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Para Bachelard (2000), a casa simbólica é um espaço de proteção, casa sempre mais imaginada do que real, daí criar a noção casa-sonho. Mesmo as casas reais em que vivemos, conteriam bastante de sonho ao serem lembradas.

Verissimo, em suas memórias, narras as lembranças das casas onde viveu, seja em Cruz Alta, seja em Porto Alegre, ou nos Estados Unidos onde também morou

Em sua primeira casa, onde viveu desde o nascimento até a idade dos 17 anos quando seus pais se separaram, as lembranças que tem não são das melhores.

“Depois daquela terrível noite de 1922, quando os meus se separaram, eu saí em busca do lar perdido” (VERISSIMO, 1976, p. 319).

Verissimo, ao lembrar dessa casa através da imaginação, me leva a pensar no que Bachelard adverte: “A casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem (BACHELARD, 2000, p. 26).

Nem toda casa – já se tem dito muitas vezes – é um lar. Nunca, porém, fui indiferente à expressão material do lar, o que se explica pela minha tendência de ter do mundo uma visão plástica. A noção de lar está em mim associada à de casa – o conteúdo inseparável do continente7.

7Esta palavra, imagino eu, Verissimo deve estar se referindo ao “Continente”, o primeiro volume

Ambas como que se interpenetram: há nelas uma espécie de interação (VERISSIMO, 1976, p. 319-320).

Habitar a casa natal é o mesmo que viver na casa desaparecida tal como foi sonhada um dia, diz o filósofo. A casa da infância e a casa natal são centros de sonhos, complementa. Delas é preciso dizer somente o bastante para que se entre em situação de onirismo, para que se repouse num passado sonhado (BACHELARD, 2000). Diante de suas imagens, o leitor já não lê a imagem da casa do escritor, mas sua própria casa-sonho, onde cada um de seus redutos foi um abrigo, uma habitação para um devaneio poético. A casa-sonho é a casa que abrigou sonhos. A casa da infância, a casa sonhada na infância, aproxima o leitor de uma infância imóvel, daquela infância reconquistada com lembranças de proteção, infância que permanece viva em nós através de nossos devaneios poéticos (BACHELARD, 1988).

Uma das mais significativas imagens do espaço onírico é, portanto, a casa, compreendida por Bachelard como imagem de intimidade protegida, reconfortante. O canto que cada um encontra no mundo. O primeiro universo. Tem seu valor de abrigo, algo profundamente arraigado no inconsciente coletivo. A busca de Bachelard (2000) ao tratar da imagem da casa é por revelar os valores do espaço habitado, ao menor abrigo, a imaginação dá o sentido de casa, diz ele. A casa faz evocar luzes fugidias de devaneio que iluminam a síntese do imemorial com a lembrança, em que memória e imaginação não se dissociam, complementa o filósofo-poeta.

Nossa casa está sempre de portas abertas. Nunca se sabe quem por elas vai entrar nem quando. Mafalda e eu podemos estar à noite completamente a sós, lendo ou escutando música, e minutos depois termos conosco dez, quinze, vinte pessoas – amigos e às vezes até desconhecidos, que aparecem para uma prosa, sem nenhum motivo relacionado com o calendário ou qualquer convite especial (VERISSIMO, 1976, p. 320).

Verissimo, em toda sua existência, nos quase 70 anos em que viveu, residiu em diversas casas. Porém, duas delas, posso destacar; a de Cruz Alta, em que nem chegou aos 18 anos de idade e a de Porto alegre, onde viveu de 1941 até o dia de sua morte, em 28 de novembro de 1975. Segundo suas palavras,

Foi em 1941 que a Dra. Stella Budiansky, nossa querida e dedicada amiga, e médica de nossos filhos [...] anunciou-nos que tinha visto no alto de uma das colinas de Petrópolis, o mais novo bairro residencial da cidade, uma casa recém-construída que estava à veda. Mafalda e eu, que andávamos [...] em busca do lar definitivo, fomos vê-la e.... foi amor à primeira vista. Era uma combinação de falso colonial espanhol com falso colonial português, mas tinha uma fisionomia simpática e serena. Chegamos a descobrir nela um ar de casa já habitada por nós? Mas quando? (VERISSIMO, 1973, p. 278).

Segundo Bachelard (2000), a casa é lugar de proteção, e os espaços da casa são espaços vivos. Por isso, elas pouco têm a ver com a geometria. Cada lugar e cada objeto tem memória e significado, dados pelas vivências que eles testemunharam. E as vivências do lar refletem o espaço íntimo de seu criador.

Alegra-nos saber que as pessoas geralmente sentem-se bem em nossa casa. Uma jovem que andava atormentada por incertezas e temores, confessou-nos um dia que, sob aquele teto, sentia-se abrigada, protegida e reconciliada com a vida. Outros amigos nos têm dito que nossa presença combinada com a atmosfera da casa – que é mais que a forma, a cor e a disposição dos móveis, quadros, tapetes, lâmpadas – proporciona-lhes uma sensação de repouso e paz (VERISSIMO, 1976, p. 320).

Assim, trago essas lembranças autobiográficas de Verissimo, articuladas ao que Bachelard fala sobre memória. Memória de “[...] uma infância que vai mais longe do que as lembranças da nossa infância, como se o poeta nos fizesse continuar, concluir uma infância que ficou inconclusa e que, no entanto, era nossa e que, sem dúvida, por diversas vezes temos sonhado” (BACHELARD, 2009, p. 100).

III – POÉTICA (S) DA MEMÓRIA EM SOLO DE CLARINETA: DO SONHO DE SER PINTOR (NÃO REALIZADO) AO ESCRITOR CONSAGRADO

A memória não só registra, ela confabula, isto é, cria acontecimentos imaginários, eventos inteiramente psíquicos. A memória é o elemento que a imaginação pode tomar emprestado, a fim de fazer suas imagens personificadas perceberem-se completamente reais.

James Hillman

Neste capítulo, realizo as leituras de imagens de Solo de Clarineta, articulando as memórias de Verissimo aos espaços poéticos e de imaginação, nos termos bachelardianos. Para dar conta desse intento, me apropriei da leitura imaginativa que fiz dessa obra, buscando mostrar que é possível chegar a uma poética memorial autobiográfica. Assim, exponho as memórias de Verissimo, procurando mobilizar as teorias do imaginário e iluminar tais lembranças/memória a partir da minha imaginação criadora. Importante lembrar que para imaginar não precisa de uma teoria, contudo as criações imaginárias podem dialogar com teorias que tratam do imaginativo.

Pensar em escrever memórias, logo imagino uma escrita que deve seguir uma ordem cronológica, uma vez que trata-se de dados autobiográficos. No entanto, Verissimo pensa diferente, tal como assinala:

Escrever memórias numa ordem rigorosamente cronológica seria uma tarefa difícil, perigosa e possivelmente monótona. De resto, o tempo do calendário e o do relógio pouco e às vezes nada têm a ver com o tempo de nosso espírito (VERISSIMO, 1973, p. 51).

Essa fala, efetivamente, me ajudou a não seguir a leitura de Solo em ordem cronológica. Li-o, de modo circular e imaginativo, num sistema de idas e vindas, embora a primeira leitura, quando estava de posse dos volumes dessa obra, tenha lido verticalmente, ou seja, da primeira página até a última.

Uma palavra bastante utilizada por Verissimo nessa obra é “computador”. Ele se referia a essa palavra como sendo sua memória. As pessoas que frequentavam a farmácia

de seu pai, entre “vadios” e “aposentados”, foram importantes figuras humanas que ofereciam “ao futuro romancista elementos para uma variada e colorida galeria de personagens.

Noutra passagem, ele escreve que estava:

Convencido de que o inconsciente representa um papel muito importante — mais do que o escritor geralmente quer admitir — no ato da criação literária. Costumo comparar nosso inconsciente com um prodigioso computador cuja “memória” durante os anos de nossa vida (e desconfio que os primeiros dezoito anos são os mais importantes) vai sendo alimentada, programada com imagens, conhecimento, vozes, ideias, melodias, impressões de leitura, etc.... O “computador” — à revelia de nossa consciência — começa a “sortir” todos esses dados, escondendo bem alguns deles, que passamos anos e anos sem que tenhamos sequer conhecimento de sua existência (VERISSIMO, 1973, p. 293).

Nesse contexto, acrescenta Verissimo: “O misterioso computador de meu inconsciente ia sendo assim programado sem que eu soubesse” (VERISSIMO, 1973, p. 39). Morin (2012, p. 97) faz uma analogia entre o cérebro e o computador, sendo este comparado à mente/cérebro humano. Segundo ele, “essa comparação revela as diferenças e as analogias”.

Entendo que Verissimo se referia ao computador, sendo sua mente/cérebro, embora Morin faz alusão ao computador como uma máquina não humana mas produzida pelo homem.

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