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Capítulo 3 AS ALUNAS CARLOS CHAGAS E A IDEALIZAÇÃO DE

3.3 A seleção das candidatas à enfermagem

A regulamentação do ensino e do exercício da enfermagem no Brasil, concedida pelo Decreto nº 20.109, de 15 de junho de 1931, foi um instrumento governamental que concedeu às enfermeiras norte-americanas a possibilidade de manter o “alto padrão” do ensino e da profissionalização da enfermagem conquistado pela Missão no país. Ao fixar as condições de equiparação para as escolas de enfermagem, os títulos de enfermeiro diplomado ou enfermeira diplomada só seriam reconhecidos depois de registrados no DNSP.

Para justificar as ações implementadas, as enfermeiras norte-americanas enfatizavam a precariedade das práticas de enfermagem no Brasil e as comparava aos padrões anglo-saxônicos na época da institucionalização da enfermagem na Inglaterra. Como a Missão possuía tempo determinado para colocar o seu projeto em ação, as norte-americanas tinham urgência em rever e profissionalizar essas práticas com a introdução de elementos que as distinguissem, no campo da saúde e perante a população em geral, dos padrões até então vigentes. Portanto, com o propósito de proporcionar às alunas formação técnica e moral, os rituais de seleção das candidatas à profissão deveriam englobar critérios de classe, de gênero e de moralidade, destinados a fabricar os novos emblemas da profissão que se institucionalizava sob a tutela governamental.

Tendo como referência esses critérios, afirmava-se que, ao “selecionar candidatas, a escola de enfermagem fará todo o esforço para descobrir e escolher aquelas que demonstrarem as qualidades pessoais necessárias à enfermagem, todavia a escola é responsável pelo desenvolvimento dessas aptidões a um grau muito mais elevado” (STEWART, 1945 p. 31).

Mesmo dizendo que não é possível e nem desejável elaborar um modelo padronizado da personalidade da futura enfermeira, o Programa Educativo de Escolas de Enfermagem sugere as seguintes “características típicas” das enfermeiras que, segundo o programa, seriam aptas e profissionalmente bem sucedidas:

a) Forte, agradável e bem adaptada. b) Idéias esclarecidas, calma, perspicaz. c) Viva e precisa na observação. d) Prática e eficiente na ação.

e) Distinta, disciplinada, tem domínio próprio e confiança em si. f) Eficiente, perseverante, paciente, resistente.

g) Leal, cooperadora, ‘trabalha bem em grupo’. h) Bondosa, atenciosa, tem tato, é cortês. i) Tem interesse social e político.

j) Delicada, destra, mão firme.

k) Sistemática, metódica, boa administradora.

l) Capaz de inspirar confiança e de assegurar cooperação de outrem. m) Fértil em recursos, adaptável, versátil (STEWART, 1945 p. 31).

Pode-se ver que nesse imenso rol de qualidades e de virtudes que deveria conformar o ser-enfermeira não foi contemplado o aspecto religioso. Entende-se que isso se deve ao fato de o programa ter sido elaborado para atender mundialmente a todas as escolas de enfermagem com as suas específicas crenças e tradições religiosas.

Ao analisar as características das primeiras alunas de enfermagem no Brasil, Moreira (1998) informa que as referências aos aspectos morais e à origem delas, vez por outra, eram associados diretamente ao coeficiente de inteligência e à capacidade de freqüentar o curso. Por exemplo, os professores da turma de 1926 da EEAN julgaram-na de origem social melhor, por isso “muito mais inteligente do que as anteriores”. Sem dúvida, como diz esta autora, a posse de um diploma de escola normal funcionava como pré-requisito e facilitava a triagem social e cultural das candidatas, que já eram oriundas de famílias ilustres, como “a sobrinha do Cardeal Arcoverde”. A clivagem social, de um lado, vai-se manifestando na construção social da identidade da profissão e, de outro, a historiografia da enfermagem brasileira também mostra o desconhecimento da população sobre o papel da enfermeira, como

é apresentado no incidente ocorrido em uma seleção de candidatas ao curso na EEAN, em seus primeiros anos de funcionamento:

Um dia após a entrevista das candidatas pela banca examinadora, uma mulher irada entrou na secretaria da Escola de Enfermagem e expressou francamente sua indignação e seu juízo acerca da escola porque sua criada não havia sido selecionada. Depois que a Srta Kieninger [Diretora da Escola] explicou os padrões da escola, a mulher disse: ‘Bem, se trata deste gênero de escola, eu gostaria de matricular minha filha (que estava com ela), que é formada pela Escola Normal’. A moça foi admitida e dá mostra de estar entusiasmada e de vir a tornar-se uma excelente aluna (MOREIRA, 1998, p. 636, grifo do autor).

Ainda de acordo com Moreira (1998), o ingresso na EEAN passou a depender não só da posse do diploma do curso normal, como também de um pré-requisito não formalizado: ser de “raça branca”. Para essa autora, tal prescrição era uma forma de impedir o acesso à profissão não apenas das mulheres oriundas de classes menos favorecidas como daquelas provenientes do contingente populacional majoritário de negros e mestiços. A denúncia de uma aluna da primeira turma, vítima desse preconceito, e, posteriormente, os jornais de oposição denunciando a existência de candidatas que preenchiam os requisitos de admissão e que, contudo, eram recusadas devido a cor mostram que:

Na verdade, havia já na escola três estudantes que, apesar de brancas, mostravam alguns traços de sangue negro. Foi enviada uma carta à imprensa comunicando que nenhuma pretendente havia sido rejeitada por causa da cor, mas não foi convincente, e o Departamento de Saúde achou que seria aconselhável permitir o ingresso de uma moça negra, se acaso se apresentasse alguma que preenchesse todos os requisitos para admissão. Esta candidata apareceu em março, juntamente com as demais pretendentes, sob forte suspeita de que havia sido enviada por um dos jornais, e foi admitida. Isto provocou uma enxurrada de protestos por parte das alunas, mas, após considerar a questão, o Conselho de Estudantes finalmente decidiu que qualquer manifestação de rejeição ou de descortesia para com uma colega de classe demonstraria falta de respeito e de vontade de cooperar, e assim não houve mais dificuldades. As estudantes deixaram claro, contudo, que esperavam que não fosse admitida nenhuma outra negra por algum tempo. (MOREIRA, 1998, p. 637)

Moreira (1998) informa, ainda, que a origem racial das alunas, além de provocar incômodos para a direção dessa escola, era uma questão que perpassava pela aprovação das próprias alunas que não admitiam estudar com negras.

O que não se pode deixar de lembrar é que, de acordo com Veiga (2000, p.125), de um lado, as elites brasileiras “não pouparam palavras para identificar a escolarização elementar como ação fundamental de produção de nação”; e, de outro, que, “ao longo da história do Brasil, foram inúmeros os discursos desqualificadores da população pela origem racial, mesmo que, muitas vezes, eles fossem entrecortados pela origem de classe”. Nesse sentido,

nas primeiras décadas do século XX, através do aparato científico da medicina e da psicologia, as reformas escolares pretenderam, entre outras coisas, desfazer-se, por meio da educação, dos incômodos provocados pela origem racial brasileira. Entretanto, negros e pobres, em sua grande maioria, não tiveram acesso aos bancos escolares das cidades, ou mesmo no caso do acesso, poucos permaneceram na escola a ponto de concluir o curso primário (VEIGA, 2000, p. 125).

Tratando-se da origem socioeconômica das alunas, a historiografia da enfermagem brasileira tem, notadamente, reforçado o caráter elitista e preconceituoso utilizado por Nightingale na convocação de alunas ao curso ao enfatizar que a profissão surge marcada pela divisão técnica e social do trabalho, apresentando duas categorias distintas: as nurses e as ladies nurses. Como e por que ocorreu essa divisão? Os elementos apresentados

por Alcântara (1966) permitem melhor compreensão dessa questão proposta no sistema nightingale de ensino. Segundo a autora, inicialmente, Florence hesitou em receber moças de

elevado nível socioeconômico, as ladies, temendo a incapacidade delas para o trabalho exigido. Entretanto, ela teria mudado de opinião de acordo com o que escrevera em relatório da Escola, em 1961:

Pessoas de maneiras finas e de educação, ‘ladies’, de fato, não são, em regra as que possuem melhores qualidades: estas são encontradas, em geral, entre as mulheres de inteligência acima do normal, provindas de camadas em que as mulheres são obrigadas a ganhar a vida. Entretanto, as ‘ladies’, não

devem ser excluídas; pelo contrário, se provarem sua capacidade profissional e tiverem qualidades exigidas para as funções de superintendente, serão admitidas na Escola e após o curso poderão ocupar, facilmente, cargos administrativos (ABEL-SMITH apud ALCÂNTARA, 1966, p. 14).

Em outra ocasião, referindo-se às ladies, Florence informa que a sua intenção era preparar enfermeiras, de qualquer classe social ou religião, que fossem habituadas ou não ao trabalho remunerado. O que importava era que possuíssem qualidades morais, intelectuais e físicas para a vocação.

Ao que tudo indica, para Florence, as moças da classe média seriam aquelas com o melhor perfil para enfermeiras. No entanto, a Escola atraiu, inicialmente, pessoas de elevado ou baixo nível, não despertando interesse às jovens daquela classe, o que, segundo Alcântara, era incompreensível para Florence, que não entendia porque, por exemplo, “jovens pertencentes às famílias de comerciantes não se [dedicavam] aos estudos de enfermagem” (ALCÂNTARA, 1966, p. 15). Diante desse fato, a partir de 1871, a Escola passou a admitir dois tipos de alunas: as de nível socioeconômico inferior, denominadas nurses81, para as quais tudo era gratuito e que deveriam prestar serviços no hospital, pelo menos um ano após o curso e as lady-pupils que pagavam pelo seu curso e sua manutenção, e não eram obrigadas a permanecer um ano na instituição após o curso (ALCÂNTARA, 1966).

A EECC, desde o inicio do seu funcionamento, aceitou em seus quadros alunas que pudessem assumir os custos do seu estudo. Aceitou, ainda, candidatas de ordens religiosas, – item garantido em Regulamento – e alunas da raça negra. De acordo com esse regulamento, no ato da matrícula, a candidata deveria apresentar os documentos exigidos e submeter-se aos seguintes critérios:

DAS MATRÍCULAS

Art.31. As candidatas à matrícula deverão apresentar os seguintes documentos:

81

Tem-se, assim, as origens de outros profissionais da enfermagem: os atuais auxiliares e técnicos de enfermagem.

a) Certidão de idade ou documento que a substituía em juízo provando ser maior de 20 e menor de 38.

b) Requerimento especificando o curso em que pretende matricular-se. c) Atestado de idoneidade moral firmado por duas pessoas idôneas. d) Caderneta sanitária, fornecida pela diretoria da saúde pública. e) Diploma de curso normal ou ginasial

§1°. As candidatas que não puderem apresentar os documentos da letra “e” deverão submeter-se ao exame de admissão.

§2°. Todas as candidatas à matrícula serão submetidas a testes. [...] DO EXAME DE ADMISSÃO

Art. 37. O exame de admissão constará para o curso geral de:

a) Composição escrita em vernáculo sobre o assunto sorteado no momento; questões de gramática, análises, etc.;

b) Problemas relativos às 4 operações fundamentais (inteiro, frações ordinárias e decimais, proporções e sistema métrico, regra de 3, etc.);

c) Noções elementares sobre ciências naturais. Noções de física e química.

d) Noções gerais de geografia, história do Brasil e universal;

e) Tradução de um trecho de francês, inglês ou alemão, à escolha da candidata (REGULAMENTO, 1934).

Os critérios de seleção estabelecidos para a admissão de candidatas interessadas na enfermagem mostram que não era qualquer mulher que podia candidatar-se à profissão. A candidata deveria obter e apresentar atestado de idoneidade moral firmado por pessoas também idôneas e dar referência de três pessoas que pudessem dar informações sobre ela. Ademais, deveria registrar suas características pessoais: saúde, defeitos físicos, peso, altura e comprovar as vacinações recebidas. Como o grau de escolaridade das mulheres brasileiras nessa época era baixo, o exame de admissão permitia-lhes fazer o curso. Em diversos históricos escolares analisados foi constatado o registro de matérias e das respectivas notas obtidas pelas candidatas nesse exame. Há registros de provas de Português, Matemática, Ciências, Geografia e História do Brasil, contudo, sem fazer menção à tradução de um texto à escolha da candidata, conforme rezava o regulamento. Não foram encontrados registros dos testes referidos no parágrafo dois dos critérios estabelecidos para a matrícula, que regulamentava: “todas as candidatas à matrícula serão submetidas a testes”. Apenas um relato de aluna da primeira turma dizia: “Depois de submetidas a um interessante teste, iniciaram-se as nossas aulas” (MOREIRA, 1936, p. 74).

Certamente a ficha de inscrição consistia no principal instrumento do processo de seleção das candidatas ao Curso de Enfermagem Geral na EECC, uma vez que a sua análise permitia avaliar os critérios estabelecidos no regulamento, dentre outros. Nessa ficha, como foi referido, além da identificação na qual constava o nome, a idade, o endereço e a pessoa da família ou outro responsável pela candidata, era possível avaliar: instrução, ocupações anteriores, características e referências pessoais, práticas anteriores na enfermagem e a descrição sobre as idéias, o objetivo e os motivos que levaram a candidata a optar pela profissão.