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Transições na relação polícia-favela “A essência da Polícia Militar é essa, em companhia do povo,

em companhia da cidade, é estar junto das pessoas. E nós criamos uma barreira entre polícia e sociedade, separando uma coisa da outra... Não digo que isso encerrou, mas que nós hoje temos uma postura diferente...”.

(Comandante de UPP, com base em uma comunidade)

Considerando a importância da polícia no mundo da vida da favela, na dinâmica da violência dentro das favelas, e como interlocutora do AfroReggae e da CUFA, foi realizado um estudo de caso específico que centrou-se nas relações entre a polícia e a favela. Foram realizadas cinco entrevistas com diferentes atores das forças policiais do Rio de Janeiro: quatro com membros seniores da Polícia Militar, com níveis diferentes de participação nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), e uma com um membro da Polícia Civil, com experiência de trabalho em projetos do AfroReggae. A visão des- ses agentes está justaposta à dos moradores da favela, que narraram suas experiências e opiniões sobre a polícia.

O que se segue é um estudo de caso que coloca uma lente de aumento em um relacio- namento específico, construído em meio ao conflito e ao confronto. O estudo mostra os processos dialógicos presentes no trabalho entre as organizações de base da favela e instituições sociais, bem como os dilemas e as contradições envolvidas nos processos de mudança. Os dados fornecem uma visão particular e esclarecedora da Polícia Militar como uma instituição que passa por processos de mudança quanto ao seu pensamento, aos seus procedimentos e às suas relações internas e externas. As percepções sobre as

favelas e seus moradores, bem como sobre as relações com o AfroReggae e a CUFA, devem ser vistas nesse contexto de transição, que é descrito pelos entrevistados por meio de várias categorias fundamentais e temas principais. Os depoimentos dos moradores da favela confirmam esse processo de mudança, e mostram como as representações e as práticas historicamente constituídas estão sendo ressignificadas e mudando as suas vidas.

4.1. O ponto de vista da polícia

Reforma institucional

A polícia é unânime sobre o fato de estar passando por um processo de reforma institucional; os entrevistados relatam grandes mudanças em curso na Polícia Militar do Rio de Janeiro, as quais claramente foram desencadeadas pela política de pacificação e pelo abandono de uma política explícita de confronto com o tráfico de drogas nos territórios das favelas. Isso é considerado positivo, porque há evidências claras de que o confronto e a guerra não funcionavam.

“Confesso à pesquisadora que muita coisa também foi mudando na minha cabeça, ao longo do tempo. Quando a gente é mais novo, fica naquele ímpeto de achar que muitas coisas poderiam ser resolvidas dentro de uma cultura repressiva... Hoje eu tenho certeza que não é, nós temos que fazer esse trabalho de pacificação que vem dando certo... [Eu tenho] uma história de combate, mas eu considero ter uma história de amor com a minha instituição. Gosto demais de ser policial militar, gosto do que eu faço e já convivi com esses ‘extremismos’ aí, com essas repressões que, eu posso dizer à senhora, não levam a nada, não resolvem o problema da questão de segurança”.

(Comandante da Polícia Militar, quartel-general)

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Conversando com o inimigo? Transições na relação polícia-favela “A questão do narcotráfico e da geopolítica criminosa impactou aqui... muitos postos comunitários foram experiências que ficaram fragilizadas. Quando ficaram sozinhos e sem apoio... você deixava essas policiais à própria sorte, e isso fragilizou porque destruiu simbolicamente, porque eles ficaram com uma imagem de falência, inoperância, fraqueza, entendeu? Então, isso ficou com um discurso dos mais conservadores. Os mais conservadores aqui [na PM] tiveram sempre esse discurso... Hoje está tendo uma inversão. Hoje tem uma disputa... sempre vai ter. Mas a questão é a de fortalecer simbolicamente as UPPs. Eles fortalecem essas estratégias de comunicação social na mídia, fortalecem com a própria comunidade... Porque o produto não é nosso, é da sociedade. Todo mundo abraçou. E agora tem que dar certo”.

(Comandante de UPP, quartel-general)

“Nós, em décadas passadas, prendíamos, nos envolvíamos em muitos confrontos, mas o que acontecia? Esses marginais da lei ou morriam ou eram presos, e outros da mesma forma acabavam os substituindo. E aquela territorialidade ainda continua na mão desses marginais. [...] E hoje eu posso falar que as coisas estão literalmente mudando aqui no nosso Estado. Está provado que aquela repressão continuada, sem um objetivo que viesse culminar na permanência de um serviço para dar satisfação àquelas pessoas, foi uma política que não deu certo”.

(Comandante da Polícia Militar, quartel-general)

Os entrevistados da polícia relatam a ideologia de segurança nacional contra um inimigo interno como sendo fundamental para a sua forma de pensar e treinar como soldados/policiais. Deixando de ter um alvo claro após a ditadura militar, as

disputas territoriais com o tráfico de drogas foram enquadradas nessa ideologia, que homogeneizou todos os moradores de favelas como inimigos. Por meio da guerra

contrao tráfico de drogas – e, por extensão,contra os moradores da favela – era

possível encontrar o inimigo e sustentar os rituais e os quadros mentais que preparam os policiais para a guerra.

“A gente poder ver... um ritual de humanização. Porque, por nós sermos Polícia Militar, nós temos no DNA a referência do militarismo. Não tem jeito, tem isso [de] segurança nacional... e você forma o guerreiro, seu ethos guerreiro. Então, você está construindo simbolicamente o guerreiro. São rituais, e a nós são impostos esses rituais, você precisa da virilidade masculina. Esse ritual é de afastamento... temos um lado que é a polícia, tentando ser uma instituição moderna, com interação, contato e, no outro extremo, o lado militarizado... E tivemos uma forte influência da ditadura... nós mesmos dizemos isso, é uma crise de identidade”.

(Comandante de UPP, quartel-general)

“O policial militar, por causa dessa natureza da formação militar, que é muito mais presente e forte, a transmissão do conhecimento, ela não se dá por essa tradição oral, como é na universidade, onde a oralidade é mais fascinante, do pro- fessor. Ela se dá pelo ritual, pelo mimetismo, pela cópia: eu aprendo fazendo. Então, eu posso ter os melhores currículos da polícia comunitária, mas se eu não tiver um laboratório prático, que eu chego e pratico aquilo, eu não consigo bater esses outros rituais...”.

(Comandante de UPP, quartel-general)

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Conversando com o inimigo? Transições na relação polícia-favela

Os entrevistados falam abertamente sobre seus próprios preconceitos e sobre a comparação dos moradores de favela com os traficantes de drogas. Anterior- mente, a prioridade era a guerra contra o tráfico de drogas em vez de se entender as comunidades da favela, o que começou a mudar com o trabalho das UPPs e com o contato contínuo entre as favelas e a polícia. No entanto, é unânime a percepção de que o preconceito é um dentre os principais obstáculos para uma nova polícia.

“Porque a polícia do Rio tem uma outra história: ‘Ah, favela- do é tudo igual, favelado ninguém presta, é semente do mal’. Realmente, vai ser ‘semente do mal’ se ninguém olhar para aquela semente. Vai ser, porque ele está em um meio que tem um mal presente, e que o mal pra eles é uma referência boa, porque o mau tem mulher bonita, tem roupa, tem ouro, manda e desmanda, o mau é bom... Isso vai mudar, porque hoje já existe outra visão. E não adianta querer só criticar, porque quem vai pagar é a gente. Essa minha visão sobre a comunidade foi adquirida aqui, eu não tinha isso, não. Hoje eu vejo aqui que, em uma comunidade de 10 mil, eu posso tirar 80 pessoas que não prestam... O resto é trabalhador, e trabalhador [para quem] eu bato palma, porque se eu esti- vesse na condição dele, de repente eu nem teria conseguido o que ele tem”.

(Comandante de UPP, com base na comunidade)