• Nenhum resultado encontrado

As cartografias psicossociais descrevem um espaço ou um território em sua totalidade objetiva e subjetiva: expressam como territórios e lugares compreendem mundos vivi- dos, que são tanto espaciais como psicossociais, e que contêm linguagens e padrões de comportamento que criam uma paisagem com fronteiras mais ou menos abertas. Considerando que o território é um significante básico na vida da favela, e que a travessia e o controle de fronteiras constituem práticas essenciais que regulam a vida do Eu e da comunidade, as cartografias psicossociais de cada comunidade estudada são chaves para se compreender as rotas de inclusão e de exclusão que estão abertas aos seus morado- res. Essas cartografias combinam elementos do mundo da vida da favela com elementos socioespaciais relacionados à geografia e à localização de cada comunidade em relação à cidade como um todo. Como em qualquer mapa, elas são determinadas por fronteiras; estas são desenhadas em função das relações entre as favelas e a cidade, e podem ser mais ou menos porosas, dependendo de uma combinação de elementos psicossociais

185

As rotas das sociabilidades subterrâneas: trajetórias individuais e comunitárias

e geográficos. A sistematização da natureza das fronteiras em cada uma das comuni- dades permitiu a construção de uma tipologia fundamentada nos seguintes indicadores: instituições sociais da comunidade, localização em relação à cidade, conectores urbanos, atividades de lazer, e principais eventos e representações sociais da comunidade. Esses elementos estão reunidos na Tabela 6.1, que mostra a variação dos níveis de porosidade das fronteiras de cada comunidade, que podem ser mais fechadas ou mais abertas. tabela 6.1 Indicadores da densidade das fronteiras nas

comunidades estudadas

Indicadores Cantagalo Madureira Cidade de Deus Vigário Geral Instituções • UPP • Narcotráfico • (expulso) • Igreja • Serviços comerciais • Estado • Polícia • Narcotráfico (difuso) • Igreja • Serviços comerciais • Estado • Cultura • UPP • Narcotráfico (residual) • Igreja • Polícia • Narcotráfico (controle total) • Igreja Localização

no rio Zona Sul Centro da Zona Norte Remota Remota

Conexões

urbanas • O elevador • Criança Esperança • O Mercado • “Viaduto” (CUFA) - Centro Cultural Waly Salomão (AfroReggae) representações

sociais • Novos projetos sociais • Mudança Social • Escolas de Samba • Mistura de favela e bairro O filme “Cidade de Deus” A chacina: a morte de 21 pessoas pela polícia Lazer Em toda a

cidade Entre a comunidade e a cidade

Em torno da

comunidade Dentro da comunidade Porosidade das

fronteiras • aberta• alta porosidade • Semiaberta • Média/alta porosidade • Semifechada • baixa porosidade • Fechada • Mínima porosidade

Ainda que a experiência de controle de fronteiras e de sua travessia seja um significante comum, que determina o pensamento e o comportamento em todas as quatro comunidades estudadas, existem diferenças importantes na natureza e na experiência das fronteiras, que são relatadas a seguir. As cartografias psicossociais reforçam a centralidade do lugar na definição do mundo da vida das comunidades e das trajetórias de vida.

Cantagalo: alta porosidade

A favela do Cantagalo passou por uma drástica transformação durante a realização da pesquisa, porque as UPPs expulsaram o tráfico de drogas e abriram as fronteiras da comunidade. A favela está localizada entre Ipanema e Copacabana, no coração da Zona Sul do Rio e de sua bela paisagem natural; usufrui dos serviços públicos e das áreas comerciais desses bairros formais, apesar de aqueles estarem ausentes na favela em si. O Morro do Cantagalo está ligado a Ipanema por um elevador e por uma estrada pavimentada, o que facilita o ir e vir, movimento intensificado desde a implementação da UPP e a expulsão do tráfico de drogas. O AfroReggae é importante, mas não é a única referência para a comunidade; nela, estão disponíveis referências alternativas, porque a cidade está muito mais próxima e é relativamente acessível. Agora, as fronteiras do Cantagalo estão abertas, e muitas de suas atividades também atraem pessoas do “asfalto”. Há um fluxo de mão dupla em termos de lazer, de serviços e de contato entre os grupos.

Madureira: porosidade média a alta

Madureira se localiza no centro da Zona Norte do Rio e é um bairro formal cercado por favelas. Está aberto à cidade, embora a distância da Zona Sul confira densidade às suas fronteiras. Existem várias instituições em Madureira, e o bairro está aberto às suas próprias instalações e a uma cultura popular vibrante; é um lugar situado na encruzilhada entre diferentes “Rios”: abriga as raízes do samba,

187

As rotas das sociabilidades subterrâneas: trajetórias individuais e comunitárias

a convivibilidade intergrupal, a bossa nova e a música popular brasileira (MPB), que fazem do Rio de Janeiro uma cidade com várias cidades dentro de si. As Igrejas evangélicas são instituições muito importantes, e existe uma forte ligação com a CUFA. Apesar de distante da Zona Sul do Rio, Madureira oferece várias referências de sociabilidade aos seus moradores. O Mercadão de Madureira é uma forte referência urbana, assim como o é a escola de samba Portela, os seus músicos e a rica influência que exerce sobre a vida cultural do Rio. Suas fronteiras são muito amplas e não são controladas pelo tráfico de drogas.

Cidade de Deus: porosidade baixa

A Cidade de Deus é afastada da Zona Sul do Rio, mas sua localização lhe confere um ar rural e a coloca mais perto das florestas a oeste do Rio e do bairro da Barra da Tijuca, suas praias e sua infraestrutura. A Cidade de Deus foi “pacificada” pela UPP, e isso introduziu uma dinâmica diferente na comunidade, embora a favela tenha uma forte história de socialização por meio do tráfico de drogas, que continua a ter uma presença residual. As Igrejas evangélicas são instituições importantes na Cidade de Deus. As referências de sociabilidade ainda estão concentradas no tráfico de drogas e na Igreja, embora a UPP esteja introduzindo um novo relacionamento com o Estado, ainda que este seja visto de forma apreensiva. Não há nenhum controle das fronteiras pelo narcotráfico, e os moradores ganharam um novo sentimento de liberdade de ir e vir, embora os horizontes da comunidade permaneçam essencialmente centralizados dentro do seu próprio território. Isso faz da CUFA uma referência importante para a Cidade de Deus.

Vigário Geral: porosidade mínima

A escassez de instituições sociais e a distância do centro da cidade reduzem as referências de sociabilidade em Vigário Geral, que se encontram polarizadas principalmente entre o tráfico de drogas e o AfroReggae. A comunidade fica

afastada do centro da cidade, e a polícia entra e sai em função dos conflitos do narcotráfico. O tráfico é o organizador central da vida da comunidade e, ao lado das Igrejas evangélicas, da presença esporádica da polícia e do AfroReggae, compõe a estrutura institucional da favela. O fogo cruzado e as balas perdidas fazem parte da vida cotidiana; o território é fechado e controlado rigidamente, e a circulação é difícil. O AfroReggae ocupa uma posição fundamental na vida da comunidade e, considerando a escassez de outras instituições positivas, assume vários papéis institucionais, incluindo o da família, do Estado e das fontes de emprego. O território da comunidade tende a circunscrever os horizontes que estão disponíveis para a sua gente.

Os níveis de porosidade das fronteiras das comunidades definem o contexto es- pecífico que é oferecido aos caminhos de socialização dentro de favelas, bem como a natureza do relacionamento entre elas e o AfroReggae e a CUFA. Para os moradores da favela, fronteiras mais ou menos porosas estão correlacionadas à amplitude das redes sociais e às potenciais travessias que estão disponíveis no co- tidiano. Quanto mais amplas as redes e mais abertas as fronteiras, mais ampla será a experiência do Eu. Fica claro que, quanto mais densas as fronteiras, menores as chances de expansão das redes e de travessia para a cidade, ao mesmo tempo em que aumenta a necessidade e a importância atribuídas ao AfroReggae e à CUFA. A porosidade das fronteiras entre as comunidades da periferia e a esfera pública mais ampla da cidade é um fator essencial para as experiências individuais e co- letivas dos moradores da favela, bem como para a forma como as intervenções do AfroReggae e da CUFA são vivenciadas e recebidas. A Figura 6.1. apresenta um resumo dos tipos de fronteira entre as comunidades e a cidade, em relação à abrangência e à diversidade de redes sociais, ao Eu e ao trabalho do AfroReggae e da CUFA.

189

As rotas das sociabilidades subterrâneas: trajetórias individuais e comunitárias

Figura 6.1 Porosidade das fronteiras nas comunidades estudadas

Cantagalo Aberta Distância da cidade (geográfica, social e psicológica) Porosidade da fronteira Controle da fronteira Semiaberta Semifechada Fechada Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa

Madureira Cidade de Deus Vigário Geral O trabalho do AfroReggae e da CUFA é mais intenso e necessário quanto mais

fechada for a fronteira. Alargamento do Eu Expansão de rede

s

Cantagalo Open Distance from the city

(geographic, social and psychological)

Density of the border

Control of the border

Semi-open Semi-closed Closed Madureira City of God VG Work of AfroReggae and CUFA: the more closed the borders,

the greater the need. Expansion of the Self Expansion of network

s

Rio de Janeiro, the Wonderful City

Fonte: Pesquisa Sociabilidades Subterrâneas.

As narrativas sobre travessias e mediações entre a favela e a cidade foram frequentes nas entrevistas, e a possibilidade de atravessar diferentes mundos e territórios surgiu como um fator essencial para o processo de regeneração social e pessoal. Esses re- sultados corroboram recentes reflexões sobre a necessidade de descentralização do planejamento urbano e de consolidação da rica visão que é proposta pela cidade multi- cultural e mista do século XXI (Sennett, 2011), da qual o Rio de Janeiro é um exemplo paradigmático. O desejo de vistas limpas, de “remoção” das populações indesejadas e de ênfase no centro das cidades prejudica a vitalidade delas e os potenciais incorpora-

dos nas culturas, nas identidades e nos diálogos que podem resultar da interação entre as suas diferentes comunidades. Atuar sobre a porosidade das fronteiras das comu- nidades é essencial para as trajetórias de vida individuais, para as identidades, para o desenvolvimento comunitário e para a regeneração urbana.