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Caracterização da zona aversiva

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6.1 CARACTERIZAÇÃO DAS ZONAS DO PERFIL CONCEITUAL

6.1.2 Caracterização da zona aversiva

Esta zona do perfil conceitual é caracterizada por interpretações da química como agente poluidor, de contaminação ou adulteração e que, portanto, deve ser evitada. Enunciados característicos dessa perspectiva podem ser ilustrados a partir de ideias como a de que “a química é perigosa”, “poluição química”, ou de que um produto pode ser “livre de química”, por exemplos. Em termos axiológicos, pode-se associar moralmente o que é bom ao que é “natural”, e o que é “sintético”, ao que é ruim/mau, isto é, químico.

Outros componentes valorativos estão implicados na forma de ver a química como um agente, pois, uma parcela significativa da opinião pública concebe a química como uma potência maléfica e mortífera, responsável, em boa parte pelos problemas ambientais. O adjetivo “químico” denota algo de qualidade duvidosa com riscos potenciais para a saúde e que, portanto, está distante das qualidades originais dos produtos naturais (LASZLO;

GREENBERG, 1991; KAUFFMAN, 1992; CHAMIZO, 2011). Os enunciados a seguir, obtidos a partir da análise do domínio microgenético, ilustram esse modo de pensar.

“(...) Não, lógico que há produtos que possui Química e faz mal (...)” (Q2L1HFQ)

“Sim, porque tem produto hoje que ao conter química faz mal a saúde em alguns aspectos.” (Q2L11EaD)

As formas de falar expressas nos enunciados anteriores ilustram alguns compromissos ontológicos que dialogam com aqueles já identificados na zona monista, já que em ambas as perspectivas, a química é concebida como aspecto material ou entidade contida nos corpos. Na zona aversiva sobressai, entretanto, a atribuição axiológica da entidade, química, como sendo má, prejudicial e/ou danosa.

A imagem pública da química possui uma longa história e foi formada a partir de um conjunto de fatores constituindo um complexo fenômeno social e cultural de profundas raízes (SCHUMMER; BENSAUDE-VINCENT; TIGGELEN, 2007). O termo irônico “ciência impura” é usado por Bensaude-Vincent e Simon (2008) para evidenciar, dentre outros aspectos, uma imagem muito frequente da química como associada à poluição e, portanto, responsável pela contaminação do solo, da água e do ar que respiramos. O contexto histórico no qual a moderna indústria química se desenvolveu tem se prestado ao papel de vilão. Além disso, temos ainda o legado da tradição alquímica, dos venenos, da feitiçaria, das substâncias perigosas, e mais contemporaneamente, a primeira guerra mundial (ou guerra química), acidentes industriais e a degradação ambiental.

A hostilidade generalizada em relação à química levou as pessoas a frequentemente atribuir conotações negativas aos produtos químicos percebendo-os como potencialmente perigosos. Laszlo (2006) descreve a “quimiofobia” como o medo da química ou de produtos químicos induzidos por alguns problemas de poluição largamente documentados e divulgados. Nesse sentido, o par oposto “natural” versus “químico” pode determinar até mesmo escolhas por indivíduos.

Segundo Bensaude-Vincent e Simon (2008), essa dicotomia entre “natural” e “químico” traduz a impressão duradoura deixada por pouco mais de um século e meio da pesada indústria química e seus ramos sintéticos cada vez mais prolíficos. Os autores destacam ainda que uma das ironias da história da química consiste no fato de que o protesto inicial contra a poluição do meio ambiente por químicos surgiu no mesmo momento em que eles não só constituíam um corpo profissional especializado em questões de higiene e

segurança alimentar, como também aprimoravam técnicas agrícolas e inovações que salvariam vidas no setor farmacêutico. Os novos fertilizantes químicos, por exemplo, foram aclamados por muitos como meios para acabar com a fome no mundo.

Em outros enunciados da nossa investigação no domínio microgenético é possível perceber uma distinção ontológica entre pensar a química em si, e o seu uso pelo homem, sendo possível falar de um “lado negro” da química.

“(...) existe o lado ruim da química, quando é usada para o desenvolvimento de armas de destruição em massa.” (Q6L4PFC)

“Sim, apesar da química ter seu lado bom para humanidade também acaba sendo prejudicial quando a relaciona a saúde. Alimentos por exemplo, quando contém química não se compara a um natural.” (Q2L10EaD)

Em outros casos, é possível identificar a partir dos nossos dados empíricos, um reconhecimento crítico acerca da existência desse modo de pensar sobre química no público em geral, desprovido de conhecimentos da ciência química.

“Obviamente que não! Tratar a química como sendo somente algo ofensivo à natureza humana é algo totalmente de um discurso que veio de alguém completamente ignorante.” (Q2L1PFC)

A partir da última citação, é interessante destacar como compromissos epistemológicos que estão na base de concepções como aquelas apresentadas na zona monista – de que química está presente em tudo –, e também presentes aqui, são mais compartilhadas por licenciandos e estudantes de química, enquanto que na zona aversiva, essa atitude de repulsa ou antipatia está mais difundida entre o público geral e leigo no assunto. Bensaude- Vincent e Simon (2008) chegam a apontar que esse medo da química, em certos casos, pode ser considerado como imaginado, e não real.

Esse último aspecto pode ser destacado a partir de Bachelard (1996) em termos de um obstáculo epistemológico denominado de “experiência primeira”, incrustado no conhecimento não questionado, e caracterizado por colocar a experiência antes e acima da crítica. Esse tipo de obstáculo epistemológico apoia-se diretamente no dado claro, nítido, seguro, e é sustentado por um empirismo evidente e básico. Para ilustrar seu pensamento, o filósofo francês fornece alguns exemplos de como o medo manifestado em casos como o do trovão e da eletricidade têm por base esta filosofia. Nesse sentido, temos uma ideia filosófica que exalta a natureza, já que “o espírito pré-científico sempre acha que o produto natural é mais rico do que o artificial” (BACHELARD, 1996, p.39).

A noção de natureza em química discutida por Schummer (2003b) em diferentes períodos históricos, desde as concepções alquimistas às contemporâneas pesquisas com medicamentos, também nos auxilia na caracterização desta forma de pensar sobre química. Na análise do autor, a noção de natureza caracterizada como “estática”, tem sua origem em uma tradição cristã, fundada em uma ontologia arcaica, que distingue propriedades essenciais de propriedades acidentais e confere ao conceito de natureza um caráter tanto descritivo quanto normativo, isto é, um determinado conjunto de entidades e processos que não devem ser alterados no nível das propriedades essenciais. Nesse sentido, os químicos estariam mudando aquilo que é criação divina, o natural, para o que é artificial, portanto, distante das qualidades fundamentais da matéria.

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