar ou da locação prorrogada por determinação legal. A homologação do plano quando da concessão da recuperação judicial apenas complementa a vontade do devedor e dos credores.

Por fim, a peculiaridade de convolação em falência no caso de descumprimento das obrigações que vencerem no prazo de dois anos contados da concessão da recuperação judicial também não afasta o caráter contratual do plano de recuperação. Essa peculiaridade deve ser vista como uma condição resolutiva do plano e da novação dele decorrente.57

Assim, por mais que o plano de recuperação combine aspectos contratuais e processuais, o aspecto contratual prevalece. Trata-se de um contrato plurilateral peculiar, mas ainda assim contrato.

A caracterização do plano de recuperação como contrato -- negócio jurídico por excelência58 -- é o ponto de partida para a aplicação da teoria do abuso de direito, como será explicado adiante.