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Casa Amarela da Serra: o internato das enfermeiras da Escola

Capítulo 4 ESPAÇO E TEMPO ESCOLARES NA ESCOLA DE

4.1 Casa Amarela da Serra: o internato das enfermeiras da Escola

18 de Março de 1935. Era noitinha, chuviscava quando cheguei ao internato das enfermeiras, uma casa amarela situada num dos aprazíveis bairros da capital – a Serra. Ia ser inaugurado no dia seguinte, e já se achavam cá D. Laís, e D. Georgina Ottoni Chagas, a Ecônoma – em atividade desde manhã.

Na primeira noite só contava a Diretora, três Chefes, a Ecônoma e eu como única aluna. Nessa mesma noite, tendo todas saído, fiquei eu a tomar conta desse casarão sem luz, pois a luz ainda não havia sido ligada e nós servíamos de velas; [...] percorri de vela na mão os diversos aposentos, sendo as salas de visita e de jantar a únicas mobiliadas; os quartos só tinham camas, mesmo assim sem enxergão. Começou com dificuldade o nosso Internato, e hoje?

Cheguei à janela de um quarto da ala direita, atraída pelo fresco da noite e o murmúrio de um regato que corria (hoje não corre mais) no fundo da chácara. A noite estava mais clara, já não chuviscava. Divisei as palmeiras do quintal, a falada piscina, que me pareceu mais restos de um castelo abandonado (CARDOSO, 1936a, p. 52).

A aluna América Cardoso, em narrativa sobre o “Internato Carlos Chagas – seu histórico”, publicada no primeiro número da revista A Enfermagem em Minas, é quem relata o início do funcionamento do “internato das enfermeiras”, mostrando as primeiras apropriações e demarcações dos seus espaços. Um ano após este relato, essa aluna voltou a falar da luta travada pela Diretora para conseguir a sede para o internato da EECC:

‘Mas com que roupa?’ Removeu céus e terra e graças ao altruísmo do Dr. Antonio Aleixo conseguiu a realização desse ideal, aprovado por Dr. Silva Campos Diretor da Saúde Pública deste Estado, embora choramingando a falta de verba, assunto bem compreendido por nós que vivemos nesta dolorosa experiência.

Mas a dedicação e o heroísmo e a boa vontade do Dr. Aleixo conseguiram organizar o Internato das Enfermeiras que nos proporciona maior conforto luxo e elegância [...] (CARDOSO, 1937, p. 33).

Todas as pessoas que moraram ou que transitaram nas décadas de 1930 a 1950 nas proximidades da Rua do Chumbo, 601, no Bairro da Serra, da cidade de Belo Horizonte, conheceram a Casa Amarela da Serra, assim denominada pelas alunas. Hoje, “uma casa azul”, com fachada do prédio e interiores, no possível, preservados, Rua Professor Estevão Pinto, mesmo número, faz parte do Patrimônio Histórico da cidade e sedia a sua Gerência; naquela época, o Internato da Escola de Enfermagem Carlos Chagas.

A instalação da EECC na modalidade de externato com sede administrativa em salas do Hospital São Vicente de Paulo, cedidas pelo Diretor da Faculdade de Medicina, Professor Alfredo Balena, e pelas Irmãs Vicentinas não era, necessariamente, o que desejava Laís Netto dos Reys. Ela queria que a Escola possuísse uma residência própria com todas as condições necessárias a uma sólida formação da enfermeira. Uma formação moral e intelectual, que ela própria teve como diplomada pioneira da EEAN, em um internato que

possuísse “conforto, luxo e elegância”, enriquecida com os cursos e aperfeiçoamentos realizados nos Estados Unidos e na Europa.

Formar enfermeiras, para Laís Netto dos Reys, era desenvolver-lhes um espírito de serviço; uma cultura intelectual geral e um arsenal técnico específico da enfermagem; era prepará-las para os desafios e os sacrifícios que, segundo ela, a profissão exigia. Uma profissão que “reclama de vós [enfermeiras], ações de almas escolhidas, atitudes da individualidade da elite, impõe grandes e árduos deveres mas nobilíssimos e fecundos”. Ou seja, formar enfermeira, para Laís, era proporcionar à mulher brasileira – aquela que é escolhida – o exercício de uma profissão excepcional que tem como ideal o serviço a Deus, à Pátria e à humanidade (REYS, 1936, p. 67).

Nessa perspectiva de modelo de formação da mulher-enfermeira, Laís Netto dos Reys, na organização da EECC, parecia ter se inspirado na mesma fonte que a maioria das enfermeiras de todo o mundo. O Programa Educativo de Escola de Enfermagem organiza os conhecimentos básicos de um currículo de enfermagem em três classes. A primeira seriam os Princípios, fatos, instrução, denominados Ciência da Enfermagem; a segunda se refere às

Técnicas e Habilidades Especializadas, sob a denominação de Artes de Enfermagem; e a

terceira diz respeito aos Ideais e tratam da atitude social e padrão profissional de conduta, englobados na denominação de Ética de Enfermagem ou Espírito de Serviço. Segundo concepção corrente à época,

a primeira classe de conhecimentos representa o que as enfermeiras devem

saber ou compreender sobre o seu trabalho; a segunda, o que ela deve estar

preparada para fazer; e a terceira, que tipo de pessoa deve ser.[...]. Tal plano pressupõe o desenvolvimento harmonioso de todo o indivíduo, o coração, o cérebro e as mãos, representando respectivamente o lado emotivo, intelectual e prático de sua personalidade (STEWART, 1945, p. 51, grifos da autora).

Assim, para a incorporação desses elementos em sua formação, principalmente aqueles referentes à primeira e terceira classes, a futura enfermeira necessitava de um espaço

apropriado para conviver em comunidade, ou seja, exigia-se dela uma formação na modalidade de internato. Conviver em comunidade significava conviver em família – a diretora-mãe com as alunas-filhas. Em diversos depoimentos que falam do cotidiano vivido na EECC, foi possível apreender elementos que permitiram mostrar que Escola começou a funcionar como “um teto que nos desse a ilusão de ‘home’ familiar”, o que aconteceu somente após a instalação do internato. Por isso, que depois de criada a Escola, “a fundação do Internato tornou-se preocupação constante de nossa incansável Diretora, D. Laís Netto dos Reys, que desejava reunir suas alunas, principalmente, as de fora que viviam em hotéis e pensões” (CARDOSO, 1936a, p. 52).

O internato, já no século XIX, era o locus da educação das meninas/moças em geral e da formação das enfermeiras, em particular. Desde a criação da primeira escola de enfermagem por Florence Nigthingale, exigiu-se o regime de internato visando à formação moral e intelectual da enfermeira. É nessa época que, segundo Muniz (2003), surge a “nova mulher” – aquela que passa a transitar em espaços externos aos das famílias, mas sob estrito controle. É o momento histórico em que ocorrem “novas formas de sociabilidade entre os sexos, com a introdução da convivência nos salões – espaços intermediários entre o lar e a rua –, abertos de tempos em tempos para a realização de saraus noturnos, jantares e festas”. Assim,

cafés, clubes literários, teatros, bailes e outros acontecimentos da vida social tornam-se locais e ocasiões em que a presença das mulheres da elite se faz notar, sob o olhar atento dos pais, maridos ou irmãos. Vigilância que se justificava sob o argumento de sua ‘natureza mais frágil, sensível, emocional e passiva’ e, portanto, presa fácil quanto aos ‘descaminhos da honra’, no sentido de perda da virgindade, atributo que conservava tendo peso de ouro na sociedade brasileira provincial (MUNIZ, 2003, p. 158).

A ocupação dessa “nova mulher” nos “novos espaços” passa a exigir “nova educação”. Como diz Muniz (2003, p. 159), vai exigir “um outro tipo de aprendizagem – além

daquela que as preparava para os cuidados com os filhos e a casa –, a de comportar-se em público, de conviver de maneira polida, recatada e distinta”. Para tanto,

educandários femininos, especialmente internatos dirigidos por religiosas, foram criados para receberem essas jovens bem-nascidas – às vezes nem tanto -, para prepará-las para assumirem, futuramente, o trono de um reino que lhes estava predestinado pela sua condição de gênero. Aulas de civilidade, música, literatura, geografia, história, desenho, pintura e economia doméstica foram acrescentadas aos limitados currículos existentes, de forma a instrumentalizá-las para o exercício desse reinado doméstico, para ocuparem o ‘trono’ que lhes pertencia, com certeza, por prescrição, mas, nem sempre, por desejo ou escolha (MUNIZ, 2003, p. 159- 160).

Pode-se, também, dizer que esta “nova” educação trazia a idéia de educar-se para educar. Nesse sentido, a sociedade e as instituições escolares voltadas para a educação feminina mobilizavam uma série de rituais, de símbolos, de doutrinas e de normas para a produção dessa nova mulher que iria desempenhar novos papéis em “novos” espaços sociais que passaram a lhe ser permitidos por essa mesma sociedade. Um espaço próprio para esse tipo de concepção de educação era, portanto, necessário.

Na enfermagem, o regime de internato, segundo Barreira (1992), favorecia o recrutamento de candidatas ao curso, pois a oferta de residência era essencial, tanto do ponto de vista financeiro como para a obtenção do consentimento das famílias, para as quais “a escola dava a garantia de resguardar a moral de suas filhas, assegurando que sua honra não corria perigo, ou seja, que sua moça não se perderia” (BARREIRA, 1992, p. 189, grifo da autora). Além disso, para a formação da enfermeira em consonância com a concepção de educação da mulher que perpassava na sociedade, o internato era considerado indispensável. Isto é, era concebida a idéia de que a enfermeira necessitava, além da formação técnica, de outra não menos importante, que era a formação do caráter, a disciplina e o desenvolvimento de certas qualidades especiais, só possíveis em um regime de internato (A ENFERMAGEM EM MINAS, 1937e, p. 19).

O internato como dispositivo pedagógico e de socialização, ou seja, como espaço de controle e de vigilância dos tempos e espaços escolares na enfermagem, apresenta certas características que se aproximam das suas origens no catolicismo. De acordo com Ivan A. Manoel, em seu estudo sobre a Igreja e a educação feminina no Brasil, o internato “remonta suas origens aos mosteiros e ao cenobitismo da Alta Idade Média, quando milhares de pessoas se afastaram do mundo para resguardar a sua espiritualidade” (MANOEL, 1996, p.76-77). No século XVI, fundamentalmente, com os jesuítas, o internato passou a desempenhar as funções de preparar homens para exercer a direção da sociedade de acordo com os preceitos do catolicismo tridentino, deixando de significar apenas uma escola de formação de quadros para próprio clero.

A teoria pedagógica que sustentava essa modalidade de ensino partia, em primeiro lugar, da idéia de a criança ser naturalmente inclinada ao mal. Se o batismo apaga o pecado original, ele não fortalece a criança diante do mal, necessitando, para isso de um lugar isolado, seguro, onde a alma infantil fosse ensinada a vencer as suas inclinações pecaminosas. Em segundo lugar e plenamente no século XIX, foi fundamentada na concepção de que o mundo moderno está em permanente crise, ameaçado por todos os lados pelo mal, “revivido pelo humanismo renascentista e alimentado pela ciência materialista e pelo liberalismo”. Assim, para uma educação produtiva, necessariamente, precisava-se isolar a criança de todo contato com esse mundo mau e corruptor. O internato “seria escola e guardião, ensinaria e defenderia as ‘flexíveis almas juvenis’” (MANOEL, 1996, p. 77).

Para a educação em geral, os alunos, ao término dos estudos na escola-internato, estariam fortalecidos, de tal modo que, ao voltarem para o mundo exterior, não seriam corrompidos por ele. Ao contrário, “deveriam ser fortes o bastante para atuarem como focos de recristianização da sociedade”. Para a educação feminina em particular, “o internato católico se tornava mais rigoroso porque, conforme a teoria ultramontana, a mulher, por ser

presa mais fácil do mal, deve estar sob constante vigilância para resguardar sua pureza” (MANOEL, 1996, p. 77-78).

Enquanto recurso pedagógico, o internato fundamentava-se na pedagogia da vigilância: “Vigilância de todos os instantes, de todos os movimentos, de todos os atos públicos ou particulares, de forma que a privacidade fosse desmontada e todas ficassem diante de todas sem características próprias, sem marcas pessoais, sem individualidade”. Nesse sentido, era estabelecido um conjunto de normas e regras para modelar a mulher. Além dos ornamentos culturais, da polidez, ela devia portar a marca indelével da educação conservadora. Por isso, “gestos, comportamentos, linguagem, tudo era vigiado, controlado, moldado” (MANOEL, 1996, p. 78).

Nessa linha de pensamento, é importante destacar que, mesmo utilizando outros espaços institucionais para as atividades administrativas e para o ensino teórico e prático, como a Faculdade de Medicina e as instituições de saúde, o internato aqui estudado era a primordial referência sociocultural para todas as pessoas que transitavam pela Escola. As pessoas que residiam e outras que não residiam no internato, mas que frequentemente participavam das suas atividades, foram consideradas, neste estudo, como as principais idealizadoras e construtoras da EECC. Ademais, cotidianamente, essas pessoas produziam e reproduziam uma cultura escolar a partir de modelos culturais diversos que visavam à incorporação de comportamentos e atitudes hierarquizadas e disciplinares pelas suas alunas, que eram consideradas adequadas para as futuras enfermeiras.

Tratando-se das normas e das medidas estabelecidas para o pleno funcionamento do internato, o Regulamento Interno da EECC trazia com muitos detalhes as prescrições:

1 – A mensalidade será de 130$000 (incluindo a taxa de estudo) 2 – A Escola não se responsabiliza por conta pessoal.

3 – O pedido que não constar do cardápio de cada refeição será considerado extra.

4 – Os telefonemas interurbanos serão passados só mediante autorização da Secretaria da Escola.

6 – Não é permitido sair do refeitório para atender telefonemas. Somente as chefes e as diplomadas por motivo de trabalho.

7 – As pessoas que estiverem de folga deverão atender ao sinal das refeições. Quando em serviço deverão empregar meios para chegarem na hora.

8 – O café pela manhã será servido até as 8 horas.

9 - De 15 em 15 dias uma enfermeira será destacada para tomar conta das doentes da casa. (inclusive empregadas)

10 – As refeições servidas no quarto serão consideradas extraordinárias, salvo em caso de doença a juízo da Diretora.

11 – A enfermeira do serviço da noite deverá comparecer ao jantar. Estando acordada à hora do almoço, deverá descer.

12 – Havendo enfermeiras no serviço da noite, o silencio deverá ser mantido até 17 horas. Todas devem ter em mente que o sono do dia é mais difícil que da noite. Compete à Ecônoma do Internato manter o silêncio. A enfermeira da noite só poderá sair, depois das 17 horas. Antes, só com licença da Diretora, Assistente ou Inspetora.

13 – A hora do Santo Sacrifício da Missa, e do Terço, pedimos o comparecimento de todas que se acharem no Internato.

14 – As sessões do Grêmio ‘9.55’ serão realizadas nas seguintes ocasiões: 19 de Março, 19 de Julho, 22 de Setembro e no mês de Dezembro após o termino das provas finais.

A 1ª sessão inaugural, 19 de Março, da data de aniversario do Internato oferecido às novas alunas.

A 2ª sessão, 19 de Julho, em homenagem à data da inauguração da Escola. A 3ª sessão, 22 de Setembro, aniversário da nossa ex-Diretora, fundadora, D. Lais Netto dos Reys.

A 4ª e última sessão, será por ocasião do encerramento do ano letivo. O Grêmio foi fundado para as alunas, todas devem empregar meios para a boa realização das sessões, dando cada uma o melhor que puder.

MEDIDAS GERAIS PARA AS ALUNAS INTERNAS E EXTERNAS

1 - Todas deverão ser pontuais nas aulas e no serviço.

2 – Sendo o atraso por questão de enfermaria, será verificado antes quem o ocasionou.

3 – com 1/3 de faltas a aluna perde a matéria, perdendo três matérias, perde a série. Não haverá segunda época. Haverá segunda chamada em dias previamente marcados pela Diretoria da Escola.

4 – A aluna não poderá freqüentar as aulas quando em licença de trabalho. A licença será marcada com 5 dias de antecedência no mínimo.

5 – As alunas terão inteira liberdade de fazer suas reclamações que serão atendidas quando justificadas e puder (REGULAMENTO INTERNO, 193-).

Não foram encontrados registros sobre a forma utilizada pela EECC para que todas as moradoras do internato tivessem conhecimento desse regulamento. Contudo, será apresentado, no decorrer deste capítulo e do próximo, as formas diversas e as diferentes estratégias que ela usou para colocar em prática o seu jeito de ser-fazer-enfermeira.

É importante destacar, também, que na sociedade moderna os poderes constituídos visam aplainar as diferenças, uniformizar os indivíduos e harmonizar a vida social. Assim, utilizam de práticas disciplinares com o propósito de produzir e reproduzir corpos dóceis, disciplinados, educados com o mínimo exercício da violência explícita e o máximo exercício da vigilância contínua, implícita e internalizada.

De um lado, observa-se que as prescrições e as interdições institucionais, como recursos pedagógicos, se materializavam nos mecanismos de controle e de vigilância dos tempos e dos espaços escolares: hora de levantar, de deitar, de alimentar, de estudar, de rezar, de lazer, de silenciar, etc. De outro, se tais prescrições permitiam a existência do internato, a convivência nesse espaço apresentava suas particularidades. Isto é, como forma de suavizar ou de mascarar ou de até mesmo de aprender a conviver com os mecanismos opressores, as moradoras da Casa Amarela da Serra adotavam atitudes e comportamentos afetivos e de sociabilidade, criando um espaço de convivência prazerosa que, certamente, atuava como um “respiradouro social”.

Dessa forma, o espaço da sociabilidade, construído e compartilhado pelas moradoras da Casa Amarela da Serra, foi se descortinando e sendo apreendido por meio da sua materialidade no jornal Cinco p’ras Dez, como será apresentado seguir.