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cidade maravilhosa, cidade partida?

2.1. Pobreza, desigualdade e violência

Um menino negro, novo e pequeno, vigia obedientemente a entrada da favela, expos- to às drogas e às armas, invisível, cheio de ódio, esperando no escuro: é assim que a sensibilidade combativa de MV Bill, um rapper brasileiro e líder da CUFA, descreve a difícil situação das crianças empregadas pelo tráfico de drogas nas favelas do Rio. Eles são o outro lado do Rio, uma cidade cuja beleza natural e humana coexiste com a pobreza, com a desigualdade e com a violência. Embora esses níveis tenham di- minuído drasticamente no Brasil e, até certo ponto, no Rio de Janeiro, a paisagem urbana da cidade, tanto em números absolutos como em experiências humanas de sofrimento, de perda e de segregação, continua a desafiar a imaginação de políticos, de cientistas sociais e de legisladores. Essa cidade maravilhosa e mista é também uma cidade partida, onde a beleza da paisagem natural, a abertura para o mundo, o calor e a cordialidade do carioca coexistem com a violência, com a criminalidade e com divisões sociais radicais.

Já por duas décadas, a ideia da “cidade partida” proposta por Ventura (1994) capta a complexidade das divisões e das linhas de segregação que caracterizam o Rio de Janeiro e, em certa medida, todo o Brasil. Essa é uma ideia que se acrescenta à noção de “Belíndia” – um neologismo criado com base nos nomes de dois países contrastantes, Bélgica e Índia – que marcou, por toda uma geração, a condição e a imagem do Brasil como um país formado por uma enorme desigualdade, contendo em si tanto a Índia como a Bélgica, produto e ao mesmo tempo produtor de uma separação interna aguda que veio a ser conhecida como o apartheid social brasileiro.

Embora discussões mais recentes convidem a reposicionar a descrição clássica do Rio como uma cidade partida e a reconhecê-la como um todo integrado de múltiplas interconexões das suas diferentes áreas e cidadãos (Souza e Silva, 2003, 2009), os indicadores socioeconômicos e as experiências subjetivas de sua população pobre fornecem provas convincentes de que a metáfora da “cidade partida” não pode ser colocada de lado tão facilmente. A realidade da segregação e da desigualdade no Rio está clara em números, no baixo nível dos serviços prestados pelo Estado e pelo setor privado dentro dos territórios das favelas, e nas vozes de seus moradores. Em 2010, mais de 20% da população do Rio vivia em aglomerados subnormais, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) descreve as áreas conhecidas na cidade como favelas ou comunidades.

As favelas são definidas como aglomerados urbanos subnormais, assentamentos irregulares em áreas consideradas inapropriadas para a urbanização, como as encostas íngremes das montanhas do Rio: “conjunto constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais (barracos, casas, etc.), ocupando – ou tendo ocupado – até período recente, terreno de propriedade alheia (público ou particular); dispostas, em geral, de forma desordenada e densa; e carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais e privados” (IBGE, 2011).

Mais de um milhão de pessoas vivem nessas áreas da cidade, que vêm crescendo acentuadamente desde a década de 1950, como pode ser visto na Tabela 2.1.

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tabela 2.1 Crescimento da população nas favelas e no Rio de Janeiro

Ano População favelas População Rio % % Cresc. pop.

das favelas % Cresc.pop. do Rio

1950 169.305 2.337.451 7,24% - - 1960 337.412 3.307.163 10,20% 99,3% 41,5% 1970 563.970 4.251.918 13,26% 67,1% 28,6% 1980 628.170 5.093.232 12,33% 11,4% 19,8% 1990 882.483 5.480.778 16,10% 40,5% 7,6% 2000 1.092.958 5.857.879 18,66% 23,9% 6,9% 2010 1.393.314 6.288.588 22,16% 27,5% 7,4% Fonte: IBGE.

A Figura 2.1 mostra as disparidades do índice de desenvolvimento humano (IDH) nos diferentes bairros do Rio. Com alguns números mais altos do que os da Noruega, que apresentou o IDH mais alto para um país em 2000, e outros próximos do Quirguistão, classificado na 102ª posição, as diferentes áreas da cidade mostram, em sua impressionante desigualdade, o que a imaginação carioca chama de divisão entre morro e asfalto. Há uma divisão clara entre as favelas nos morros e os elegantes bairros nas áreas asfaltadas. Figura 2.1 Comparação ilustrativa do IDH em bairros do Rio e em países

Gáve a

Copacabana NoruegaReino UnidoRio de Janeir o Eslov áquia Madu reira Vigário Geral Brasil Cidade de Deus Jamaica Quirguistã o Comp lexo d o Alemão Gá vea Copacabana Norw ay

United KingdomRio de Janeir o Slova kia Madu reira Vigario Geral Brazil City o f God Jamaica Kyrg yzsta n Comp lexo d o Alemao

Os dados acima são os últimos disponíveis sobre o IDH dos bairros cariocas, e desde então houve mudanças importantes no quadro da desigualdade e da pobreza no Brasil. O índice de pobreza se reduziu marcadamente na última década, e o Brasil faz parte de um seleto clube de nações cujo coeficiente GINI melhorou. Contudo, a cidade do Rio não acompanhou essa evolução, como se pode observar na Tabela 2.2. Os índices de desigualdade e de pobreza mostram que pouco mudou nos últimos anos, em termos de desigualdade no Rio (Neri, 2010). Hoje, a situação é pior do que a do Brasil como um todo. O índice de pobreza da cidade igualmente aumentou, embora a pobreza nas favelas tenha, de fato, diminuído. O aumento é devido ao empobrecimento e à desigualdade que afeta as regiões administrativas do asfalto, como se pode ver na tabela abaixo.

tabela 2.2 GINI e índice de pobreza para o Brasil, a cidade do Rio de Janeiro, a favela e o asfalto

GINI Índice de pobreza

1996 2008 1996 2008 Brasil 0,602 0,549 28,82% 16,02% Rio 0,577 0,576 9,61% 10,18% Favela 0,397 0,384 18,58% 15,07% Asfalto 0,564 0,570 7,87% 9,43% Fonte: Neri, 2010.

Apesar da sua importância, a melhoria do índice de pobreza das favelas não apaga os outros números, que continuam a contar uma história em que a morte precoce por homicídio, a baixa renda, o analfabetismo e a gravidez na adolescência, entre outros indicadores, têm um endereço certo na cidade. Um relatório recente da Fundação Getúlio Vargas (Neri, 2010), que comparou as cinco maiores comunidades de baixa renda do Rio com os seus bairros de alta renda, concluiu que é a variável favela que explica mais da metade dos diferenciais relacionados à renda per capita. O fato de morar em uma favela diminui significativamente a renda média das pessoas com ocupações similares. Por exemplo, profissionais que moram nas favelas ganham em

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média 4,8 vezes menos do que profissionais que moram fora das favelas. Monteiro (2004) concluiu que a residência em uma favela e a falta de educação materna desempenham papel fundamental na determinação da mortalidade infantil, notando- se em particular o aumento do risco de mortalidade para infantes com menos de 5 anos de idade nas favelas.

O contexto social, econômico e geográfico fornece uma indicação clara do problema, mas a sua configuração geral vai muito além desse contexto, apresentando dimensões psicológicas e culturais específicas. As favelas do Rio são ambientes de grande complexidade psicossocial e cultural, nos quais a instituição de fronteiras internas e externas circunscreve a experiência de indivíduos e de grupos que vivem dentro e fora desses territórios. As relações entre a favela e a cidade, caracterizadas pela dicotomia morro-asfalto, trazem à tona os problemas políticos e psicossociais da segregação e da exclusão causados pelas representações que sistematicamente discriminam e estigmatizam o morador da favela. Conforme muitas vezes se ouviu durante a pesquisa,

“A gente tem uns preconceitos, polícia é polícia, favelado é favelado, cada um no seu quadrado, vamos dizer assim... Ah, favelado é tudo igual, favelado ninguém presta, é semente do mal”.

(Comandante policial de Unidade de Polícia Pacificadora, com base na comunidade)

A psicologia social da favela mostra que a invisibilidade crônica da sociabilidade subterrânea é causada por lentes que apagam a sua realidade vivida, transformando-a em uma identidade criminosa e violenta, uma “semente do mal”. Ser da favela, morar na favela e ir para a cidade com a marca social da favela constituem uma experiência de discriminação e de luta identificatória que retira da sua população o direito a uma autointerpretação positiva.

“Aqui, o que mais acontece é isso, não no morro, mas lá em- baixo. Eles já olham pra você, ‘ih..., é do morro’, na cara de pau mesmo, escondem a bolsa, fingem que tá falando com al- guém atrás de você, ‘oi fulano’, só pra passar, atravessa a rua na cara de pau, sai correndo, com medo”.

(Cantagalo, homem, 21 anos)

“A área em que eu moro é de difícil acesso pra trabalho, por exemplo, já cheguei a perder uns quatro ou cinco empregos, devido à área em que eu moro... Falou ‘Cidade de Deus’, o pessoal já fica meio naquilo, devido à cor da pele também, entendeu... é muito preconceito devido à área e também à cor da pele...”.

(Cidade de Deus, homem, 25 anos)

No entanto, como será visto adiante, é precisamente para resistir e lutar contra situações como essas que são forjadas novas iniciativas por parte das comunidades das favelas.