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Verissimo, no segundo volume de Solo, dedica quase duas centenas de páginas a sua primeira viagem às terras lusitanas. Percorreu de Norte a Sul do país. Essa viagem teve dois objetivos. Um de natureza profissional e outro de lazer. Era, para ele, um sonho antigo. Entre as atividades profissionais, ministrou conferencias, realizou tarde de autógrafos, foi homenageado em jantares. Já os passeios, esses foram os mais diversos. Não podia eu deixar de imaginar, estas lembranças narrativas e memoriais de Verissimo por essas terras, embora não seja possível contemplar a todas por ele escritas. Sabe-se que Portugal, em 1959, vivia sob o governo ditatorial de António de Oliveira Salazar e mesmo assim, Verissimo conseguiu cumprir o plano estabelecido pelo seu editor para os compromissos profissionais. Cabe lembrar que, apesar de não se engajar politicamente, nem se considerava de direita, nem de esquerda, mas era contra todas as formas de violência contra o Homem — em seu sentido ontológico — e defendia todos os tipos de liberdades humanas.

Narra, de maneira poética, a sua chegada à capital lisboeta:

Gaivotas que imagino lusitanas (ou será o mar a pátria de todas as gaivotas?) organizaram-se numa espécie de comitê de recepção e

acompanharam nosso barco, sobrevoando-o festivamente aos guinchos, desde o oceano até ao porto de Lisboa, ao longo do Tejo (VERISSIMO, 1976, p. 74-75).

Devido a seus bisavós paternos terem emigrado de Portugal para o Brasil, nas primeiras décadas do século XIX, Verissimo, ao chegar em solo lusitano, sente-se em casa.

[...] Mal ponho os pés em solo português, sinto-me filho desta terra. Pudera! Aqui estão minhas remotas raízes, daqui partiu a cento e cinquenta anos um de meus antepassados, para a aventura brasileira. Estou em casa (VERISSIMO, 1976, p. 75).

Depois de imaginar essa recepção, procuro ler as imagens que as lembranças memoriais de Verissimo me trazem, nas quais consigo relacionar a distância entre Porto Alegre e Lisboa,

De súbito a memória, às vezes uma grande galhofeira, me mandou à mente imagens de policiais de Lisboa tais como os mostravam caricaturalmente as revistas musicais que em idos tempos companhias teatrais portuguesas costumavam encenar no velho Coliseu, em Porto Alegre. (Mais tarde fiquei sabendo que existia uma delegacia de polícia permanentemente instalada no subsolo do teatro lisboeta.) (VERISSIMO, 1976, p. 92-93).

Em Lisboa, Verissimo diz que foi apresentado a António Alves Redol9, um

ficcionista politicamente coerente e bravamente político. Trata-se de um homem de esquerda num país de duro regime direitista, como o salazarismo, um tipo simpático e informal, escreve Verissimo:

Vejo-o com a lembrança, e a fotografia que tenho dele agora aqui à minha frente confirma a imagem que a memória guardou. Redol está

9 Escritor português (1911-1969). Obras principais: Avieiros (1942), Horizonte Cerrado (1949), Uma

Fenda na Muralha (1959), Cavalo Espantado (1960) e Barranco de Cegos (1962), considerada a sua obra prima. Escreveu as peças de teatro Maria Emília (1946), Forja (1948).

beirando os cinquenta anos, mas aparenta menos idade, apesar de todos os sofrimentos físicos impostos pelas muitas prisões e pelos implacáveis interrogatórios da P.I.D.E.10 (VERISSIMO, 1976, p. 86- 87).

Nesse trecho, Verissimo narra, além da imagem que guarda desse escritor português, um pouco do que significava a política ditatorial do regime salazarista.

Depois de Lisboa, Sintra foi a primeira cidade visitada por Verissimo, junto com Mafalda, Luís Fernando, seu editor em Portugal, Antônio de Souza Pinto e o engenheiro e professor Jorge de Sena.

[...] Sintra é um verdadeiro jardim botânico, espécie de mostruário da flora de Portugal. Aqui – afirma-se – existem mais de noventa espécies de plantas que não se encontram em nenhuma outra parte da Europa. (VERISSIMO, 1976, p. 102).

Leio, através das imagens, duas lembranças de Verissimo em Portugal, as quais considero relevante.

O céu estava azul e eu me sentia azul por dentro. É que a paisagem, os ares, o povo e as póvoas de Portugal possuem o condão de liberar em nós sentimentos de ternura lírica e bucólica que, por machismo ou temor à pieguice, em geral costumamos encerrar a sete chaves na mais recôndita alcova da casa de nosso ser (VERISSIMO, 1976, p. 105).

Para Bachelard (1978, p. 201), “as lembranças do mundo exterior nunca terão a mesma tonalidade das lembranças da casa. Evocando as lembranças da casa, acrescentamos valores de sonho; nunca somos verdadeiros historiadores, somos sempre um pouco poetas e nossa emoção traduz apenas, quem sabe, a poesia perdida”.

Outra lembrança de Verissimo leva-me a pensar o ser humano, o homem enquanto um ser inconcluso. Para Hilmann (1995), todo homem é um ser poético.

10 A Polícia Internacional e de Defesa do Estado foi a polícia política portuguesa entre 1945 e

Parece geralmente aceita entre psicólogos e filósofos a ideia de que o ser humano não é um produto acabado, mas um processo transitivo, um contínuo devir. Creio que o mesmo acontece, apenas em ritmo mais lento, com os monumentos de pedra: castelos, catedrais, palácios, pontes... Nascem sob o signo do estilo predominante na arte de construir de seu tempo, e vão sendo alterados com o passar dos séculos, de acordo com a moda arquitetônica da época em que cada reforma é feita (VERISSIMO, 1976, p. 110).

Nesse excerto, Verissimo alude que homem é um ser inconcluso, inacabado. Ou seja, está sempre a construir.

Em Setúbal, após ter ministrado uma conferência, Verissimo responde as diversas perguntas do público presente. Era final dos anos 1960 e Portugal vivia politicamente uma ditadura, sob o governo de Salazar. Apesar de sua palestra voltar-se mais para a cultura, para a literatura, esperava ele até questões de natureza política, sobretudo pelo contexto em que estava inserido. Porém, um dado curioso chamou-lhe atenção numa dada pergunta e ao mesmo tempo num relato de um senhor de meia idade que estava na plateia:

Acredita V. Ex.ª que um romance pode ter a força de mudar a vida da pessoa que o lê? Faço uma careta de ceticismo. “Minha tendência é responder pela negativa” — digo — “Pelo menos não conheço nenhum caso...” O homenzinho sorri. “Pois é com prazer que lhe conto a estória de meu próprio filho, que estava estudando engenharia na Universidade de Coimbra. Um dia leu o romance de V. Ex.ª, Olhai os lírios do campo, identificou-se de tal modo com a personagem principal masculina, o Dr. Eugênio Fontes, e passou a interessar-se de tal modo pela profissão médica, que decidiu deixar a engenharia para estudar medicina. Hoje em dia está formado, tem uma excelente clínica e sente-se perfeitamente realizado na sua profissão”. Que pode dizer este autor de estórias imaginárias senão que se rende diante desse fato da vida real? (VERISSIMO, 1976, p. 199, grifos do autor).

Para quem acredita na literatura, como eu, é fato; o que me faz também imaginar que é possível a arte de ficção, tal como esse exemplo, mudar vidas, no caso a leitura de um romance fez mudar a carreira acadêmica de um estudante.

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