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Maria da Glória Bordini, já citada, é responsável pelo acervo de Verissimo, inclusive os manuscritos, os quais foram cedidos pela família (Mafalda e Luiz Fernando), me inspira a ler as imagens de Verissimo, uma vez que a leitura de imagens é um processo pessoal e único, a partir desses manuscritos, em especial um que trata da rotina do seu processo de criação. Segundo ela,

Nos esboços de suas memórias, Erico planeja contar como chega diariamente à criatividade: à tarde, escrevendo com três espaços para fazer correções, sem nenhuma secretária, porque não sabe mandar e porque demanda tempo explicar como, o que, etc. não usa estimulantes, nem café ou fumo (BORDINI, 1995, p. 67).

Em outro registro, relata a pesquisadora, tendo em conta tais manuscritos deixados por Verissimo:

[...] Confessa acordar às cinco da manhã, quando profundamente envolvido num projeto, com ideias brotando, as quais não escreve, mas acompanha com imagens: “Não costumo pensar com palavras, mas com imagens”. No seu caso, portanto, a rotina estabelecida depende de uma condição biológica que não pode ser obtida por um ato de vontade: estar melhor disposto à tarde para os atos de escritura e de manhã cedo para a imaginação. Esta, entretanto, só emerge quando o escrever se torna intenso e desbloqueado (BORDINI, 1995, p. 67, grifos da autora).

Cabe lembrar que essas duas passagens fazem parte do acervo de Verissimo, escritas por ele, no ano de 1972. Acrescento ainda que ambas não constam em Solo de Clarineta. Certamente, não julgou importante inseri-las nesses dois volumes e imagino que seria mais viável incluir num terceiro que pensara em escrever.

Ainda sobre Solo de Clarineta, há um registro nos manuscritos do acervo de um planejamento de capítulo intitulado “A oficina do Dr. Frankenstein”, o qual segundo Verissimo, faria parte do segundo volume de suas memórias e seu objetivo seria “discutir as limitações mentais do ato criativo”. Segundo Verissimo,

Usamos apenas as partes de frente da casa de nosso ser. Ou seja, nosso cérebro tem mais possibilidades [...] como abrir o quarto fechado. Como entender certos signos, vozes, premonições... (BORDINI, 1995, p. 61).

Essa passagem foi escrita por Verissimo em 1970, segundo esses manuscritos, os quais foram publicados por essa pesquisadora. A casa a que alude Verissimo, segundo Bachelard, pode ser o espaço onde acrescentemos valores de sonhos. Ou seja, em vez de buscar sonho no devaneio, buscaríamos devaneio poético no sonho (BACHELARD, 2009).

Em Solo, Verissimo narra, não de forma sistemática, o processo de construção de sua obra, seus romances em especial. Trago apenas três desses. O processo de imaginação criadora de “Olhai os lírios do campo” (1938), “O senhor embaixador” (1965) e “O arquipélago” (1961).

Verissimo conta que “Olhai dos lírios do campo” surgiu a partir de uma visita que fez a um hospital onde esteve a visitar um amigo que estava internado. Nesta visita, viu

um homem muito jovem sair dum quarto com um bebê recém-nascido nos braços. Logo, disseram-lhe que a mãe da criança havia morrido depois que deu à luz a criança.

A estória ficou-me na cabeça, revoluteando, provocando ideias e imagens como – hospital... médicos... mulher que morre... homem que fica, e que provavelmente a amava... Essa nebulosa foi o núcleo do mundinho de “Olhai os Lírios do Campo”. Tive a intuição de que estava na pista dum romance. E como sempre acontece quando sinto aproximar-se a ideia para um livro, fique numa espécie de exaltação interior (VERISSIMO, 1973, p. 265, grifos do autor).

No excerto a seguir, apresento o que aconteceu a Verissimo a respeito da criação e de como ocorreu a gênese de um de seus últimos romances. A ideia que tinha era escrever sobre Grécia por onde tinha estado.

Comecei a ler as notas gregas. Não consegui, porém, concentrar a atenção no texto daqueles cadernos cheios de desenhos: o perfil dum sacerdote ortodoxo, um esboço rápido da cidade de Rodes, vista do Stella Maris. Um dos leões de Delos [...] Lembrei-me então duma tarde, em 1954, no saguão do Hotel Tamanaco, em Caracas, durante a conferência de Ministros do Exterior da Organização dos Estados Americanos. Estava eu sentado ao lado dum compatriota, a “olhar as caras” e a fazer comentários tipicamente brasileiros sobre os que passavam, quando vimos sair dum elevador um homem de estatura meã, robusto, a tez acobreada, os malares salientes, os olhos oblíquos, vestido como para um casamento ou batizado: chapéu de diplomata, gravata cinzenta, jaquetão de mescla, calças listradas, sapatos de verniz... Meu amigo murmurou: “Aposto como esse índio comprou essa roupa nova especialmente para a Conferência”. Sacudi a cabeça, sorrindo, e não pensei mais no assunto. No entanto, agora, ali no meu porão, nove anos mais tarde, a cena e a figura do desconhecido me voltavam à mente. Por baixo do desenho escrevi: O Senhor Embaixador. Ali estava um assunto para romance! Quantas vezes, durante a minha estada em Washington me assaltara a ideia de escrever uma estória em torno dum embaixador latino-americano junto à Casa Branca e à OEA? Sempre, porém, que tentava elaborar um plano para

o romance, tolhia-me a impressão de que a “fruta” estava ainda verde [...] (VERISSIMO, 1976, p. 60, grifos do autor).

Assim, depois de ter vindo a lembrar das características fisionômicas desse senhor, desiste de escrever sobre a Grécia, explica:

Atirei para um lado os cadernos de notas e comecei a estudar graficamente as possibilidades da nova ideia. Quando dei acordo de mim, tinham-se passado quatro horas e eu já havia esboçado o plano para o romance. A figura central da estória seria o embaixador dum país imaginário, mas real, na zona do ar das Caraíbas. Ocorreu-me o nome do herói: Gabriel Heliodoro Alvarado. Eu via mentalmente o sujeito: logo ele existia. E o país? (VERISSIMO, 1976, p. 60-61).

Um dos romances que mais teve dificuldade em escrever, foi o terceiro volume de “O tempo e o vento”, “O arquipélago”. Isso aconteceu no verão de 1958, numa praia do literal norte gaúcho.

Quando chegamos, chovia torrencialmente. Nossa casa ficou ilhada em meio de charcos e pequenas lagoas. A chuva continuou quase ininterruptamente durante três ou quatro dias. Assim, foi contra um fundo musical feito por um coral de sapos que escrevi as páginas iniciais do último volume da trilogia. Meti-me no corpo do Dr. Rodrigo Cambará no momento em que ele sofreu um edema pulmonar agudo (VERISSIMO, 1976, p. 10).

Ademais, Verissimo explica a separação entre criador e criatura, tomando a si próprio como exemplo.

Em geral, quando termino um livro encontro-me numa confusão de sentimentos, num misto de alegria, alívio e essa vaga tristeza que vem após o ato do amor físico satisfeita a carne. Relendo a obra mais tarde, quase sempre penso assim: “Não era bem isto que eu queria fazer” (VERISSIMO, 1976, p. 309, grifos do autor).

A sensação que me dá ao ler e imaginar essa lembrança é a de que somos sempre um ser em construção, inconcluso, que estamos sempre reinventado, ou seja, não ficamos satisfeito com aquilo que temos, apesar da sensação efêmera do gozo material, conforme diz Verissimo.

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