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As transformações na esfera pública brasileira, ocorridas no fim dos anos 1990, são vistas como um contexto crucial para se entender o significado do AfroReggae e da CUFA. Aqui, destacam-se três fatores:

• o surgimento de novos atores sociais – jovens, negros e moradores da favela; • a afirmação e o desenvolvimento da sociedade civil;

• questões de identidade racial.

A entrada de moradores de favela, negros e jovens, é vista como uma importante novi- dade no cenário da mobilização da sociedade civil no Brasil.

“... Eu acho que o surgimento do jovem de favela, o jovem de periferia, como uma nova figura política, foi o que aconteceu de mais importante no Brasil”.

(Acadêmico, parceiro)

“… As lideranças do morro dessas comunidades se deram conta de que elas podiam se organizar, falar suas histórias e construir suas próprias ONGs, a sua própria base de força e atuação”.

(UNESCO, parceira)

Assim como sua entrada na esfera pública, os observadores apontam para a forma como esses grupos contribuem para o desenvolvimento da sociedade civil e dos movimentos sociais no Brasil. Eles desafiam os movimentos associativos tradicionais e as ONGs, combinando questões de cidadania e de justiça social com a produção cultural e iniciativas artísticas que objetivam a profissionalização e a competição em todos os níveis de produção de mídia. Utilizam as linguagens provenientes do teatro, da música, do cinema e da dança para expressar as ideias e a visão da juventude da favela, tentando refutar as representações dominantes que estereotipam as favelas como lugares de criminalidade e de fracasso. Esses grupos são auto-organizados e se iniciam localmente, crescendo em relação direta com as suas comunidades de origem e com uma grande variedade de parceiros. São vistos como importantes inovadores, tanto de produções culturais quanto de ações políticas, alterando a posição dos atores da periferia na esfera pública e introduzindo um movimento social que também é cultural e político.

“Eu acho que a CUFA e o AfroReggae são isso na democratização brasileira: eles são a nova onda de produção cultural, e eles são uma liderança superforte em pautar a si mesmos como atores políticos. Não tem como, hoje, o Ministério da Ação Social criar um programa de ação sem ouvir o AfroReggae e a CUFA. Não sei se eles diminuíram o tráfico, mas eles se construíram como atores políticos. Isso é o que eu acho que mudou”.

(Fundação Ford, parceira e patrocinadora)

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Novos atores, novas ações: o AfroReggae e a CUFA “É um pouco do que o Rubem César discute nos seus primei- ros textos sobre ONGs sem fins lucrativos no Brasil. É a ideia de que eles são assessores, de que nós fazemos por eles. As ONGs dos índios, nós somos quase que tradutores, nós fazemos por eles... Quando surgem esses meninos, eles fa- lam assim: ‘Alto lá, peraí! Deixa que eu falo! Vocês já falaram muito. Se o assunto é a gente, deixa que a gente fala, tá?’”

(Acadêmico, parceiro)

A identidade desses novos atores e a sua nova forma de fazer política são vistas como fortes influências no desenvolvimento de um novo contexto para a sociedade civil e para os movimentos sociais brasileiros. Eles são vistos rejeitando e/ou renovando os discursos tradicionais das ONGs e dos movimentos sociais, por quatro razões: em primeiro lugar, o AfroReggae e a CUFA não demonstram a tradicional relutância em trabalhar com o setor privado, com o setor público e com a mídia; pelo contrário, eles envolvem todos em parcerias. O envolvimento com a mídia e com os mercados é um fato particularmente inovador e muito debatido como uma opção perigosa para os movimentos sociais tradicionais. Outros veem esse envolvimento como estratégico (Yúdice, 2001).

Em segundo lugar, eles não exibem a visão tradicional de que apenas o coletivo importa; ao contrário, eles falam em primeira pessoa, conferem grande importância às trajetórias pessoais e acreditam que os protagonistas devem ser considerados como indivíduos. Essa avaliação está em conformidade com as conclusões relatadas anteriormente: as trajetórias de vida realmente são utilizadas como ferramentas para o desenvolvimento pessoal e da comunidade. Em terceiro lugar, os dois grupos colocam uma forte ênfase no lugar e transmitem permanentemente uma narrativa de orgulho e de defesa dos seus territórios de origem, refutando as representações dominantes negativas sobre as favelas. Constantemente, eles reivindicam o território, gritando com orgulho “eu sou favela”, ao apresentar-se nacional e internacionalmente. Em quarto lugar, eles trazem o tema raça para o debate, colocando a identidade negra no centro. Os dados mostram que a cor da pele é uma questão constante na vida

cotidiana e, na verdade, descobriu-se que com frequência os moradores da favela passam por situações de racismo em suas vidas. O AfroReggae e a CUFA são muito explícitos quanto à sua herança negra, e colocam a cultura e a identidade negras em primeiro plano em tudo o que fazem, buscando combater diretamente o racismo, muitas vezes não reconhecido pela sociedade brasileira. E tudo isso é realizado por meio da linguagem das cores, do esporte, da arte e da alegria, que desestabiliza as associações entre a pobreza, a exclusão, a tristeza e o sofrimento. É uma linguagem que convida e atrai, ao mesmo tempo em que ressoa profundamente, porque é a linguagem de uma cultura que já existe na favela.

“O AfroReggae tem um componente que eu acho uma coisa linda, que é trabalhar sempre com alegria... Vocês já devem ter notado, todos os movimentos, o trabalho, as dinâmicas, tudo é uma explosão de cor, de luz, de beleza, de ritmo, de energia, é muito contagiante. E isso a gente percebeu logo de cara, porque no trabalho com eles, tudo o que eles faziam tinha essa beleza, que, claro, vem da coisa afro, da coisa reggae, da diversidade, da nossa diversidade criadora, da ancestralidade africana, que se misturou quando chegou aqui no Brasil, mas que está presente em toda a história e nas raízes do que o AfroReggae traz”.

(UNESCO, parceira)

Como ONGs e movimentos sociais, o AfroReggae e a CUFA propõem a cultura, a música, a dança e o estilo da favela como atos de cidadania. Assim é como eles rea- lizam a sua intervenção na esfera pública, e é como tornam visível uma sociabilidade positiva, que tende a ser deslocada para o subterrâneo por representações negativas, estereótipos e movimentos sociais que não comunicam ou não representam a juven- tude da favela.

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Novos atores, novas ações: o AfroReggae e a CUFA “Outra coisa também é essa coisa de você valorizar a músi- ca, a cultura, a festa, como sendo alguma coisa fundamental, inclusive para movimentos sociais, para transmitir valores etc. É uma coisa que não é muito da cultura da esquerda, que é muito racional, muito burocrática. Tudo muito funcio- nal. Aqui teve essa aproximação entre a festa e o trabalho. Isso também é outra coisa que rende frutos. Você vai e dá um clique. As pessoas gostam”.

(ONG, parceira)

Nesse sentido, esses grupos são inovadores da ação política e transformadores da so- ciedade civil, ao aproveitar os profundos recursos da cultura e da identidade brasileiras para rejeitar e renovar os discursos tradicionais das ONGs e dos movimentos sociais.