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Os depoimentos da polícia indicam um processo gradual de transformação nas relações entre as comunidades da favela e a polícia. Esse processo acontece por meio de políticas institucionais mas, também e principalmente, por práticas cotidianas de

diálogo e comunicação na ponta do trabalho da polícia nas favelas. É um processo que

encontra apoio em reuniões e programas conjuntos desenvolvidos pela polícia e pela comunidade, bem como em políticas públicas intersetoriais que buscam uma nova intervenção em territórios de favelas.

Os entrevistados da polícia, com unanimidade, apontam a conscientização e o reco- nhecimento dos preconceitos e das percepções negativas como ponto central para o processo de mudança.

“É uma questão da cultura, uma questão da violência que é passada para o policial, as cobranças, de que muitas das vezes nós estamos indo como entidade repressora dessas comunidades. Então, não tenha dúvida de que esse é um fator que dificulta, porque a cultura fica impregnada, e pra gente ir retirando todo esse peso é uma dificuldade na cabeça das pessoas: como vou estar ali, junto com favelado? Mas, aí, a gente tem que explicar, fazer com que aquele policial venha a entender. Por isso, a gente defende que os policiais mais novos é que devem servir nessas comunidades, porque eles já são formados com essa concepção, com esse entendimento de polícia de proximidade, de polícia comunitária”.

(Comandante da Polícia Militar, quartel-general)

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Conversando com o inimigo? Transições na relação polícia-favela “Vou ser muito sincera para falar sobre isso. Eu acredito que a maioria, a gente tem uns preconceitos: polícia é polícia, fave- lado é favelado, cada um no seu quadrado. Era praticamente impossível, durante muito tempo, a gente imaginar um bom convívio entre esses dois grupos distantes. Quando a gente iniciou esse trabalho, não se tinha essa dimensão que hoje temos... A gente passou por muitos problemas, que a gen- te vê que são culturais, de relacionamento, não exatamente problemas violentos ligados ao crime... Pessoas que viam a Polícia Militar como inimiga, mesmo não fazendo parte de crime nenhum. E a mudança aconteceu de uma maneira mais rápida, acredito eu porque nós não entramos sozinhos, veio um grupo de Secretarias visando toda essa melhoria”.

(Comandante de UPP, com base na comunidade)

Outro aspecto importante é a natureza gradual e de desenvolvimento desse processo, que requer tempo, compreensão da resistência à mudança e, o que é essencial, compreensão da cultura e do modo de pensar da comunidade.

“... nos primeiros meses, era pedreira. Policial passava ali pe- los becos, e era xixi na cabeça, urina dentro do saco, fezes, pedrada, tijolada. E aí, como resolver isso? Da mesma for- ma? Vai dar tiro, vai dar pancada? Não! Aí, a gente tem que ir lá e conversar, e foi assim que a gente começou a fazer. Eu criei aqui o ‘grupamento de aproximação’. Pronto: no papo, na conversa, no diálogo, e a gente conseguiu a multiplicação disso, e aí a comunidade foi entendendo”.

(Comandante de UPP, com base na comunidade)

Igualmente importante para os entrevistados é a ênfase nos processos de contato e de interação, que também produzem transformações dentro da polícia. O contato e a interação são processos que desafiam a lógica histórica de separação entre o soldado e a sociedade, herdada da cultura institucional do Exército brasileiro. O

preconceito interno contra as UPPs refere-se à sua busca pela comunidade e à

oposição a uma lógica de guerra, o que agora é visto precisamente como a fonte de sua eficácia. Geralmente apelidado de “pato”, o policial da UPP está agora se transformando em um “cisne”, uma vez que pode empregar diferentes técnicas e dominar diferentes habilidades.

“Lá no [Complexo do] Alemão, [o Exército] está se arreben- tando, a gente precisa chegar lá o mais rápido possível. Olha só, vai falar pra um cara do Exército, que é todo formal, pra interagir com a comunidade, estar brincando, soltando pipa e jogando uma capoeira? Porque é a lógica da separação, eu tenho que separar, é a coisa do contágio, da poluição, do perigo. Se eu me despir dessas minhas identidades e come- çar a misturar, eu me contamino. Nas UPPs, se eu mostrar as fotos, aí o policial não quer nem saber, tá soltando pipa com a criançada, tá brincando, tá jogando capoeira. O [...] lá no Cantagalo, ele é percussionista. Eles não vão nem pedir, ele vai lá brincar... Essa é que é a magia da interação, essa é que é a magia”.

(Comandante de UPP, quartel-general)

“Porque, infelizmente, um policial da UPP, quando em con- tato com policiais de outros batalhões, às vezes é até: ‘Ah, esse aí é de UPP, não troca tiro, não prende ninguém e tal’, como se o nosso trabalho fosse só dar tiro. É totalmente o

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Conversando com o inimigo? Transições na relação polícia-favela inverso, você tem que ser mais perspicaz, mais atencioso, mais antenado. O policial de comunidade, ele tem que se antecipar ao problema, ele tem que ser proativo, ele tem que usar a inteligência”.

(Comandante de UPP, quartel-general)

“A UPP é a grande possibilidade da polícia se transformar. E por quê? O policial tá recebendo aplauso, tá recebendo carinho. Eu tenho, na minha equipe, um subcoordenador operacional, ele é ‘caveira’, ele é ex-bopiano, Mas eu falei: ‘Taí, eu vou fazer uma [risos], uma alquimia’ [...] Ele veio pra cá. Mas ele é um cara que também tá na área de gerência. Então: ‘Olha só, meu amigo, nosso negócio é outro, vamos lá?’. ‘Vamos’. Aí começa, ele vai, foi lá. Só que eu já contava com isso, essa coisa do contato vai ser fundamental pra ele. Ele é muito robotizado mas, quando chegou, não teve jeito, o cara se debulhou em lágrimas

[risos]. O cara ficou sentimentaloide: ‘Pô, coronel, eu

nunca tinha recebido um abraço na comunidade, só recebia tiro’”.

(Comandante de UPP, quartel-general)

Nesses depoimentos, pode-se observar que as UPPs e as novas relações que elas promovem estão produzindo uma nova autopercepção para os próprios policiais, não apenas para a comunidade. Há muitas histórias de “humanização”, de redescoberta de que existe uma dimensão humana neles e no seu trabalho. Isso produz uma nova sensação de orgulho e de valor; isso muda identidades e práticas, tanto do lado de dentro quanto do lado de fora da polícia.