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Capítulo 3 AS ALUNAS CARLOS CHAGAS E A IDEALIZAÇÃO DE

3.1 A “natureza feminina” da enfermagem

A enfermagem foi institucionalizada na sociedade moderna ocidental como uma profissão para mulheres e mantém-se com o predomínio de mulheres até os dias atuais. Na ficha de inscrição73 ao Curso na EECC, não se exigia e nem havia espaço para o registro do sexo, uma vez que não era permitida a entrada de homens na profissão. Até meados do século XX, eram aos homens – os intelectuais brasileiros – que cabiam ditar os conhecimentos, as normas e os valores adequados à formação da mulher-enfermeira. Outros homens – médicos “hospitalares” e higienistas – eram os responsáveis pelo ensino teórico das futuras

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Há dois modelos de ficha de inscrição: o primeiro foi utilizado de 1933 a 1939 e retomado em 1947; o segundo entre 1940 e 1946 – Anexo III.

enfermeiras. O ensino prático, como será apresentado no capítulo 5, ficava sob a responsabilidade da mulher – a instrutora de técnica de enfermagem.

Ressalta-se que a literatura registra a enfermagem, em seus primórdios, fora do grupo familiar, como uma “atividade de ofício” exercida única ou predominantemente por homens (SAUPE, 1998). Foi sua institucionalização como profissão que se deu como uma profissão feminina. Paixão (1979, p. 22) informa, também, que a designação de “enfermeiros” foi encontrada em documentos anteriores ao advento do cristianismo, na Índia. Nessa época, esperava-se deles “asseio, habilidade, inteligência” e “moralmente deveriam ser puros, dedicados e cooperadores”. Essas características relacionadas ao feminino e ao masculino do ser humano, certamente, conformavam o ser-enfermeiro. Trata-se de questões intricadas de gênero que perpassam a história da enfermagem mundial e que merecem estudos aprofundados, uma vez que acabam por ser tangenciadas, como em um estudo elaborado, em 1934, pela Comissão de Educação do Conselho Internacional de Enfermagem. Essa Comissão, ao elaborar um Programa Educativo de Escolas de Enfermagem74, reconhecia que “tanto homens como mulheres ocupam-se em enfermagem, portanto, não é uma vocação limitada ao sexo”, mas, desde que “uma proporção muito pequena de enfermeiros são homens, o estudo elaborado abordou o assunto mais sob o ponto de vista de enfermeira mulher” (STEWART, 1945).

Edith Fraenkel, ao assumir o cargo de Ethel Parsons no DNSP, reafirmou que a enfermagem “é profissão essencialmente feminina, aquela em que a mulher se encontra no seu elemento, trazendo margem a um desenvolvimento e aperfeiçoamento contínuos quer

moral, mental e intelectual, fazendo ressaltar as suas melhores qualidades” (FRAENKEL, 1998, p. 16, grifo nosso). Isto é, está na essência da mulher ser-enfermeira. Uma essência que

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Um dos objetivos, neste estudo, foi “reunir certos princípios, métodos e materiais que possam ser usados e sirvam de guia às escolas de enfermeiras na confecção do seu próprio currículo” (STEWART, 1945, p. 9).

é dela, mas que precisa e/ou pode ser desenvolvida pela educação formal para ser usada em favor de outrem e/ou dela própria. É o que se observa em relatos75 de alunas da EECC:

A profissão de enfermeira é, a meu ver, uma das mais elevadas carreiras que a mulher moderna pode escolher. Ela é própria para a mulher, porque toca aos sentimentos de humanidade que são inatos no coração feminino (NPOM, 1936).

As minhas idéias sobre a profissão de enfermeira são as melhores possíveis, porquanto acho indispensável a qualquer pessoa, principalmente às mulheres, algumas noções sobre enfermagem. E seu objetivo é útil e necessário, principalmente às futuras mães de família. Eu sempre tive idéia de seguir esta profissão, mesmo por alguns casos de necessidades, em casa e fora desta. Desejo dedicar a minha vida, espalhando o bem a humanidade (APCS, 1933).

Considero a enfermagem uma carreira bastante indicada para a mulher devido o espírito de sacrifício que a mesma exige. São conhecimentos necessários a uma mulher, que aspire uma educação completa: mãe, esposa, educadora ou enfermeira, os conhecimentos adquiridos nesta carreira são verdadeiramente úteis (IGA, 1947).

A utilidade e a importância da aquisição dos conhecimentos ou noções de enfermagem pelas mulheres são representações que iam tomando forma no seio da sociedade brasileira nas primeiras décadas do século XX, à medida que os “missionários do progresso” começam a compreender a grande contribuição da mulher-enfermeira para o projeto de educação na regeneração da raça do País. Essas representações foram incorporadas pelas alunas da EECC e diziam respeito às novas funções que “a mulher moderna pode escolher”. Se ela não queria ser a “rainha do lar” ou dedicar-se ao magistério, a mulher podia escolher a profissão de enfermeira, que “é própria para a mulher, porque toca aos sentimentos de humanidade que são inatos no coração feminino”. Ademais, ao cursar a enfermagem, pode-se adquirir “conhecimentos necessários a uma mulher, que aspire uma educação completa: mãe, esposa, educadora ou enfermeira”.

Almeida (1998) mostra que, nessa época, “o magistério podia ser considerado a profissão ideal, até mais do que a enfermagem, outra profissão bem aceita para as mulheres”.

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Na ficha de inscrição ao curso, as candidatas deveriam descrever em poucas palavras as suas idéias sobre a profissão de enfermeira, seu objetivo e os motivos que a fizeram abraçá-la.

Segundo essa mesma autora, e conforme ressaltado anteriormente, “as demais profissões que fugissem aos padrões ditos femininos ofereciam tenaz resistência à sua entrada, sob os mais variados argumentos, desde o risco de prejuízo à sua saúde e à dos futuros filhos, a desagregação da família e as conseqüências para a sociedade e para pátria” (ALMEIDA, 1998, p. 74).

Entretanto, para o exercício de uma profissão moderna como a enfermagem era representada, havia necessidade de a mulher adquirir os conhecimentos técnicos e científicos. É o que apresenta o relato de uma aluna – religiosa da Congregação das Irmãs Vicentinas -, ao falar da importância do preparo técnico que o curso proporciona, uma vez que a enfermagem “marcha de par com o progresso atual da ciência médica”:

Convicta de que a ignorância da técnica de enfermagem, que ora marcha de par com o progresso atual da ciência médica, viesse a prejudicar, apesar de toda boa vontade em lhes servir, os pobres por quem me dedico, já por deixar de prodigalizar-lhe socorros convenientes, já por fazê-lo talvez de modo insuficiente, pedi e obtive permissão para fazer este curso. Parece-me que assim satisfaço em consciência o compromisso de honra que eu assumi perante Deus e a sociedade (EAN, 1936).

É interessante ressaltar que o relato dessa aluna, irmã de caridade da Congregação de São Vicente de Paulo, mobilizou-me para mostrar que ocorreu no Brasil, a partir da década de 1930, o movimento de profissionalização das religiosas no campo da educação pari passu ao campo da enfermagem e, que esse movimento não deixa de estar relacionado ao Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, que buscava dar novos rumos à educação brasileira pós- 193076. Ao analisar a reação de Minas Gerais ao Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, Peixoto informa que a Secretaria da Educação e Saúde promoveu em 1933, o “I Curso de Aperfeiçoamento para Religiosas”. O Curso destinava a “preparar candidatas à regência das cadeiras de metodologia e psicologia nas escolas normais equiparadas, pertencentes às congregações religiosas” (PEIXOTO, 2004, p. 292).

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Maria José Rosado Nunes, ao estudar as “freiras no Brasil”, informa que desde o fim do século XIX as religiosas já se encarregavam de inúmeras tarefas necessárias à sociedade, particularmente no campo da educação, da saúde e da assistência social. Segundo esse estudo, enquanto predominava na sociedade uma visão de mundo sacralizada, as religiosas, somente por esse título, podiam exercer atividades para as quais não se encontravam tecnicamente habilitadas. O fato de serem “irmãs de caridade” lhes permitia ser professoras, enfermeiras ou assistentes sociais, sem a exigência de cursos ou diplomas. Contudo, de acordo com a autora, “a mentalidade moderna” passou a exigir “preparo profissional, habilitação específica para o exercício das diversas profissões” (NUNES, 1997, p. 501).

Tratando-se da preparação técnica no processo de formação da enfermeira, relacionadas à questão de gênero, idéias creditadas a Florence Nightingale aparecem em texto traduzido e intitulado A Missão da Enfermeira:

Em 1867, Florence Nightingale escreveu o seguinte: uma boa parte do mal na vida da mulher provém da exceção que se faz para ela das regras de preparação de técnica e aprendizagem consideradas necessários para os homens. A enfermeira necessita de um período de formação e dominar os conhecimentos anexos à sua profissão, do mesmo modo que o homem domina a sua. Um homem sem preparo nem formação que pratica medicina é chamado ‘curandeiro’ e impostor. Por que as enfermeiras não formadas não são chamadas também curandeiras e impostoras? Suponho que seja somente porque pouca gente acredita que se possa saber medicina e cirurgia por instinto, porém há dez ou vinte anos na Inglaterra acreditava-se que se pudesse ser enfermeira por instinto (A ENFERMAGEM EM MINAS, 1937e, p. 19).

Enquanto Florence Nightingale instituía uma profissão para a mulher na Inglaterra Vitoriana, na segunda metade do século XIX, no Brasil, nessa época, após sua independência, o discurso sobre a importância da educação em geral e, da mulher em particular, na modernização do País, era recorrente. Mas, não era a educação que algumas mulheres brasileiras queriam. Guacira Louro (1997b) fala de uma voz feminina revolucionária, – a de Nísia Floresta – que denunciava a condição de submetimento em que viviam as mulheres no

Brasil e reivindicava a educação delas, como instrumento de sua emancipação. Entre as múltiplas concepções e formas de educação discutidas e estabelecidas para a mulher brasileira, um discurso ganhava a hegemonia e parecia aplicar-se a muitos grupos sociais a afirmação de que as “mulheres deveriam ser mais educadas do que instruídas”. Nesse sentido, para elas, a ênfase deveria recair sobre a formação moral, sobre a constituição do caráter, sendo suficientes doses pequenas ou doses menores de instrução. Se o destino da mulher era a de ser mãe e esposa, na opinião de muitos, “não havia necessidade de mobiliar a sua cabeça com informações ou conhecimento”. Para a sua formação bastaria uma moral sólida e bons princípios, tornando-a a mãe virtuosa, “o pilar de sustentação do lar, a educadora das gerações do futuro”. Assim, nas últimas décadas do século XIX, os discursos que circulavam no campo educacional brasileiro apontavam para a necessidade da educação da mulher, vinculando-a à modernização da sociedade, à higienização da família, à construção da cidadania dos jovens. O magistério transformava-se, portanto, em trabalho de mulher (LOURO, 1997b, p. 446, grifo da autora).

O discurso de magistério como profissão própria para mulheres trazia embutida uma série de justificativas, dentre elas a de que era um trabalho de “um só turno”, o que permitia às mulheres atender as suas “obrigações domésticas” no outro período, o que era mais um argumento para justificar o salário reduzido – um suposto trabalho complementar. No entanto, a incompatibilidade do casamento e da maternidade com a vida profissional feminina foi uma das construções sociais mais persistentes, pois o casamento e a maternidade “eram efetivamente constituídos como a verdadeira carreira feminina. Tudo que levasse as mulheres a se afastarem desse caminho seria percebido como um desvio da norma” (LOURO, 1997b, p. 454, grifo da autora).

Na enfermagem, os discursos eram semelhantes. De acordo com Miranda (1996, p. 198), “Florence foi uma mulher que entendeu que uma das possibilidades de ser uma

mulher normal, sem ser casada e sem ser mãe, no século XIX, era ser enfermeira”, que

também deveria ter uma educação com ênfase na formação moral em relação à aquisição de conhecimentos. (grifo nosso).

Entretanto, desde a institucionalização da enfermagem como profissão sob a inspiração no sistema nightingale, havia a preocupação com o aspecto técnico da profissão. A técnica aparecia no mesmo nível de importância que outras qualidades como abnegação e piedade. É o que mostra o discurso de Carlos Chagas, ao ser citado na Exposição de Motivos do Projeto da Escola de Enfermeiras do Estado de Minas Gerais, apresentado aos diretores da Saúde Pública e da Faculdade de Medicina:

Não só abnegação e piedade exige agora o delicado mister de cuidar de enfermos, exige ainda conhecimentos técnicos exatos, que habilitem a providências urgentes, na ocorrência de incidentes imprevistos e que facultem o desempenho consciente de alta missão de enfermeira. Assim, o compreenderam os povos de maior cultura médica no mundo, e, de acordo com esse critério, souberam atuar eficazmente na organização de seus serviços de enfermeira (EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS, 1933, s.p.).

Laís Netto dos Reys, em alusão ao descaso governamental com a formação da enfermeira, já que até 1933 só havia uma escola do gênero no País, e usando os argumentos de Carlos Chagas, continua:

Não bastam, realmente, como bem diz o preclaro cientista brasileiro, se bem que imprescindíveis, as qualidades do coração, únicas, outrora requeridas, para quem se dedicava ao cuidado dos enfermos [...].

No Brasil, além do Distrito Federal, nenhum Estado deste grande país pensou ainda em dirigir a sua atenção para problema tão urgente e tão necessário qual o da educação técnica dessa abnegada classe que se devota ao benemérito labor de cuidar de doentes e velar pela saúde do povo – a classe da enfermeira.

E, assim, como as demais profissões são contempladas com os requisitos, favores e cuidados precisos à formação de seus profissionais, por que, só a enfermagem é relegada a um tal abandono?

Enfermagem, profissão que é de tão alta responsabilidade, cujo trabalho de suprema delicadeza – o manipular com a vida do próximo – requer e clama, no entanto, o mais profundo e cuidadoso preparo técnico, não poderá porventura, emergir desse estado de inexistência profissional e vir ocupar o lugar que lhe compete na linhagem das mais nobres profissões? (EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS, 1933, s.p.).

Merecem atenção especial as considerações feitas por Laís Netto dos Reys na Exposição de Motivos do Projeto de criação da EECC. Principalmente, em relação ao seu impetuoso apelo para que a enfermagem pudesse “emergir desse estado de inexistência profissional” e viesse “ocupar o lugar que lhe compete na linhagem das mais nobres profissões”. Na verdade, ela não mediu esforços para contribuir com a criação de uma escola de enfermeiras no Estado de Minas Gerais “que virá abrir às moças mineiras as portas de uma nobre, útil e humanitária profissão” (EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS, 1933, s.p.).

Como vem sendo demonstrado, para o ingresso da mulher “moderna” no mundo da educação e, muito mais ainda, no mundo das profissões, não podia ser qualquer profissão. Ela precisava aglutinar elementos que justificassem a permissão dos pais das “boas moças” da sociedade em abraçá-la, bem como a autorização das congregações para que as suas religiosas a abraçassem. A enfermagem podia ser uma boa opção para a mulher que não queria dedicar- se ao magistério.