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Capítulo 3 AS ALUNAS CARLOS CHAGAS E A IDEALIZAÇÃO DE

3.2 Enfermagem: “a mais bela das profissões”

As representações da Escola, da enfermagem e da sua profissional, conformando a idéia de constituição de uma cultura institucional singular pelos idealizadores da EECC contribuíram na produção de uma rede de sentidos e significados para o ser-fazer-enfermeira na EECC. Esse fato é demonstrado nas descrições das candidatas ao curso de enfermagem que, ao pleitearem o ingresso na EECC, já chegavam com um discurso pronto, “na ponta da língua”, para falar sobre o que pensavam sobre a profissão que queriam abraçar:

A missão da enfermeira é a que acho mais bela de todas as demais profissões, pois a enfermeira trata dos enfermos com a maior consideração, carinho e paciência (MKA, 1936).

É a profissão da enfermeira uma profissão nobre, humana. Tem por fim, socorrer a humanidade sofredora (RLM, 1936).

Ser enfermeira é uma missão nobre e sublime: cura ferido, alivia dores, enxuga lágrimas e consola almas. Ser enfermeira é dedicar-se exclusivamente a humanidade sofredora (IP, 1937).

A profissão de enfermeira é sem dúvida a mais nobre das profissões. Esquecemos de nossas pessoas carinhosamente, dedicamos aos nossos semelhantes (HCM, 1938).

Acho bela e sublime a enfermagem, reconheço o seu valor ao lado dos que sofrem, o grande auxílio que ela prestará ao médico (ZJ, 1938).

A profissão de enfermeira é uma das mais belas que existe, pois pelos conhecimentos que adquirimos podemos ser úteis à humanidade, aliviando as dores e o sofrimento do próximo (VVO, 1939).

Considero a profissão de enfermeira como uma das mais nobres, tendo como objetivo proteção à vida, material delicadíssimo com que lida a enfermeira (MJCR, 1940).

Não resta dúvida de que, ao descreverem nas fichas de inscrição suas idéias sobre a enfermagem, bem como os motivos que as levavam a escolher a profissão, as candidatas ao curso descreviam o que a Escola esperava que descrevessem. Essas descrições funcionavam como uma senha de entrada. A semelhança em seus conteúdos com a repetição dos mesmos elementos é uma demonstração disso. Ou seja, antes de “experienciar” a profissão, as alunas incorporavam-se de elementos simbólicos que circulavam na EECC sobre o ser-enfermeira. As argumentações de Marshall Sahlins sobre o “diálogo simbólico da história – diálogo entre as categorias recebidas e os conceitos percebidos, entre o sentido cultural e a referência prática –” fornecem pistas para a elucidação desta questão:

[...] a experiência de sujeitos humanos, especialmente do modo como é comunicada no discurso, envolve uma apropriação de eventos em termos de conceitos a priori. A referência ao mundo é um ato de classificação no curso do qual as realidades são indexadas a conceitos em uma relação de emblemas empíricos com tipos culturais (SAHLINS, 1999, p. 182).

É interessante observar que as alunas utilizavam os argumentos da beleza e da nobreza da profissão sempre acompanhados de elementos que indicavam dor e sofrimento.

Mais importante ainda é destacar que a profissão era considerada nobre e bela não apenas por lidar com o sofrimento alheio, mas também pelo sentimento de doação profissional que era exigido da enfermeira, como mostra uma das alunas ao dizer que “esquecemos de nossas pessoas carinhosamente, dedicamos aos nossos semelhantes”.

Na verdade, essas representações sobre a enfermagem e sobre a mulher- enfermeira não podiam ser diferentes. No Brasil, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, o sexo feminino aglutinava, no pensamento de parte da intelectualidade brasileira, “atributos de pureza, doçura, moralidade cristã, maternidade, generosidade, espiritualidade e patriotismo, entre outros, que colocavam as mulheres como responsáveis por toda beleza e bondade que deveriam impregnar a vida social” (ALMEIDA, 1998, p. 17).

Nesse sentido, e também pelo fato de várias alunas serem provenientes do magistério, as candidatas a enfermeiras já se colocavam no processo de produção de representações que ajudavam a afirmar uma identidade profissional, constituída, ao mesmo tempo, de atributos inerentes à mulher-enfermeira e daqueles relativos à competência técnica exigidos ao conhecer-ser-fazer-mulher-enfermeira. Além de se configurar como uma profissão de natureza técnica, nobre, bela, sublime e própria para as mulheres, ela encerraria, também, sacrifícios e caridade cristã. Ademais, os conhecimentos adquiridos durante o processo de formação seriam úteis a qualquer papel exercido pela mulher na sociedade brasileira, principalmente àqueles dos quais se exigia a caridade cristã. É o que mostram alguns relatos:

A profissão da enfermeira é a mais sublime e grandiosa que conheço, porque encerra a mais sublime das virtudes – a caridade (YCT, 1933). Acho que a enfermagem é uma carreira de grande utilidade, pois nós mulheres nascemos para fazer caridade, tratando com grande carinho os doentes e praticando este serviço estamos trabalhando para nossa querida Pátria, sendo assim, homens doentes tornarão sadios podendo assim defender a Pátria (MSB, 1945).

De um lado, as representações que associam a figura da mulher com a caridade cristã e que foram trazidas para a enfermagem indiciam pari passu seu contexto de produção. Segundo Eliane Marta Lopes, desde o século XVII “o campo da caridade era o único no qual as mulheres puderam, por assim, dizer, reinar” (LOPES, 1992, p. 177). No entanto, a partir do século XVIII, para transitar do espaço privado para o espaço público, a mulher precisava, além da caridade, de conhecimentos técnicos e científicos que lhe permitissem exercer uma profissão.

De outro lado, a representação construída em torno de que uma das funções primordiais da enfermagem era a de “ser útil à humanidade”77 aparece em todos os discursos das alunas da EECC, principalmente a partir de 1940, quando a ficha de inscrição sofreu modificações78. Essas representações indicam também que se a educação da mulher, nessa época, era mais voltada para o lar e a dos homens para serem úteis à sociedade, a formação da enfermeira, como não era para o lar, seria para ser útil à humanidade.

Observa-se que essa rede de significação sobre a enfermagem, no Brasil, começa a ser produzida no contexto de produção de uma nova ordem social em que ocorreu o processo de institucionalização da profissão no País, em conformidade ao sistema nightingale de ensino. Como no jogo do caleidoscópio, as enfermeiras da missão norte-americana visavam à produção de uma prática de enfermagem a partir da ruptura com o tradicionalismo e com o empirismo dessa prática no Brasil, ou seja, elas desejavam romper com tudo que pudesse denegrir a imagem da nova profissional. A idéia de ruptura radical com o passado era

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A palavra útil é usada com muito destaque e repetidas vezes na adjetivação dos eventos e dos acontecimentos que dizem respeito à EECC. Parece que ela tem uma conotação particular no ideário religioso. Michel de Certeau, em seu estudo sobre as práticas religiosas, nos séculos XVII e XVIII, cita Montesquieu, que diz: “Todas as religiões contêm princípios úteis à sociedade”. Em sua análise sobre esta asserção, Certeau (2002, p.176) esclarece: “Esta regra tem um significado científico e um alcance moral: ela indica o que a elite quer fazer das religiões: transformá-las em utilidade social. O aparecimento de uma normatividade investida na multiplicidade de fatos observados permite explicitar regras de ação relativas a esta ‘sociedade’, que se substitui à Igreja no seu papel de ser o lugar de sentido, o corpo absoluto, e também um clericato da razão”.

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Com a modificação na estrutura da ficha de inscrição, a candidata deveria escolher um ou mais motivos preestabelecidos do “porquê deseja fazer o curso de enfermagem: por vocação, por meio de vida, por facilidade do curso, por ser útil à humanidade, por achar nobre e bela a profissão?”.

tão forte que, conhecendo o “peso” da palavra enfermeira79 para a sociedade brasileira, Ethel Parsons hesitou em adotá-la. Segundo Alcântara (1966), nos arquivos da Escola Anna Nery, entre os documentos pertencentes à primeira turma de diplomadas, há fichas de inscrição com o cabeçalho “Inscrição para a Escola Preparatória de Nurses do São Francisco de Assis”. O termo nurse foi rejeitado, prevalecendo a palavra enfermeira com as adjetivações de “alto- padrão”, de “saúde pública” ou “diplomada” para diferenciar a nova profissional dos demais práticos que exerciam a enfermagem80.

Na verdade, as conotações e os usos da palavra “enfermeira” têm sido, historicamente, motivos de bastante polêmica. Nos estudos realizados pela Comissão de Educação do Conselho Internacional de Enfermagem, no período entre 1929 e 1933, que deu origem a um Programa Educativo para Escolas de Enfermagem, foi observado que em alguns países não havia, no vocabulário, uma palavra para designar “enfermeira” e, que em outros, o termo usado limitava-se ao serviço hospitalar ou ao cuidado dos doentes e feridos, o que exigia usar outro termo ou dar um novo significado ao existente. Um exemplo encontrado foi a antiga palavra inglesa nursing que, originariamente, quer dizer criar, nutrir, ou seja, a proteção cuidadosa dada pela mãe a seu filho. Posteriormente, o uso dessa palavra abrangeu o cuidado de pessoas de todas as idades e em todas as condições do seu ciclo vital (STEWART, 1945). Analisando as raízes semânticas do termo, Cunha (1986) mostra que, originária do latim enfermar – infirmare, século XIII –, a palavra enfermagem é usada apenas a partir do século XX, sendo que “enfermeiro” também surge já no século XIII.

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Florence Nighthingale foi a primeira a dizer: “Utilizo a palavra enfermagem por falta de outra melhor” (NIGHTINGALE, 1989, p. 14).

80

Ainda ressoa aos meus ouvidos a voz da minha professora de Exercício da Enfermagem, Maria Lídia de Queiroz Rocha, dizendo que, se existe a enfermeira formada, então, deveria existir a enfermeira deformada. Era uma tentativa frustrada de eliminar as adjetivações para a enfermeira. Digo frustrada porque até hoje uma forma de diferenciação da(o) enfermeira(o) dos demais membros da equipe de enfermagem é a(o) profissional dizer que o enfermeiro ou a enfermeira é “quem tem o curso superior”, “que é a pessoa formada”, “é quem coordena e supervisiona a equipe”, etc. De acordo com o Conselho Regional de Enfermagem, a Equipe de Enfermagem é formada por enfermeira(o), técnica(o) de enfermagem e auxiliar de enfermagem.