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Caracterização da zona epistêmica

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6.1 CARACTERIZAÇÃO DAS ZONAS DO PERFIL CONCEITUAL

6.1.3 Caracterização da zona epistêmica

Esta zona do perfil conceitual é composta por interpretações e ideias acerca de química como conhecimento, um saber sistematizado, a química como uma área do conhecimento científico, ou como uma disciplina (e suas subdisciplinas) ou matéria do currículo escolar, em outras, palavras, o sistema teórico-conceitual da química, veiculado através dos seus discursos nas diferentes instâncias. São típicas as formas de falar expressadas em enunciados como aqueles que se referem à química como “a ciência que estuda a...”, “uma ciência da natureza”, “uma ciência central”, etc.

Esse modo de pensar parece ser a primeira escolha evocada pelos sujeitos quando se solicita que definam química em diferentes contextos, como podemos observar nos enunciados abaixo, extraídos de respostas ao questionário.

“O que vem a mente é uma ciência que estuda a transformação da matéria.” (Q1L13EaD)

“Quando ouço a palavra ‘química’ me vem a mente uma imagem de ciência que estuda as transformações da natureza.” (Q1L7PFC)

“Ao ouvir essa palavra me lembro do seu sentido próprio de ciência que se comunica com outras, entretanto, possui a sua autonomia” (Q1L7HFQ)

Tomando como referência o contexto didático-pedagógico, expressões como “química é difícil”, “conceitos incompreensíveis”, “conteúdo abstrato”, “chata”, “muitos cálculos”, utilizadas para se referir ao seu estudo, também ilustram percepções dos sujeitos acerca da química inseridos nesta zona do perfil conceitual.

Como apontamos na análise dos questionários, na investigação do domínio microgenético, essa dimensão disciplinar é muito recorrente, em especial nas respostas dos licenciandos da EaD ao questionário, que explicitamente pensam a química quase que exclusivamente na base do conhecimento químico, o seu produto, ao invés do seu processo de produção.

“Química é uma disciplina bastante contextualizada, que quando ouvimos ou pensamos, vem em mente várias situações do cotidiano e por ser contextualizada envolve diversas disciplinas como matemática, ciências, história, interpretação de texto, entre outros.” (Q1L1EaD)

Ao definirmos esta zona, não estamos propondo aqui uma dicotomia teoria-prática, que consideramos ser ilusória para a química, antes, o que queremos é dar um foco na dimensão do pensamento químico, na tentativa de se identificar compromissos que estabilizam este modo de pensar a noção de Química.

Muitas vezes, encontram-se definições de química que são híbridos entre alguns dos modos definidos anteriormente. Como destaca Laszlo (2013), muitas pessoas não conseguem distinguir entre uma definição e uma propriedade, assim, a química pode ser tanto vista como intermediário da biologia e da física e, como também na forma de uma generalização que atribui papel importante a química, quando denominada de “a ciência central”. Essa terminologia é também analisada por Tontini (1999), ao considerar a amplitude do campo de aplicação da química contemporânea, compreendendo ramos da biologia, ciências da terra e ciências dos materiais, por exemplo.

Embora bastante difundida essa atribuição da química como ciência central, vale mencionar uma problematização do termo, como em Balaban e Klein (2006), que na base de um trabalho cienciométrico, parece apontar a bioquímica como estando mais interconectada a outras ciências, e até mesmo a matemática – considerada como ciência na visão dos autores – como permeando as demais ciências e, portanto, mais “central” do que a química.

A caracterização dos compromissos epistemológicos, ontológicos e axiológicos desta zona dependem, especificamente, do tipo de concepção de ciência e de conhecimento que possuem os sujeitos que evocam tal sentido para a química. Em razão disso, haveriam diversos enfoques à luz da Teoria do Conhecimento (HESSEN, 2000), que forneceriam uma referência para tal caracterização, desde as possibilidades do conhecimento (posições do dogmatismo ao ceticismo), da origem (concepções que vão do racionalismo ao empirismo), da essência (das soluções propostas pelo objetivismo ao idealismo) e dos valores implicados

na sua produção, que estariam na base de concepções positivistas, construtivistas, realistas ingênuas, entre outras, tão bem evidencias na literatura (GIL-PÉREZ et al 2001). Do ponto de vista da Filosofia da Química, alguns compromissos podem ser destacados quando se dirige a atenção para essa dimensão epistêmica da ciência química, tais como aqueles que identificamos e discutimos brevemente a seguir.

Para Schummer (2006), a química é uma ciência seriamente classificatória de um ponto de vista ontológico, que requer o tratamento com muitas noções abstratas. Associada a essa característica, a linguagem própria da química implica em que seus conceitos caracterizam-se por dualidade (por exemplo, ácido-base, nucleófilo-eletrófilo, fraco-forte, eletropositivo-eletronegativo) e circularidade (por exemplo, para se definir o que é acido é preciso definir o que é base, e vice-versa), tal como discute Laszlo (1999).

O corpo teórico da química é caracterizado como sendo relacional e emergente a partir dos dados experimentais (BERNAL; DAZA, 2010, STEIN, 2004, SCHUMMER, 1997c). No entanto, isso não implica falar de um empirismo fácil e essencialmente indutivista. Da mesma forma que as explicações geradas pela química se pautam por um realismo caracterizado como operativo, prático e contextual, oposto ao realismo ingênuo (VIHALEMM, 2011). E de um ponto de vista axiológico, a função explicativa da ciência, incluindo sua função preditiva, podem ser considerados como valores epistêmicos importantes no contexto de aplicação (ECHEVERRIA, 1995).

Sjöström (2007) analisa o discurso dominante da química sugerindo um discurso complementar, no qual, em um nível disciplinar, importantes compromissos epistemológicos são identificados quando da fundamentação do discurso da química basear-se no objetivismo, no racionalismo, e reducionismo molecular. Para esse autor, em um nível social, o discurso químico é baseado no modernismo, no qual, vigora a ideia de que a ciência gera constante progresso para a melhoria da sociedade.

A importância do contexto educacional para o desenvolvimento da química é bem pertinente na sua história. Alguns autores defendem que o contexto educativo foi decisivo para o crescimento da química como ciência. Alvarez, Sales e Seco (2008) irão comentar que Boyle, Lavoisier, Dalton e Mendeleev escreveram livros para representar importantes passos no desenvolvimento dos conceitos de elementos químicos e de métodos de classificação de elementos, evidenciando-se que o desenvolvimento da química se origina de uma preocupação pedagógica. Bachelard sinaliza também isso ao indicar que a química progride

por ideias sistemáticas, e de que, por isso, tantos químicos, ao buscar uma visão geral da história de sua ciência, tenham sido levados a livros de filosofia química (BACHELARD, 2009).

Conforme destacado na análise do domínio sociocultural, o processo de constituição de um corpo teórico próprio, um conjunto de saberes sistematizados e divulgados ganha destaque com os trabalhos pioneiros de Boyle, no qual a busca pela incorporação da química como domínio científico legítimo junto à então chamada “filosofia natural”, via um projeto epistemológico de integrá-la a esse novo saber universalizado, introduzindo, portanto, o universo naturalista no uso da química (ALFONSO-GOLDFARB, 2001). Nesse processo de transição e conquista de um território, a química no século XVII surge como uma disciplina no sentido de “matéria ensinada”, vinculada à medicina e às práticas artesanais como metalurgia, perfumaria. No século XVIII, começa, então, a ser reconhecida como uma ciência, autônoma e legítima, com bases sólidas, uma linguagem específica e constituída por uma comunidade de pesquisadores (BENSAUDE-VINCENT; STENGERS, 1992).

Estamos pensando a caracterização da química como disciplina, com base na perspectiva de disciplina apontada por Lopes (1999), que compreende o conhecimento escolar como um conhecimento selecionado a partir de uma cultura social mais ampla, que passa por um processo de transposição didática, ao mesmo tempo que é disciplinarizado, e que se constitui no embate com os demais saberes sociais (seja o científico, cotidiano, popular), diferenciando-se dos mesmos. Sendo este, portanto, o resultado de um processo marcado por tensões ideológicas.

Analisando um contexto mais local, alguns momentos históricos importantes da constituição do ensino de química no Brasil são discutidos por Chassot (1996), que traz elementos importantes para uma análise da constituição sócio-histórica da disciplina de química, apontando registros relacionados ao seu ensino já no século XIX. Segundo o autor, o primeiro decreto oficial que se refere ao ensino de química no Brasil é o de 6 de julho de 1810, que cria uma disciplina de química na Real Academia Militar. Chassot (1996) cita uma Carta de Lei de 4 de dezembro de 1810 que trazia informações sobre organização curricular e os tipos de conteúdos a serem trabalhados, como os de química, especialmente voltados para o conhecimento das minas. Ou seja, a adoção de uma perspectiva marcadamente utilitarista do conhecimento químico.

De acordo com Rosa e Tosta (2005) a disciplina de química passa a ser ministrada de forma regular no currículo do Ensino Secundário no Brasil, a partir de 1931, com a Reforma Francisco Campos. No levantamento histórico das autoras, foi possível perceber que nos documentos da época, os objetivos para o ensino de química parecem voltados para a apropriação de conhecimentos específicos, além da tarefa de despertar o interesse científico nos estudantes e de enfatizar a sua relação com a vida cotidiana. Na década de 1960, a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que instituía o ensino profissionalizante em nível médio, conferiu ao ensino de química um caráter técnico-científico.

Em tempos mais recentes, o movimento de mudanças curriculares, iniciado a partir da publicação de documentos oficiais pelo Ministério da Educação, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, institui um discurso para a química que aponta para outros aspectos envolvendo a formação de competências e habilidades para o exercício da cidadania. Dentre outros aspectos, é destacada a importância de se compreender que a química está presente e deve ser reconhecida nos alimentos e medicamentos, nas fibras têxteis e nos corantes, nos materiais de construção e nos papéis, nos combustíveis e nos lubrificantes, nas embalagens e nos recipientes. (BRASIL, 1999, p.10). Ou ainda como uma habilidade específica de:

“identificação da presença do conhecimento químico na cultura humana contemporânea em diferentes âmbitos e setores, como os domésticos, comerciais, artísticos, desde as receitas caseiras para limpeza propagandas e uso de cosméticos, até em obras literárias, músicas e filmes” (BRASIL, 2002, p.92).

É importante salientar ainda que, de acordo com Lopes (2005), as disciplinas, de forma geral, compreendem saberes com bases epistemológicas mais ou menos explícitas, porém não são essas bases que definem a concepção de disciplina escolar, pois, as disciplinas escolares atendem a finalidades sociais decorrentes do projeto social da escolarização, não se constituindo em simples reprodução de divisões de saberes do campo científico. Apesar disso, reconhecemos e reafirmamos a estreita relação entre a perspectiva disciplinar da química e as concepções de natureza da química, isto é, o potencial que o ensino pode exercer na visão dos estudantes sobre o conhecimento químico, e sua dimensão epistêmica, estabilizando assim, compromissos epistemológicos, ontológicos e axiológicos diversos.

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