• Nenhum resultado encontrado

Relação dos Grupos de Interesses dentro do Comppac

A percepção sobre a presença de um equilíbrio de forças entre a prefeitura e os demais setores varia entre os grupos. Enquanto todos os membros do Executivo Municipal entrevistados afirmaram haver equilíbrio, na ala dos “Outros”, a maio- ria (71,4%) dos membros não compartilham desse posicionamento. Isto demons- tra que o setor “Outros” nutre o sentimento de dificuldade de participação, de defesa de seus interesses e de formação de consenso com a prefeitura. Experiências nas quais as deliberações não são atendidas acabam por enfraquecer a confiança dos membros na correlação de forças entre a prefeitura e os demais setores, pois,

Democracia, gestão participativa e patrimônio cultural

168

quando o governo local atua de forma a defender determinado interesse que lhe serve de apoio político, demonstra que as ações instrumentais terminam supe- rando os arranjos participativos.

Em uma questão formulada aos conselheiros sobre a existência de grupos de interesses dentro do conselho, 83,3% responderam afirmativamente. Ao serem indagados sobre quais eram esses grupos, as respostas mais frequentes foram: a prefeitura, os representantes dos setores do mercado imobiliário e os favoráveis à preservação do Patrimônio Cultural.

O funcionamento do conselho passa, portanto, pela convivência entre esses três grupos, que apresentam divergências. Basta observar que os conselheiros acreditam que o número de deliberações é médio ou alto, tendo 69,2% afirmado que houve divergências em muitas ou em todas as votações. Contudo, neste mo- mento, o foco de análise será dirigido para o significado da interação entre o grupo representante do setor imobiliário e aqueles favoráveis à proteção do patrimônio cultural — os preservacionistas.

O entendimento de como um grupo interpreta o outro é de grande valia. Há dois argumentos utilizados com frequência pelos preservacionistas: os seto- res do capital imobiliário não deveriam participar do Conselho de Proteção do Patrimônio, pois, uma vez que este tem a função de proteção, não se justifica a presença de setores nitidamente não favoráveis à preservação. O segundo argu- mento é que os setores do mercado imobiliário não seriam prejudicados pela polí- tica de preservação, uma vez que as medidas tomadas não são realizadas de forma subjetiva, mas segundo parâmetros técnicos e por procedimentos legais que evi- tam uma ação pessoal. Para os preservacionistas, o setor do mercado imobiliário não possui uma relação íntima com a cultura.

Entende-se que a opinião dos preservacionistas sobre o desejo da não parti- cipação de atores do peso dos representantes do mercado imobiliário no conse- lho demonstra certa ingenuidade e dificuldade de entender as potencialidades e os limites desse instrumento de participação ampliada. Obviamente, na prática, a não participação do setor imobiliário, longe de ajudar, prejudicaria fortemente a consolidação de uma política municipal para o setor, na medida em que esvazia- ria fortemente essa “organização híbrida” — para usar uma expressão cunhada por Avritzer (2006) — composta por representantes do governo e da sociedade civil organizada. Fora de uma participação institucionalizada, o mercado imobiliário

seria levado a buscar outras formas de pressão pelos seus interesses junto ao poder público (Executivo e Câmara de Vereadores), utilizando meios informais, possi- velmente, muito mais danosos ao futuro do Patrimônio Cultural.

Outro ponto a ser desconstruído é a suposição de que as questões relacio- nadas ao Patrimônio Cultural são puramente técnicas, quando na realidade es- tão também em jogo valores na forma de ser e ver o mundo, que podem gerar posições conflituosas. Um espaço institucionalizado de resolução do conflito, no qual preponderem as soluções consensuais, amplia consideravelmente o caráter cívico das relações presentes. Já os setores do mercado imobiliário consideram os preservacionistas pouco pragmáticos. Para eles, os preservacionistas estão dis- tantes do mundo real, do emprego, do desenvolvimento e do trabalho. A ideia de proteção de imóveis antigos pode até fazer sentido, desde que a magnitude desse imóvel seja inquestionável.

É verdade que, atualmente, a noção de propriedade está entrelaçada com sua função social. No entanto, quem determina o que é a função social? Para os pre- servacionistas, determinado imóvel cumpre a sua função social quando representa valores culturais da cidade. Para o setor imobiliário, a função social da proprieda- de é realizada através da produção de empregos, da destinação produtiva de um imóvel que se encontra congelado pelo tombamento. O ponto capital é que esta contenda revela a possibilidade da resolução do conflito coletivo que ocorre entre os dois aspectos da cidadania vinculados a direitos: o cívico e o civil. A dimensão cívica remete aos deveres que integram os indivíduos aos ideais da coletividade, à busca da virtude da convivência social. A dimensão civil associa-se às liberdades e direitos individuais frente ao poder de império7 do Estado.

Existe a supremacia do interesse público sobre o interesse individual, mas essa predominância não se pode tornar abusiva. O que pode ser visto como um compor- tamento instrumental do setor do mercado imobiliário em busca do lucro também pode ser observado como uma resistência para a afirmação necessária dos direitos e das liberdades individuais, pois, sem essa resistência, qual seria o limite do Estado?

Os preservacionistas, por sua vez, ao direcionarem o seu olhar para a diver- sidade social, encontram, na política de proteção do patrimônio, vista sob sua dimensão cívica, a possibilidade de criar referências para a população, garantir o direito à memória e construir uma cidade melhor, com mais alteridade. Eis o

Democracia, gestão participativa e patrimônio cultural

170

grande desafio da democracia: conjugar e equilibrar essas duas dimensões que, na política de patrimônio, se apresentam de forma clara. Desse ponto de vista, a atuação dos membros do Comppac é empobrecida se observada como simples negociação de estratégias, o que de fato também ocorre.

A observação das reuniões do Comppac evidencia que as divergências de va- lores são claras, contudo a prática reiterada das reuniões e deliberações fez com que conselho criasse consensos acerca de algumas políticas que surtiram bons re- sultados. A negociação realizada pelo conselho, mediante a possibilidade de isen- ção do IPTU para os bens tombados, é um bom exemplo.