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A preponderância de fronteiras urbanas marcadas é um componente central do mundo da vida da favela. Os moradores amam suas comunidades, mas são extremamente conscientes das representações sociais negativas e do estigma criados no “asfalto”. O crime, a violência e a marginalização são equiparados, por aqueles que a veem de fora, à identidade dos moradores das favelas, que relatam uma série de experiências marcadas pela discriminação e pela segregação, quando atravessam as fronteiras da cidade.

“... Na rua acontece direto. A gente andando na rua, a pessoa vê a gente ... e se esquiva. Eles veem a gente e discriminam. A gente tá passando e elas seguram a bolsa, mudam de ca- minho, acham que a gente vai roubar... Isso é horrível! Porque as pessoas acham que todo preto é ladrão, que vai fazer mal, vai roubar, vai matar...”

(Cantagalo, homem, 28 anos)

“Porque a impressão que as pessoas têm do morro é muito chocante, que as pessoas falam com gírias, não têm educação, que descem e criam problema. As pessoas acham que quem mora no morro é favelado, que mora num barraco caindo aos pedaços, numa casa suja, simplesmente associam pobreza com sujeira. Então, as pessoas têm essa impressão e não contratam, porque acham que vão ter problema.”

(Madureira, mulher, 35 anos)

“Uma vez, eu fui procurar emprego, e a mulher falou assim: ‘Toma aí o dinheiro da sua passagem. Você mora onde?’ Aí eu

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O mundo da vida da favela falei: ‘Vigário Geral’. E a mulher: ‘Vigário Geral? Você não pode trabalhar aqui, não!’ E eu perguntei: ‘Por quê?’ E a mulher: ‘Porque você mora em Vigário!’ E eu falei: ‘Me fala o motivo!’ E ela: ‘Porque as pessoas de lá são muito brabas!’ Eu falei: ‘Todo mundo não, porque eu sou trabalhador!’ A mulher não me deu o serviço porque eu morava na favela. Muita gente não consegue arrumar serviço e às vezes não trabalha porque mora em Vigário.”

(Vigário Geral, homem jovem, 24 anos)

Essas representações negativas têm uma carga afetiva para o Eu e para a comunidade e, ao mesmo tempo, consequências concretas para a empregabilidade e para as possibilidades de levar uma vida com direitos e sem discriminação na cidade. Estigma e discriminação prejudicam psicológica e socialmente, afetando a autoestima e a identidade e, ao mesmo tempo, barrando o acesso ao trabalho e à renda.

Entretanto, atravessar fronteiras urbanas é uma prática complexa, que envolve movi- mentos dos dois lados da cidade. Como escreveu José Júnior, líder do AfroReggae, sobre a “boca de fumo”, em 2002:

“A popular ‘boca de fumo’ é um ponto de encontro de pessoas de classes diferentes, e de jovens em busca de um lugar ao

sol. Você já viu alguma? À noite, ela se torna o point da gale-

ra, reunindo gente bonita e bem-vestida, armas, garotas ao redor, música alta, o comércio funcionando a pleno vapor e uma quantidade enorme de pessoas indo e vindo. Parece que existe nesse local um campo magnético que atrai as pessoas, uma vez que muita gente que fica ao seu redor não é usuário, nem bandido. Muitos meninos e meninas estão ali porque é legal – e muitas vezes é só por isso... porque é legal!”

Muitos dos depoimentos reunidos ecoam tal descrição, o que revela a atração da ci- dade pela favela e as várias interações e trocas que ocorrem entre o morro e o asfalto.

“Discriminação eu nunca senti. Eu senti muito um olhar de curiosidade, de conhecer a minha realidade. Quando eu fa- lava que na favela eu não pagava água, não pagava luz, só pagava o gás, o telefone e o gatonet, eles ficaram impres- sionados. Eu falei que com 10 mil reais você faz uma casa de dois andares no morro, com ladrilho com tudo. Eles ficaram impressionados, porque muitos amigos meus estão juntan- do dinheiro, tipo 100 mil reais, pra comprar um apartamento. Eu, com 100 mil reais, comprava o morro.”

(Cantagalo, homem jovem, 20 anos)

“Eles estudam na mesma escola Tem umas meninas do as- falto que namoram traficantes, tem viciado que vai lá pro morro pegar droga. E também tem muita menina da favela que namora menino do asfalto.”

(Madureira, mulher jovem, 20 anos)

Isso se torna evidente nas travessias das produções culturais da favela, que são fundantes da cultura brasileira e alcançam não apenas o conjunto da cidade, mas todo o país. As tra- vessias entre a experiência da favela e a produção cultural, que são ativamente apropria- das pela cidade como um todo, fazem parte das contradições que permeiam as fronteiras urbanas, envolvendo sentimentos de negação e de atração, da necessidade de isolar e separar e, ao mesmo tempo, do desejo de cruzar e entrar na cultura e na vida da favela. Em última instância, contudo, os moradores da favela percebem claramente que o acesso a recursos, bem como e a violência, têm endereço certo na cidade. Apanhados

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O mundo da vida da favela

em meio ao tráfico de drogas e à polícia, eles têm poucas chances de sair ilesos. Muitos são os fatores que não os deixam escapar: há questões de representação social, quando os moradores de favelas são vistos como criminosos e perigosos pelo “asfalto” e pela

polícia; há questões de sobrevivência, quando as famílias não podem contar com o

Estado para os caminhos de socialização para suas crianças; há violações de direitos hu- manos, como quando a polícia invade casas, mata sumariamente e falha na investigação desses crimes. O que o imaginário da cidade denominou como a divisão entre o morro e o asfalto é tão real como nunca para o morador de favela no Rio de Janeiro atual. Figura 3.11 Dinâmica psicossocial das fronteiras urbanas

Favela Estigma Descriminação Segregação Travessias Resistência Asfalto Representações negativas Estereótipos Crime Violência Marginalidade Negação/isolamento Fascínio/desejo de entrar Favela Stigma Descrimination Segregation Border-crossing Resistence Asphalt Negative representations/ Stereotypes Crime Violence Marginality Negation/isolation Fascination/desire to enter

Urban

frontier

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Fr

onteiras

urbanas

Nota. Representações estereotipadas de crime, violência e marginalidade, fora, produzem estigma, discri-

minação e segregação, dentro. As tentativas de resistir e de cruzar fronteiras se deparam com a negação e com o isolamento, bem como com o fascínio dos que estão fora da comunidade.