• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 4 ESPAÇO E TEMPO ESCOLARES NA ESCOLA DE

4.3 Por entre tempos e espaços escolares

O “tempo” é o título de uma matéria do Cinco p’rás Dez de junho de 1935. Nela, a aluna Celina Pires Sanna vagueia no tempo e nos mostra alguns de seus sentidos e significados para as moradoras da Casa Amarela da Serra:

91

No anexo VI é apresentado um exemplar do Jornal Cinco p’rás Dez, ilustrativo das demarcações das datas memoráveis da EECC.

O tempo passa e não volta...tal é a frase dita por todos que conhecem a sua preciosidade. Em cada segundo, minuto, hora do dia passam-se no mundo inteiro quadros tristes e alegres que se vão logo sepultar o passado. São

momentos velozes, sem significação aparente, mas com um pouco de reflexão veremos que de um minuto depende às vezes a felicidade ou a desgraça de uma pessoa. Anos e anos são necessários para formação de

grandes homens, mas, às vezes, um minuto basta para um santo se tornar o mais abominável dos homens. [...] Fossemos nós mais atentas ao passar das horas, estaríamos mais em dia com os nossos deveres quotidianos. Não quero dizer que se deva tremer à vista do tempo que passa e sim que não devemos ser insensíveis a ele, observando-o sempre sem demasiada preocupação. Isto se refere principalmente a nós enfermeiras que não podemos trabalhar e agir sem noção exata das horas. ‘Tempo’ é a palavra

mais pronunciada por nós em trabalho ou recreio toda a nossa correspondência encerra a mesma cantilena: ‘o tempo me é demais escasso’. [...] Conhecendo a valiosidade do tempo é necessário que faça

ponto final aqui. Inúmeros afazeres me aguardam e os que me lêem também têm as suas ocupações. Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje é um conhecidíssimo provérbio que bem podemos tomar como lema (SANNA, 1935, grifo nosso).

Como vem sendo afirmada, a cultura escolar apresenta em seus elementos constitutivos os tempos e os espaços educativos que funcionam como dispositivos de vigilância e controle dos sujeitos escolares. A matéria em questão, possivelmente “encomendada”92 pela Diretora, Laís Netto Reys, como várias outras sobre os mais diversos temas, mostra que a noção de tempo pode adquirir múltiplos sentidos e significados. É considerado um bem precioso que deve ser apreciado e usado em doses regradas, isto é, bem cronometrado para não ser desperdiçado; pode ser visto como um passado passível de ser sepultado; como momentos efêmeros, mas ricos de significados; e, principalmente, como um lema do presente, do cotidiano vivido: “Não deixe para amanhã o que pode fazer hoje”.

O objetivo de uma breve reflexão sobre o tempo passa, não necessariamente, pelos sentidos e significados a ele atribuídos pelas moradoras da Casa Amarela da Serra, mas pelo entendimento do seu potencial transformador e controlador dos sujeitos em seus tempos e espaços escolares. Com a constituição de uma forma escolar incorporando e produzindo

92

Em uma matéria publicada em 13 de agosto de 1935, sob o título de “A enfermeira no serviço de saúde pública” Pessanha (1935, p.1) inicia a matéria dizendo “É para as alunas da Escola Carlos Chagas e Enfermeiras visitadoras de Saúde Pública que escrevo estas palavras, cumprindo assim uma ordem que veio do alto” (grifo nosso)

culturas escolares, era preciso construir a “cultura do tempo”, “principalmente para nós enfermeiras [discurso de aluna já incorporando o espaço profissional] que não podemos trabalhar e agir sem noção exata das horas”. Na verdade, encontrava-se em confronto a conformação de uma nova enfermeira: “O tempo urge a as lutas se tornam mais intensas requerendo de nós mais energia para o combate” (SANNA, 1935). Novas práticas deveriam ser implementadas para demarcar a profissão em sua fase de legitimação social; ou melhor, era necessário produzir e legitimar uma nova escola de enfermagem no País, com novas idéias, com novas práticas. Desse modo, não deixa de ser uma forma de a EECC colocar-se no movimento escolanovista que deu novos sentidos e novos significados à educação da mulher que já se profissionalizava, no Brasil, desde o século XIX.

Para tanto, era necessário, também, que novas referências de tempos e novos ritmos fossem construídos e legitimados no processo de escolarização da enfermagem. Ademais,

o tempo escolar, ou melhor dizendo , os tempos escolares, são múltiplos e, tanto quanto a ordenação do espaço, fazem parte da ordem social e escolar. Sendo assim, são sempre pessoais e institucionais, individuais e coletivos, e a busca de delimitá-los, controlá-los, materializando-os em quadros de anos/séries, horários, relógios, campainhas, ou em salas específicas, pátios, carteiras individuais ou duplas, deve ser compreendida como um movimento que teve ou propôs múltiplas trajetórias de institucionalização da escola. Daí, dentre outros aspectos, a sua força educativa e sua centralidade no aparato escolar (FARIA FILHO, 2000, p. 70).

Como categorias disciplinares, espaço e tempo têm se constituído objeto de estudo por historiadores da educação, por motivos bastante óbvios, como afirma Viñao Frago (2000), pois elas não são estruturas neutras nos processos educativos. Muito pelo contrário, as categorias espaço-temporais conformam uma cultura escolar nas instituições educativas, tornando-se centrais no processo ensino-aprendizagem.

Quanto ao fato de constituírem objetos históricos no campo da história da educação, Viñao Frago (2000) salienta que a maior parte dos estudos até agora realizados na

perspectiva de tempos e espaços escolares circunscrevem-se no âmbito da educação primária e infantil, pois, como afirma Louro (2000, p. 129), “a escola se constitui, ainda, em nossa sociedade, num espaço e num tempo especiais para a produção dos sujeitos, para a transformação de meninos e meninas em homens e mulheres”. Como práticas disciplinares, pode-se pensar que da mesma forma que na escola de ensino fundamental os espaços e tempos escolares transformam a criança em aluno, na EECC elas conformaram a aluna, instituindo a profissional.

Durkheim (1996, p. XVI) denominou o espaço e o tempo como categorias do pensamento, como noções que “correspondem às propriedades mais universais das coisas”, pois “não podemos pensar objetos que não estejam no tempo e no espaço, que não sejam numeráveis”.

Varela (2000, p. 73), por sua vez, diz que são essas noções que “permitem coordenar e organizar os dados empíricos e tornam possíveis os sistemas de representação que os homens de uma determinada sociedade e em um momento histórico concreto elaboram sobre o mundo e sobre si mesmos”.

Portanto, tempo e espaço são categorias sociais, representações coletivas que variam em razão das culturas e das épocas históricas e “estão relacionadas de algum modo com as formas de organização social, e, mais concretamente, com as formas que o funcionamento do poder e do saber adotam em cada sociedade” (VARELA, 2000, p. 74).

Como afirma Durkheim (1996), as categorias do pensamento humano jamais são fixadas de forma definida; elas se fazem, se desfazem e se refazem constantemente, mudando de acordo com os lugares e as épocas. Além disso, continua o mesmo autor, as categorias são representações coletivas “são o produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no espaço, mas no tempo sendo que para criá-las, uma multidão de espíritos diversos associou, misturou, combinou suas idéias e seus sentimentos” (DURKHEIM, 1996, p. XXIII).

Segundo Julia Varela (2000), Norbert Elias ocupou-se, também, das categorias do pensamento, inserindo-se no phylum aberto por Durkheim em As formas elementares da vida religiosa. Assim, em sua obra intitulada Sobre o tempo, ele ressalta a idéia de que as

categorias são instituições sociais e insiste no seu caráter simbólico quando assinala que os homens as adquirem e as utilizam como meio de orientação e de saber.

Como instrumentos de orientação e de saber, com a evolução da humanidade, as noções de tempo e de espaço também evoluem e vão sendo redefinidas, configurando-se como categorias históricas e culturais, e, nas sociedades mais avançadas, elas vão se constituindo em símbolos cada vez mais reguladores da vida cotidiana.

À medida que se foram “modernizando”, as categorias espaço-temporais se revestiram de um poder disciplinar conforme descrito e analisado por Foucault (1991) em Vigiar e punir. E, para compreender a natureza deste poder, Veiga-Neto (2001, p.12) afirma:

Entender o poder como uma ação sobre outras ações – como propõe Foucault – implica entender que o poder disciplinar age sempre sobre algo que tem vida, ou seja, sobre algo que ocupa um lugar no espaço e existe num tempo finito. Em outras palavras, as técnicas envolvidas no poder disciplinar operam primária e necessariamente num espaço e num tempo determinados.

Nesse sentido, os tempos e os espaços eram, na Casa Amarela da Serra, vigiados e cronometrados. O tempo era gasto para colaborar na redação do Cinco p’ras Dez, para o estudo, para o lazer e o recreio, e, sem dúvida para “o envolvente lúdico” e o para “a arte de transgredir”, formas analisadas por Teixeira (2002) em seu estudo sobre o cotidiano das alunas na EECC. Uma saída ou uma “escapada” para uma festa podia, ser ao mesmo tempo, motivo de controle e vigilância e de satisfação, como informa o Cinco p’ras Dez: “Realizou- se sábado último, no Diretório Central de Estudantes, uma festa caipira. Da casa amarela da Serra saiu interessante grupo rumo ao mesmo: acompanhado por D. Maria Rocha [Instrutora].

Voltaram todas à hora determinada, muito satisfeitas com a bela noite que passaram.

(CINCO P’RAS DEZ, 1935a, grifo nosso).

A narrativa de cenas do dia-a-dia pelas moradoras da Casa Amarela da Serra, das quais foram apresentados alguns fragmentos, demonstram o controle do tempo por meio do relógio93 – um de seus principais símbolos – e a visibilidade social que a EECC foi adquirindo com o decorrer de sua existência:

O sino toca às 6:15. Efigênia espreguiçando-se: todo dia nesta vida, acordo cedo para a lida. Toca o segundo sino às 6:45. D. Georgina para Primavera: você está sempre atrasada.

O bonde das sete passa Toma-o uma pequena massa No início grande admiração

Os passageiros sempre com exclamação: Será alguma Congregação?

‘Nada disso meus senhores!’ Diz o Dico com satisfação, ‘São moças que se preparam

Para a mais nobre profissão’ (CINCO P’RAS DEZ, 1935c).

Pode-se observar que os momentos de aparente insignificância consistiam de momentos ricos de significados, propícios para afirmação de que as moradoras do internato eram “moças que se preparam para a mais nobre profissão”. Não se trata, portanto, de uma “congregação” qualquer. Até o condutor do bonde, o “Dico”, que passava pelo Bairro da Serra, possivelmente, sabia dos horários que as alunas usavam desse meio de transporte para irem às aulas na Faculdade de Medicina e/ou nos hospitais.

Por mais difícil que fosse reservar tempo para se dedicar ao Cinco p’ras Dez, era preciso escrever “qualquer coisa”, nem que fosse para

Para passar o tempo e encher o papel...

Deu-se um fato com o jornal De cortar o coração

Muita coisa não saiu Por falta de inspiração.

Foi doença que caiu Em cima da redação A gente pensava grande E não vinha a inspiração.

93

Esse negócio de imprensa É uma paulificação

A gente queira ou não queira Tem que ter inspiração.

Em falta de algum assunto Aproveito a ocasião

De declarar hoje em público Que não tenho inspiração

E afinal este jornal Que na minha opinião Era o mais fraco de todos Teve tanta inspiração (PAIXÃO, 1935)

Dessa forma, a doença, a paulificação imposta por “esse negócio de imprensa”, a falta de tempo e de inspiração eram, também, motivos para “encher o papel”. Ninguém podia negar a sua colaboração para o Cinco p’ras Dez. O jardineiro do internato, ao ser convocado para escrever uma matéria para o que ele denominou de “Jornal das enfermeiras”, tem seu texto publicado com o título de “Meu artigo”. Ao descrever sobre fatos corriqueiros de um dia de trabalho, ele simula um diálogo com a instrutora: “Quem vem lá? É a Regina, digo, D. Regina, pois ela está de capa e véu”. E, ao terminar o texto ele diz “Já cansado de pensar, consultei o relógio: Quinze para as dez. Não há mais tempo. Até logo, minha gente. É melhor tapear as enfermeiras e não lhes mandar o meu artigo” (CINCO P’RAS DEZ, 1938b). Ou seja, “tapeando ou não” as enfermeiras, o jardineiro também colabora com o jornal. Entre outros elementos contidos nesse artigo, pode-se constatar o tratamento pessoal diferenciado que o uso do uniforme instituía. Ou seja, a Instrutora Regina Mendes da Rocha é tratada pelo jardineiro cordialmente por Regina e mais respeitosamente de D. Regina quando ela está trajando o seu uniforme.

Ao mesmo tempo em que colaboravam com o Cinco p’ras Dez porque eram convocadas e obrigadas a colaborar, que buscavam inspiração nos pequenos acontecimentos do dia-a-dia e os transformavam em grandes inspirações, que faziam “o tempo” na falta do tempo, as moradoras da Casa Amarela da Serra instituíam tempos e espaços escolares, a um só tempo, educativos e de sociabilidade. Ademais, o trabalho árduo precisa ser recompensado com horas de lazer, descanso, descontração e alegria:

Quantas vezes não desopilamos o fígado com os seus humorismos quase sempre a propósito! Que grande bem para nós! A enfermeira precisa rir, carece para a sua higiene mental de um ambiente leve onde respire paz e alegria (...) Muitos ensinamentos bons nós colhemos pela preciosa leitura do 5

pras 10 que é a vida do Grêmio, (...). Entretanto o que mais me seduz no 5 pras 10 é o espírito de fraternidade, estabelecendo a união entre os seus membros, através do intercâmbio de idéias criadas e lançadas no sentido de beneficiar a classe (CINCO P’RAS DEZ, 1938b).

As demonstrações de satisfação em colaborar com a redação do Cinco p’ras Dez não deixam de ser uma forma de mostrar também que as moradoras da Casa Amarela da Serra viam nessa prática a possibilidade de ampliar a sua cultura intelectual por meio da arte literária e da escrita. De um lado, “queimamos as pestanas e frigimos os miolos para sustentar o 5 p’ras 10. Esgotamos e bisamos nosso repertório lítero-musical nas famosas reuniões do 9 e 55” (CINCO P’RAS DEZ, 1938a). De outro, como dizia a aluna, “o que mais me seduz no 5 pras 10 é o espírito de fraternidade, estabelecendo a união entre os seus membros, através do intercâmbio de idéias criadas e lançadas no sentido de beneficiar a classe”, era o que valia a pena94.