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Instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade em prol da preservação do

patrimônio ambiental urbano

ALine gUedes Pinheiro

De acordo com dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2000), mais de 80% da população brasileira vive nas cidades e isso se reflete consideravelmente na qualidade do ambiente urbano que vem sendo devastado por práticas que não condizem com a contemporânea busca de preservação do Patrimônio Ambiental. Este, muitas vezes, é associado apenas aos recursos natu- rais, à natureza não apropriada pelo trabalho do homem, esquecendo-se que não se pode falar em qualidade de vida sem a preservação do ambiente antrópico das cidades (MARCHESAN, 2007). O texto de Geraldes (2002, p. 3) amplia esta noção:

[...] estreitamente ligado ao conceito de meio ambiente, a noção de patrimônio ambiental assume significados bastante diversos, que vão desde a “Amazônia intocada” [...] à plantação de arbustos nas calçadas e canteiros das avenidas de tráfego intenso: retratos cotidianos da mo- dalidade de consciência ecológica vigente, devidamente sacramentada pela mídia.

De acordo com Cullen (2006, p. 10) “[...] uma cidade é antes de qualquer coi- sa uma ocorrência emocionante do meio ambiente”. Sendo assim, o patrimônio

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ambiental das cidades, para o autor citado, é dinâmico e formado por elementos que, submetidos aos processos de construção cultural, materializam as relações sociais, distinguindo-se do comum por um processo constante de atribuição de valores, o denominado patrimônio ambiental urbano. Este, do ponto de vista conceitual, está ligado diretamente às mudanças ocorridas na esfera de práticas preservacionistas que passam, a partir da década de 1970, a caminhar juntas com as ações de ordenamento territorial, estando presentes em legislações urbanísti- cas de cidades como São Paulo, Olinda e Recife.

A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) reflete a nova articulação das práticas preservacionistas com as de controle urbano e o direito urbanístico. Sob este aspecto, ela é considerada um marco, visto que, além de eliminar os res- quícios do autoritarismo do governo militar, estende o conceito de patrimônio contido no Decreto-Lei n.º 25/37 (BRASIL, 1937) e introduz na legislação brasi- leira um conceito de proteção cultural muito próximo ao encontrado nas Cartas de Proteção internacionais (ARAÚJO et al., 2002). Apesar de não tratar especifi- camente do conceito de patrimônio ambiental urbano, a Carta Magna (BRASIL, 1988) enfatiza a responsabilidade das municipalidades em preservar o seu patri- mônio, pois é na esfera municipal que se pode trabalhar mais facilmente com a compreensão da importância da preservação no cotidiano da sociedade.

É neste quadro de valorização da municipalização na atuação da preservação do patrimônio ambiental urbano que é aprovado o Estatuto da Cidade, Lei Federal n.o 10.257 (BRASIL 2001), que regulamenta os capítulos da política urbana da Constituição de 1988 e traz um leque de instrumentos urbanísticos que “[...] po- dem ser extremamente importantes em auxílio à gestão do patrimônio protegido dentro de uma perspectiva urbanística” (BRITO, 2003, p. 1). De acordo com Féres (2002), os instrumentos do Estatuto da Cidade representam um avanço significa- tivo no campo da preservação do patrimônio das cidades contemporâneas, mas, para sua efetivação, é preciso romper com dispositivos limitantes ainda vigentes que não permitem uma compreensão e uma ação realista sobre “o tecido urbano vivo” das cidades, que se modifica continuamente.

Deste modo, instrumentos de preservação, como o consagrado tombamento, quando utilizados isoladamente, tornaram-se ineficientes frente às ameaças espe- culativas, pois representam uma forma de “[...] congelar para salvaguardar as con- dições físicas dos imóveis selecionados, visando antes impedir transformações que

viabilizar condições de fato para sua recuperação, manutenção e uso” (FRÓES, 2006, p. 1). Segundo esta autora, o instrumento do tombamento contribui para o acirramento do antagonismo entre preservação e desenvolvimento urbano, que se torna pejorativo e indesejável à preservação, porque a ameaça.

O Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001) e seus instrumentos mostram também que se deve buscar promover maior articulação entre os diferentes atores envol- vidos na construção e manutenção do espaço urbano, consolidando novas formas de compreender e atender às necessidades da complexa gestão urbana-ambiental (FERNANDES; RUGANI, 2001). Além disso, deve levar a uma cidade onde todos são aliados em prol do cumprimento da sua função social e da propriedade, asse- gurando o direito a cidades sustentáveis:1

A aplicação do Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001), portanto, é per- tinente por propiciar a construção de um outro modelo de planejamento e gestão, podendo permitir que a preservação seja, de fato, tratada como uma forma de desenvolvimento e não o que tradicionalmente tem ocor- rido com a falsa visão, e porque não dizer, falso dilema entre preservação e desenvolvimento, como se fossem coisas antagônicas. Ele possui, des- ta forma, no seu bojo, uma intenção educativa de mudança de mentali- dade sobre que tipo de desenvolvimento a sociedade pode alcançar e de que modo ele pode ser alcançado. (BRITO, 2003, p. 1).

Entretanto, a despeito de, atualmente, os instrumentos do Estatuto da Cidade estarem previstos em diversos planos diretores municipais, muitas vezes as pre- feituras não têm o conhecimento empírico necessário para concretizar uma apli- cação satisfatória.

Diante do exposto, neste trabalho, apresentam-se os resultados de uma pes- quisa que teve como objetivo identificar como vêm se dando, na prática, a aplica- ção e a operacionalização dos instrumentos do Estatuto da Cidade voltados para a preservação do patrimônio ambiental urbano. Para a realização do estudo de caso, tomou-se a cidade de Belo Horizonte, onde se vêm efetivando alguns instrumen- tos urbanísticos presentes nesse Estatuto desde a década de 1990.

1. O Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001) trata do desenvolvimento das funções sociais da cidade e da proprie- dade urbana, no capítulo 1, Diretrizes gerais, artigo 2º.

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PRESERvAção Do PAtRIMÔNIo AMBIENtAl uRBANo: Evolução DE uM CoNCEIto

A palavra patrimônio apresenta uma longa trajetória, sendo “[...] na origem, liga- da às estruturas familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, en- raizada no espaço e no tempo” (CHOAY, 2001, p. 11), associada à noção do sagrado ou à noção de herança, de memória do indivíduo, de bens de família. Até hoje este termo mostra as marcas de sua origem, mas é caracterizado por uma evolução de sua ampliação e deslocamento da esfera privada para a pública, da escala do edifício isolado para o conjunto urbano e, ainda, do valor de troca para o de uso.

Essa ampliação do conceito de patrimônio, juntamente com o aumento dos problemas da degradação do ambiente natural e construído das cidades, trouxe novas perspectivas, inserindo a preocupação com a preservação do patrimônio ambiental urbano (CRICHYNO, 2001). Nas últimas duas décadas, a expressão “pa- trimônio ambiental urbano” começou a tornar-se corrente nas propostas preser- vacionistas de várias tendências, embora seu significado nem sempre seja bem compreendido (CRICHYNO, 2001; LEMOS, 1981).

O Patrimônio Ambiental Urbano é definido por Yázigi (2001) como um sistema formado essencialmente de “coisas físicas” — conjuntos arquitetônicos, espaços e equipamentos públicos, elementos naturais e paisagísticos — aos quais foram atribuídos valores — sociais, culturais, históricos, econômicos, técnicos, afetivos e estéticos. Crichyno (2001, p. 1) refere-se ao patrimônio ambiental urbano como, antes de tudo, “[...] um fato social, produto de uma sociedade específica, e que é só pela prática social que ele poderá ser apreendido”. Citando Menezes, ele con- ceitua esse patrimônio como “[...] um sistema de objetos, socialmente apropria- dos e percebidos, capazes de alimentar representações de um ambiente urbano” (CRICHYNO, 2001, p. 1). Concorda-se com Geraldes (2002, p. 1) que o conceito de patrimônio ambiental urbano surge para estabelecer uma convergência das diversas “[...] subcategorias correspondentes às diferentes áreas de conhecimen- to científico”. Deste modo, ambiciona-se romper com o conceito de patrimônio como um conjunto de elementos pontuais (patrimônio cultural, patrimônio na- tural, patrimônio paisagístico, arqueológico e assim por diante) que funcionam isoladamente e são materializados principalmente nos chamados monumentos e, assim, começar a pensar o ambiente urbano em sua totalidade, entendendo-o

como a forma de materialização das relações sociais e parte de todo o conjunto formador da herança coletiva da sociedade.

Para autores como Féres (2002), a expressão patrimônio ambiental urbano é uma atribuição contemporânea do patrimônio cultural das cidades. Assim, o tão conhecido termo patrimônio cultural não deixa de ser atual e correspondente aos conceitos de patrimônio ambiental urbano apresentados aqui, pois, em ambos os casos, fala-se, de maneira direta ou indireta, da memória social de uma cidade e de seu de povo, da cristalização de suas especificidades culturais e, principalmen- te, da sua herança coletiva, que deve ser transmitida às futuras gerações, de forma a tornar possível relacionar o presente e o passado, permitindo a visão do futuro dentro do desenvolvimento sustentável.