• Nenhum resultado encontrado

o caso do Conselho Municipal de Juiz de Fora

heLenA de mottA sALes e niLo LimA de AZeVedo

Em 1985, o Colégio Eleitoral elegeu um civil, Tancredo Neves, para assumir a presidência do Brasil, após 21 anos de regime militar autoritário, concretizando, enfim, a “política de abertura”. Essa delicada transição do país, cuja experiência relacionada com a democracia durante todo o século XX mostrou-se diminuta e esparsa, evidenciou as dificuldades e a necessidade de um longo processo para se estabelecer e consolidar a legislação e as instituições de uma cultura democrática.

Nesse contexto, foi formada a Constituinte de 1986, em um conturbado pro- cesso, no qual as forças conservadoras depreciavam e buscavam a anulação das conquistas sociais, e os setores de esquerda sentiam uma predominância dessas forças no texto constitucional. Mas, ao fim e ao cabo, logrou-se promulgar uma Constituição com caráter democrático em 1988, intitulada “Constituição Cidadã” por Ulysses Guimarães.

Dentre o conjunto de medidas constitucional-legais que contribuíram para a formação do Estado democrático brasileiro, algumas colaboraram de forma espe- cial para a formação de políticas públicas locais participativas, favorecendo o surgi- mento dos conselhos municipais, inclusive os de Proteção do Patrimônio Cultural.

Democracia, gestão participativa e patrimônio cultural

152

Essas medidas constitucionais foram: a forma federativa brasileira que pos- sibilita a autonomia administrativa e política do município como um importante fator para que a administração pública direta e indireta local seja constituída de forma independente de um Poder Central; a obrigatoriedade da criação de alguns conselhos para gerir fundos originários de repasse de verba federal, visando, por um lado, maior eficiência e, por outro, garantir o princípio da participação (esses conselhos foram os modelos para a implantação dessa forma de gestão em ou- tras temáticas); a competência da política urbana transmitida ao município pela Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e pelo Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001) fez com que a política de proteção do patrimônio cultural, além de uma política cultural, também se apresentasse como uma política urbana, portanto, necessariamente significante para a função social da cidade e da propriedade ur- bana, devendo ser gerida segundo uma gestão democrática e órgãos colegiados.

Os conselhos municipais modificaram a gramática política e a identificação de setores da sociedade civil com o governo. Antes excluídos da vida política institu- cionalizada, esses setores passam a reclamar cada vez mais a sua aparição no espaço público. Essa reivindicação vincula-se, na sua origem, ao novo associativismo, re- presentado por um novo padrão de ação coletiva e de ocupação do espaço público surgido no início da década de 1980, que privilegiou, com novas formas associativas, a pluralidade que se formava normativamente por meio de valores compartilhados, típicos dos movimentos sociais contemporâneos, como o de gênero ou de etnia.

Assim, em relação aos conselhos de políticas setoriais — vistos de uma pers- pectiva de “ideal tipo” weberiano — espera-se, entre outros, os seguintes impac- tos positivos:

a) a interação da sociedade organizada e do poder público forma um diag- nóstico dos problemas e das prioridades da população, que, num primeiro momento, parece ser mais real do que as demandas que são levantadas pe- las secretarias dentro dos gabinetes. Dessa forma, os conselhos podem mi- nimizar os efeitos políticos negativos apontados por Weber (1993), quando as lideranças são substituídas por burocratas, fazendo com que a popula- ção fique afastada das causas públicas;

b) as decisões do Poder Executivo podem ser fiscalizadas pelos conselhos, e isso se reflete em uma ampliação da visão da atuação do governo em

relação às necessidades locais, muitas vezes fazendo com que a prioridade dos próprios conselheiros modifique-se para uma perspectiva mais ampla, global, que leve em conta todo o desenvolvimento da cidade;

c) a consequência desse processo é a formação de uma relação mais cívica, a geração de uma confiança por parte dos atores envolvidos, que passam a buscar maneiras racionais e reflexivas como base para a resolução dos conflitos, formando, assim, uma cultura democrática, responsiva, capaz de minimizar os dilemas da ação coletiva tal como posto por Olson (1999); d) os ganhos são efetivados, porque as jogadas são reiteradas, ou seja, o con- tato do poder público com a sociedade organizada é sistemático e não pontual. A prática contínua pode direcionar as decisões, constituindo uma política com efeitos de curto, médio e longo prazo, possibilitando um aumento da confiança entre os conselheiros a cada deliberação, fazendo com que aumentem as informações disponíveis e seja aprimorada a ca- pacidade de avaliar os resultados das deliberações. Essa acumulação pode ser entendida como uma forma de capital social, segundo o conceito de Putnam (1996, 2000), pois a estabilidade gerada possibilita o rompimento com o cálculo de ação puramente individual e imediato. A participação e a confiabilidade nos demais atores faz com que a incerteza das deliberações do conselho seja menor do que o custo da deserção. O conselho, como um grupo intermediário, faz com que a participação, a representação e a orga- nização de todos os interesses e valores envolvidos no tema sejam pressu- postos do alcance de uma política pública consensual e efetiva;

e) a possibilidade de ampliação dos interesses já organizados para outros tangencialmente semelhantes pode diminuir os riscos externos da política pública em questão, além de não aumentar, como salienta Sartori (1994), os custos decisórios.

Tendo em vista esses impactos em relação à política de proteção do Patrimônio Cultural, é preciso salientar que eles harmonizam-se com a mudança que o concei- to de Patrimônio Cultural sofreu mundialmente: da ideia de monumento na Carta de Atenas (1933), para, na Declaração do México (1985), ser considerado como es- paços socialmente construídos, possibilitando, dependendo da política emprega- da, tanto uma sociabilidade inclusiva como também processos de exclusão.

Democracia, gestão participativa e patrimônio cultural

154

O Brasil também experimentou tal mudança de perspectiva: através do Decreto-Lei n.º 25, de 1937, quando os intelectuais do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) trabalhavam nas duas dimensões referen- tes a um conceito elitista de cultura, no qual o povo necessita de um intermediá- rio simbólico, um porta-voz cultural para decodificar o que de cultural existe no espaço em que vive (DURMAM, 1984; MENICONI, 2004).

A mudança democrática a partir da Constituição de 1988 modificou a dinâmi- ca das políticas urbanas, introduzindo uma participação mais ampliada dos seto- res organizados da sociedade e da população, inclusive na construção do conceito de “Patrimônio Cultural”. Como exemplos, podem-se citar: a introdução da no- ção de Patrimônio Imaterial, a decisão do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte, em 1994, de preservar onze conjuntos urbanos po- pulares considerados representativos da pluralidade do modo de ser da cidade, rompendo, desta forma, com a prática monumentalista; o tombamento do Parque do Povo em São Paulo, lugar protegido para a prática do futebol de várzea.

Isso significa dizer que essas instituições democráticas podem ser fatores de aperfeiçoamento do capital social, conceito elaborado por Putman (1996, p. 177), que “[...] diz respeito a características da organização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuam para aumentar a eficiência da sociedade, fa- cilitando as ações coordenadas”.

Em outros termos:

Enquanto o capital físico se refere a objetos físicos e o capital humano se refere a propriedades individuais, o capital social se refere a conexões entre indivíduos — a rede social e as normas de reciprocidade e confia- bilidade que delas surgem. Nesse sentido, capital social é relacionado de forma estreita ao que alguns chamaram “virtude cívica”. A diferença é que o “capital social” chama a atenção para o fato de que virtude cívica é muito mais poderosa quando inserida em uma rede densa de relações sociais recíprocas. Uma sociedade de muitos indivíduos virtuosos, mas isolados, não é necessariamente rica em capital social. (PUTNAM, 2000, p. 19, tradução nossa).1

1. Whereas physical capital refers to physical objects and human capital refers to properties of individuals, social

capital refers to connections among individuals – social network and the norms of reciprocity and trustworthiness that arise from them. In that sense social capital is closely related to what some have called “civic virtue”. The difference is that “social capital” calls attention to the fact that civic virtue is most powerful when embedded in a

É importante frisar que essa atmosfera cívica não é uma ideia transcendente, mas parte do pressuposto de que a cooperação, por exemplo, “[...] torna-se mais fácil quando os jogadores participam de jogos que se repetem indefinidamente, de modo que o desertor é punido nas sucessivas rodadas” (PUTNAM, 1996, p. 176).2

Como o capital social é passível de acumulação, as jogadas reiteradas, onde a confiança é retribuída (regra da reciprocidade) e as deserções são, de fato, pu- nidas, fortalecem a confiança social e a participação cívica. A variável resultante desse processo é a diminuição dos custos de transação, tanto na esfera pessoal como na esfera dos negócios, isto é, o gasto de energia para as transações cotidia- nas diminui consideravelmente.

Uma sociedade que se assenta na reciprocidade generalizada é mais efi- ciente do que uma sociedade desconfiada, pela mesma razão que o di- nheiro é mais eficiente que a troca. Honestidade e confiança lubrificam as inevitáveis fricções da vida social. (PUTNAM, 2000, p. 135, tradução nossa).3

Esse novo desafio da democracia em relação a sua substancialidade, a sua qualidade e não apenas a seu aspecto formal, gera uma agenda na qual o Estado Constitucional de Direito passa a tratar das relações entre as esferas cívica e ci- vil, de uma forma inédita para as concepções, por exemplo, do Estado de Direito Liberal.

A cidadania como direito (MARSHALL, 1967), a ideia de uma solidariedade inclusiva, originária da pujança da cultura cívica da sociedade, é hoje um dos de- safios democráticos. É uma grande tarefa, uma grande reconstrução, porém pos- sível e plural, como demonstram Santos e Avritzer (2002), segundo a trajetória e experiências específicas de cada país, e, por que não dizer, de cada comunidade.

A trajetória rumo a uma sociabilidade inclusiva e uma cidadania de direitos remete a observação mais detida dos conselhos municipais, tendo o Estado o pa- pel de regulador necessário à adequação entre democracia e desenvolvimento.

dense network of reciprocal social relations. A society of many virtuous but isolated individuals is no necessarily rich in social capital.

2. Aqui, putnam (1996) utiliza-se da “Teoria dos jogos” que busca analisar as interações estratégicas e toma- das de decisões multilaterais de agentes racionais, que levam a um equilíbrio cooperativo ou não de um dado modelo. Para mais detalhes, cf. Myerson (1991).

3. A society that relies on generalized reciprocity is more efficient than a distrustful society, for the same reason that

Democracia, gestão participativa e patrimônio cultural

156

CoNSElHoS MuNICIPAIS

Os conselhos municipais congregam elementos da autonomia, da descentraliza- ção administrativa e da competência em inserir a participação popular na gestão das políticas públicas, com o objetivo de uma maior eficácia em sua implemen- tação (CUNHA, 1997). No panorama da redemocratização brasileira, os conselhos fazem parte do processo relativo

[...] ao aperfeiçoamento e ao aprofundamento das instituições demo- cráticas, com vistas a permitir sua operação nos interstícios eleitorais, acoplando aos mecanismos clássicos da representação e formas insti- tucionalizadas de participação política, que permitam a ampliação do direito de vocalização das preferências dos cidadãos e o controle público do exercício do poder. (AZEVEDO; ANASTASIA, 2000, p. 3).

Dentre as características observadas nos conselhos e que são importantes para o atendimento das expectativas sobre tais órgãos, pode-se citar “[...] a sua função deliberativa ou consultiva, sua composição interna e seu grau de flexibilidade para incorporar novas representações coletivas” (CUNHA, 1997, p. 96). Estas sugerem maiores ou menores chances de êxito para a resposta ao desafio da democracia. Sob essa perspectiva, a participação e a representação são as variáveis em torno das quais as demais questões gravitam.