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Depois de muitos anos sem poder realizar certames, o Ministério da Saúde aco- modou sua gestão de pessoal em duas soluções. A primeira era a terceirização generalizada, atualmente visualizada como um problema pelo Ministério Públi- co do Trabalho. A segunda era a contratação de pessoal temporário, por meio de seleções públicas simplificadas. Cabe ressaltar que a área de saúde possui uma intricada e complexa gama de atividades que se imbricam e, muitas vezes, demandam pessoal temporário. Basta pensar em projetos de pesquisa e na vigilância sanitária. Ou, ainda, no caso de controles de epidemias. Há atividades que, por sua própria natureza, na área de saúde, demandam pessoal temporá- rio. Como lidar com as necessidades intrínsecas de flexibilidade em meio a um sistema de seleção e recrutamento que possui rigidez? A primeira e a maior reclamação — que é generalizada — acaba sendo catalisada ao redor do órgão que funciona como coordenador, que é o MP. Ele acaba sendo o estuário de todas as dificuldades envolvidas nos diversos setores da administração pública federal, em razão do seu papel de coordenador das políticas públicas de gestão de pessoal:

Os órgãos não têm governabilidade para fazer concurso. Não têm autonomia. A gente depende do Ministério do Plane- jamento para tudo. Ele tem que autorizar. Ele tem que dizer se pode ou não pode. (MS)

A rigidez não envolve somente a questão dos servidores temporários e do pessoal terceirizado. Ela envolve também a rigidez da estrutura legal das carreiras, em especial pela ausência de flexibilidade para definição de perfis de cargos, subdivididos em dois temas: a formação exigida e o rol fixo de atri- buições do cargo (função). É didático visualizar o descompasso da formação exigida para o cargo em carreiras que estão muito defasadas temporalmente e, assim, possuem uma extremada rigidez:

O caso do sanitarista, por exemplo. Quando o Ministério teve autorização para fazer concurso aos cargos de sanitarista, foi se fui buscar na lei para pôr as informações no edital. Temos que

colocar no edital exatamente o que está na lei. Foi quando eu descobri que esse cargo tem um requisito de ingresso que é um curso de formação de 360 horas. É praticamente uma especia- lização. A gente descobriu a origem disto na história. Na época não existia um curso reconhecido de sanitarista. Então, a pessoa ingressava na formação da área da saúde. Enfim, enfermeiro que fosse. Quando ele ingressava, obrigatoriamente, tinha que ter um curso de 360 horas para efetivamente virar um sanitarista. Por isso que isso era um requisito na época. Atualmente, existe curso de graduação em saúde coletiva, ou seja, de sanitarista. Hoje eu poderia pedir isto no edital: graduação. Então, eu não precisaria pedir mais o requisito dos anos 70 e fazer um curso de 360 horas. Não valia a relação custo-benefício (...). Então a gente não fez o concurso de sanitarista. Esse é um exemplo. Houve outro de téc- nico em que o requisito da época não condiz com o que é hoje. Então, houve que se mudar o edital; sofri ação civil. Houve ação judicial por conta do que estava no edital e do que estava na lei. Só que hoje o que está na lei de 1970 não condiz com a realidade em termos de formação. As pessoas entraram na justiça e ganha- ram. Então essa questão do requisito do cargo é problemática. Então essa é uma questão que dificulta esse recrutamento que é o perfil dos cargos: quando eu não tenho o perfil dos cargos adequados. O engenheiro, por exemplo, atualmente tem dezenas de ramificações e especialidades. O Ministério sofre ação judicial porque o meu cargo de engenheiro — de outra época — era um cargo geral para tudo. Você na lei, e o engenheiro fazia mecânica, elétrica, tudo o que você puder imaginar. A engenharia específica que a gente precisa dentro dos hospitais não existia em 1970: a engenharia hospitalar. Então, o Ministério precisa de engenheiro hospitalar, e eu não pude fazer a prova porque quando eu leio o requisito legal do cargo é da década de 1970. Se fizer o concurso público pedindo a formação de engenheiro hospitalar como re- quisito, haverá ação judicial pelo edital divergir da lei. (MS) O mesmo problema pode ser visto pelo prisma das atribuições dos cargos, ou seja, as funções definidas na lei e que seriam inerentes ao trabalho cotidiano a ser desempenhado pelo servidor.

Ele não traz o perfil que a gente precisa. Para começo de conversa, eu não consigo recrutar as pessoas que eu preciso no

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quadro. Um dos problemas é por conta de cargos com atribui- ções que foram desenhadas em 1970. (...) Todo cargo de serviço público tem uma lei que diz assim: o analista de planejamento e orçamento tem as seguintes atribuições dele; deve fazer isto e isto. Quando fazemos o edital, temos que pôr o que tá na lei. (...) Não se pode inventar. Então, quando se põe o que está na lei — que é de 1970 — isto não funciona hoje. Então, eu sofro al- guns problemas que me impedem de recrutar determinados per- fis. Volto ao exemplo da engenharia hospitalar. Como disse, não conseguimos fazer o concurso para engenheiro hospitalar porque não há tal requisito para o cargo, nem atribuições específicas. Eu não posso inventar. De pronto, eu precisei terceirizar este servi- ço. Quando o problema foi para a AGU, os advogados disseram que não era possível terceirizar porque disseram que o Ministério tem o cargo de engenheiro no quadro. De fato, existe o cargo de engenheiro no quadro; mas ele não prevê engenharia hospitalar e, por isto, eu não posso fazer concurso para esta especialidade, que é tão necessária. Por um lado, não posso fazer o concurso. Por outro, não posso terceirizar porque a AGU não deixa. Acaba que ficamos sem este serviço nos hospitais. (...) As atribuições dos cargos estão muito defasadas. O agente administrativo, que é um cargo nível médio, é um exemplo clássico: se você entra na lei... O servidor tinha que fazer tanta coisa! Deve ter umas dez páginas de atribuições. Uma coisa absurda. Ninguém faz aquilo hoje. Eu tenho datilógrafo. Eu vou contratar datilógrafo? Eu te- nho digitador na carreira. Em torno de 70% dos cargos que eu tenho na carreira não servem para fazer concurso. Há guarda de endemias, vaqueiro, piloto de lancha. Tudo o que você imaginar. Afinal, em 70 tudo isto era serviço público. (...) Então, eu tenho assim 30.000 cargos vagos, desses 30.000 em torno de 20.000 são cargos que eu não posso usar. Mas eles estão lá na nossa carreira. (MS)

A rigidez se espraia para o risco na montagem de certames com perfis genéricos, que poderiam ser encontrados em quaisquer ministérios ou órgãos públicos. Estes certames, atratores de candidatos “concurseiros”, entendidos como aqueles que buscam qualquer cargo público como uma etapa de um percurso profissional, não servem para atrair os quadros qualificados para a atuação em políticas públicas setoriais, como indicado na entrevista. Por dois motivos. O primeiro seria a baixa remuneração:

A nossa carreira não tem desenvolvimento. É sempre naque- le cargo. Você morre naquele cargo. O que eles chamam de de- senvolvimento, que é a promoção, é uma progressão automática. Ela não está vinculada a nenhuma avaliação ou a alguma análise de produção. Não está vinculada a nada. Automaticamente, tra- balhando bem ou mal, o servidor vai subir um nível. Esse nível é só uma melhora financeira. Não está atrelado a nada, em termos de desenvolvimento. Capacitou? Não capacitou? Melhorou? Pro- duziu mais? Cresceu? Não tem nada disto atrelado. É automático! O servidor ganha 5% em cima do vencimento básico; é uma mer- reca. E o grande problema da nossa carreira é o salário. Nossa carreira é reconhecidamente a pior da Esplanada dos Ministérios. Um médico hoje entra no Ministério da Saúde ganhando cerca de R$ 3.400,00 brutos. (MS)

O segundo motivo é que o “carreirão” trata de cargos nos quais não há flexibilidade para desenhar perfis de vagas, com a exigência de conteúdos pro- gramáticos e de habilidades a serem aferidas:

Quando eu tenho cargos deste carreirão antigo — que você tinha um cargo para cada coisinha que era feita: um para vigi- lante, um para digitador, um para copeira, um para agente ad- ministrativo, um para técnico de contabilidade, um para isso, um para aquilo — fica amarrado. Não se consegue desenhar um per- fil adequado. Então, eu recebo um perfil de aprovado que não é bem o que preciso. O próprio concurso público é muito amarrado. Ele não me deixa abrir esses perfis. A lógica de concurso público hoje não permite que eu faça escolhas. Eu não quero concurseiro aqui. Os concursos que a gente fez a gente conseguiu negociar com a banca que a gente queria questões situacionais. A gente não queria aquelas questões estritamente teóricas, de decoreba e tal. (...) Então, não é como o Ministério do Planejamento um dia pensou: “eu vou colocar no Ministério da Saúde um médico e um enfermeiro”. Não é! Para a área finalística, eu preciso de um médi- co com determinada formação. De preferência, com algum título que remeta o perfil dele para aquela determinada política públi- ca. E eu não consigo fazer isso com concurseiro. Os concurseiros vêm somente com teoria. Eu não posso, de repente, entregar uma política pública na mão de um menino que acabou de se formar e

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que não tem experiência nenhuma. Então, para a minha área fina- lística, eu não posso usar o meu carreirão. Eu teria que desenhar um perfil. (MS)

É claro que este problema não aparece quando se focaliza nos cargos vinculados às atividades-meio. Elas podem atrair concurseiros, e isto nem é visualizado como problema:

Quando eu estou fazendo um concurso público destes para agente administrativo, para contador ou para economista, não vai se ter problema. Mas quando é um concurso público para a área finalística — que é área que eu tenho que ter especialistas em vigilância epidemiológica, em assistência farmacêutica, saúde do homem, saúde da mulher, saúde do adolescente, ou seja, todos os programas finalísticos do Ministério — é necessário pessoal que tenha experiência. Afinal, é gente que vem aqui para ajudar a for- mular política pública, entendeu? (MS)

Após localizar as percepções dos servidores do Ministério da Saúde, cabe analisar o mesmo tema pela ótica dos servidores do Instituto Nacional do Se- guro Social.