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Articulando lembranças dos tempos de criança, Verissimo conta momentos de sua infância vividos e lembrados nos tempos em que escreveu essas memórias. No primeiro momento, rememora de que foi a vida de um mamífero, até a idade de dois anos. Mas chama a atenção para o caráter enganador da memória. No segundo momento, lembra-se de que foi a de um mamífero, até a idade de dois anos. Mas chama a atenção para o caráter enganador da memória:

Uma vez que outra, imagens e sensações de meus tempos de criança de colo sobem do fundo do oceano em que jazem, aparecem por um átimo à superfície, mas envolta em tanta névoa, que mal lhes consigo distinguir

os contornos. Lanço rápido a minha rede nessas águas turvas, com o propósito de apanhar alguns dos ariscos espécimes de minha flora e fauna submarinas (VERISSIMO, 1973, p. 59).

Segundo Hillman (1997, p. 14), “talvez toda nossa vida seja menos determinada pela infância do que pelo modo como aprendemos a imaginar nossa infância”. Nessa perspectiva, procurei articular as lembranças por meio de imagens. Estas, por sua vez, serão tratadas aqui não como “um quadro no sentido de um retrato fotográfico de uma pessoa. Ao invés disso, imagem é uma noção complexa de uma pessoa imaginada pela mente” que, por sua vez, tem base poética (HILLMAN, 2018, p. 69).

Assim, começo por articular literatura e filosofia da imagem. No primeiro volume de Solo de Clarineta, no capítulo inicial, Verissimo (1973, p. 50) diz que “que o relógio psicológico do tempo da infância anda mais devagar que os dos adultos” e aproveita o momento para lembrar de certos episódios e pessoas de seu mundo de criança, refletindo sobre estes diferentes tempos e sobre a memória:

Tenho a impressão de que minha vida entre os cinco e os dezoito anos ocupou um espaço de tempo muito mais longo do que dos vinte aos sessenta. Afinal de contas, a memória de um velho está cheia de labirintos, de falsos sinais de trânsito, de vácuos e, por assim dizer, de silêncios temporais e espaciais, isso para não falar em miragens (VERISSIMO, 1973, p. 50-51).

Tratando dessa infância rememorada, portanto, também imaginada, Bachelard (1988, p. 118) diz que “a infância permanece em nós como um princípio de vida profunda, de vida sempre relacionada à possibilidade de recomeçar”.

Outro momento de lembranças, de imaginação poética, provoca ressonância, quando relaciona tais imagens com a figura materna:

Vejo-me ou, melhor, sinto-me deitado num berço, num quarto em penumbra. Sentada numa cadeira a meu lado, minha mãe me aplica uma cataplasma de linhaça que me queima o peito, ao mesmo tempo que um odor acre me entra pelas narinas. Noutra ocasião as mãos maternas me esfregam as costas com um linimento de cheiro penetrante. Mas há outro

momento ainda mais nítido na minha memória. É noite, D. Bega me canta uma canção de ninar, e eu com o indicador e o polegar da mão direita seguro sua aliança, fazendo-a rolar dum lado para outro no dedo dela, como quem dá corda a um relógio. Fazia isso todas as noites para conseguir encontrar a porta do sono. Imagino que nesse tempo eu não teria mais de dois anos de idade (VERISSIMO, 1973, p. 59-60).

Bachelard (2000) diz que “as imagens poéticas atingem as profundezas antes de emocionar a superfície”, visto que primeiramente elas repercutem na alma e em seguida, ressoam na consciência, e que enquanto “as ressonâncias dispersam-se nos diferentes planos de nossa vida no mundo; a repercussão convida-nos a um aprofundamento da nossa existência” (p. 7).

Noutra passagem, Verissimo articula lembranças de contexto histórico do tempo em que nasceu com suas fobias:

Nasci a 17 de dezembro de 1905, sob o signo de sagitário. Andavam no ar ecos da guerra russo-japonesa, e os jornais comentavam ainda os horrores do massacre de São Petersburgo. Relutei em deixar a paz no ventre materno para entrar neste mundo, como numa paciência de seus horrores e absurdos. Fui arrancado a ferros e, resultado dessa violência, tenho uma pequena cicatriz ao lado de um dos olhos. Essa difícil “passagem do túnel” talvez explique a minha claustrofobia, a minha aversão aos ambientes confinados, às cavernas, às cabinas de trem ou vapor, em suma, a todos os lugares que me ameacem com a possibilidade de sufocação, estrangulamento... (VERISSIMO, 1973, p. 33).

Ler as memórias de Verissimo, através de suas lembranças, me leva a imaginá-las, num primeiro momento, nas profundezas de meu ser, e depois, na minha dimensão emocional. São as leituras que faço dessa poética memorial autobiográfica de Verissimo, por meio da imaginação criadora, que me provocam novas imagens, pois, conforme Bachelard (2000), as imagens criam novas imagens, através do devaneio poético de leitura.

Verissimo ainda evoca outros momentos de lembrança que remete à sua infância. No primeiro, discorre sobre uma fotografia quando tinha seis meses de idade e sua relação com o Verissimo adulto na época em que escreveu essas memórias.

Num de meus retratos mais antigos apareço como um bebê de seis meses, de cara lunar e morena, olhos escuros e graúdos, franja castanha sobre a testa arredondada, sorriso aberto e uma certa expressão que hoje, com uma alegria narcisista, tenho visto vagamente reproduzidas nas faces de muitos de meus netos. [...] Se conto estas coisas aparentemente sem importância é porque me parece que elas podem ajudar o leitor a compreender, através do menino que fui, o homem que hoje sou (VERISSIMO, 1973, p. 33-34).

No segundo momento, faz alusão a lembranças do Verissimo criança em uma das vezes que esteve enfermo:

Numa das lembranças mais remotas que guardo da minha infância, estou de pé em cima duma mesa, convalescendo da quase fatal enfermidade, magro e fraco, cercado de tias, e avisto o Dr. Catarino que se aproxima de mim em mangas de camisa, o casaco dobrado sobre um dos braços, um sorriso mal escondido sob os bigodões, um brilho de malícia nos olhos claros. “Gafanhoto!” — grita ele, rindo. Sim, minhas pernas e braços deviam estar tão finos que na certa eu parecia mesmo um inseto. Curioso: recordo também o sentimento de indignação que essa palavra me provocou (VERISSIMO, 1973, p. 35).

Num terceiro momento, relata fatos que são comuns na vida de uma criança de cinco anos de idade.

Outra lembrança longínqua que tenho é a do menino de cinco anos que da janela de sua casa, certa noite, ficou a espiar, intrigado, o cometa que luzia no céu por cima da Fábrica de Massa Alimentícias, de Rafaele Dell’Aglio, anunciando o fim do mundo. Puro boato (VERISSIMO, 1973, p. 35-36).

De fato, o que Verissimo observava era a imaginação do fim do mundo. Trata-se de uma memória-sonho.

Para Bachelard (2001), o devaneio poético não é um sonho sem sentido, mas sim o encontro de sentido para um sonho. Ou nas palavras do filósofo: “O devaneio poético

escrito, conduzido até dar a página literária, vai, ao contrário, ser para nós um devaneio transmissível, um devaneio inspirador, vale dizer, uma inspiração na medida dos nossos talentos de leitores” (p.7).

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