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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO

2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

4.2 Caso-paradigma de aproveitamento de biogás

Como mencionado, a ETE Marselisborg, na cidade dinamarquesa de Aarhus17, é autossuficiente em energia elétrica e inclusive gera excedente, utilizado no tratamento de água do município, situação que tem atraído a curiosidade de pesquisadores no mundo (KARÁTH, 2016; STATE OF GREEN, 2018), vindos de lugares como Sérvia, China e África do Sul, em busca de compreender como a Aarhus Vand A/S (Aarhus Water S/A), uma empresa pública municipal de tratamento, transformou o esgoto numa valiosa fonte de energia (MIS, 2017). A Figura 2 ilustra a planta da ETE Marselisborg.

Figura 2: Vista aérea da ETE de Aarhus.

Fonte: arte própria com dados coletados na pesquisa, sobre imagem de Google (2019).

17 Todos os dados não citados no item 4.2 foram fornecidos pela Aarhus Vand A/S, via e-mail,

Esse projeto trouxe novas perspectivas sobre a finalidade de uma ETE, transformando o conceito de uma unidade consumidora de energia para uma unidade produtora, ou, como a própria empresa afirma, de estação de tratamento de esgoto para biorrefinaria. Em virtude desse novo mindset, que se coaduna com um dos objetivos da presente pesquisa, passa-se a detalhar o funcionamento da ETE Marselisborg, tomando-a como paradigma para benchmarking com os resultados obtidos em instalações brasileiras. Os dados foram gentilmente cedidos pela empresa, em resposta à presente pesquisa.

A ETE em análise foi projetada para as vazões médias diárias de 26.498m3 e 121.134m3 nos períodos seco e chuvoso, respectivamente, e suas capacidade e média de utilização, no ano de 2016, são transcritas na Tabela 12.

Tabela 12: Capacidade operacional projetada da ETE Marselisborg e utilização

média no ano de 2016.

Capacidades projetadas Média de utilização em 2016 % utilizado

Pessoas-equivalentes18 200.000 194.269 97

Vazão (m3/dia) 25.800 30.503 118

DBO (kg/dia) 12.000 11.656 97

N total (kg/dia) 1.550 1.828 118

P total (kg/dia) 428 264 62

Fonte: elaboração própria com dados colhidos na pesquisa.

O esgoto recebido passa por pré-tratamento, tratamento primário, secundário e terciário, e os efluentes da planta são lançados na baía de Aarhus, entre o Mar do Norte e o Oceano Báltico. O diagrama esquemático da planta é ilustrado pela Figura

3.

Figura 3: Diagrama esquemático dos sistemas da ETE Marselisborg.

Fonte: traduzido pelo autor de dados coletados na pesquisa.

As receitas da empresa provêm das cobranças das taxas de água e esgoto (76%), de impostos recebidos (11%) e de taxa de conexão e demais receitas (13%). O orçamento é rateado entre as despesas na seguinte proporção: investimento em bens de capital (62%), custos operacionais (36%) e custos financeiros (2%).

O preço do metro cúbico de água em Aarhus é de DKK 46,41 (coroas dinamarquesas), o equivalente a R$ 27,08 (cotação de 08/04/2019), e é composto por: DKK 8,14 (R$ 4,75) de produção de água, DKK 22,62 (R$ 13,20) para tratamento de esgoto, DKK 6,37 (R$ 3,72) de taxa governamental e DKK 9,28 (R$ 5,41) a título de imposto sobre valor agregado.

Ao detalhar a transformação havida em seu modelo de negócio, a empresa dividiu em três os passos que foram seguidos:

1) Otimização do processo: consistente na remoção biológica de N e P, no controle de clarificação (aumento da capacidade hidráulica durante período chuvoso) e no monitoramento das operações por meio da adoção de software, sensores e medidores de vazão.

2) Otimização dos equipamentos: foram substituídos turbo soprador, centrífuga e conjuntos geradores a biogás.

3) Adoção de novos processos: passou-se a realizar nitrificação e desnitrificação simultâneas, desamonificação lateral e derivação de nitrito. A otimização dos processos buscou melhorar a eficiência e a capacidade da ETE, simultaneamente à redução dos valores dos efluentes, visando a maior economia possível de investimentos. Os processos foram otimizados por meio do aumento do controle e estabilidade dos sistemas, por meio de alto grau de automação e redução de uso de recursos. Os sistemas operam automaticamente e há funcionários apenas no horário comercial de expediente. Foram automatizados a alternância de fases (com medidores de amônio e fosfato), o funcionamento do soprador (de acordo com a carga de amônio), o tempo de retenção (ao mínimo necessário a sustentar a nitrificação) e o controle de clarificação (conforme taxa de retorno de lodo e distribuição entre os clarificadores). Essa otimização consumiu € 270.000,00, durou dois anos, teve payback aproximado de um ano e economizou em torno de 700.000kWh anuais de energia.

Já a otimização dos equipamentos teve os seguintes detalhes:

a) Substituição de 2 conjuntos geradores de 250kW cada, com eficiência de 38 a 39%, eficiência térmica entre 50 e 55% e eficiência total de 88 a 94%. O investimento neste item foi de € 1.050.000, durou dois anos para ser implementado, aumentou a produção energética em aproximadamente 1.000.000kWh por ano e reduziu as emissões de CO2 em 426 ton/ano, e tinha payback estimado de 10 anos.

b) Troca do turbo soprador para equipamento de 350KW de potência, 430mbar de pressão e 4m de coluna d'água. O investimento foi de € 195.000,00, levou um ano para ser implementado e resultou na redução do consumo de 300.000kWh e de emissão de CO2 de 153ton por ano. O payback desse item foi estimado em 7 anos.

c) Aumento da capacidade de geração, com aquisição de unidade geradora de 355kW e eficiência energética de 40%, resultando no aumento de produção de 900.000kWh por ano. O investimento, com payback previsto entre 3 e 4 anos, totalizou € 482.000,00 e resultou na redução da emissão de 376ton de CO2 por ano.

d) Implementação do sistema de distribuição de calor ao grid térmico da cidade, que teve investimento de € 186.000,00, resultou em receitas anuais de € 37.000,00 (pela comercialização do calor fornecido), aumentou a produção de calor em 2,5GWh por ano e reduziu as emissões de CO2 em 322 toneladas anuais. O payback deste item foi estimado em 5 anos.

e) Aquisição de nova centrífuga de desidratação, ao custo de € 242.000, reduzindo o custo operacional em € 53.000 ao ano e em 60.000kWh o consumo de energia ao ano, com payback previsto para 4 anos.

Por fim, os novos processos adotados (nitrificação e desnitrificação simultâneas, desamonificação lateral e derivação de nitrito), sumarizados na Figura 4, exigiram investimentos da ordem de € 448.000, removeram 480.000kg de N total (em 2016), reduziram o consumo de eletricidade em 50.000kWh (diminuição entre 0,7 e 0,9kWh por quilo de N total removido) ao ano e diminuíram a carga de impostos em € 95.000 ao ano, correspondentes às taxas incidentes sobre atividades que geram poluição na Dinamarca. Essa etapa tem previsão de payback de 5 anos.

Figura 4: Novos processos implementados na ETE Marselisborg.

Os resultados obtidos após a implementação das mudanças supracitadas foram os seguintes:

a) Redução de 26% do consumo energético da planta, de 4,2GWh para 3,1GWh ao ano, com economia real final de 34%;

b) Aumento de 66% na produção de eletricidade, de 2,9GWh para 4,8GWh ao ano;

c) Criação de nova receita financeira pela venda de calor, equivalente a 2,5GWh ao ano;

d) Aumento da autossuficiência energética de 119% para 153%, chegando a mais de 230%, caso considerado o calor excedente gerado;

e) Redução do custo operacional anual em US$ 744.000,00, em virtude da comercialização dos excedentes (energia e calor), da redução da taxação incidente sobre atividades poluidoras, da diminuição do custo com polímeros e da redução dos custos de disposição do lodo final;

f) Payback dos investimentos variando de 2 a 10 anos, com média global aproximada de 3,9 anos.

Desta forma, o upgrade de cerca de € 3 milhões posicionou Aarhus como a primeira cidade do mundo a prover água limpa a todos cidadãos, utilizando-se apenas da energia recuperada no tratamento de esgoto (MIS, 2017). Os excedentes energéticos (eletricidade e calor) equivalem ao consumo de 500 residências, e são comercializados e distribuídos ao grid local, proporcionando receita adicional (MIS, 2017). A ETE tornou-se autossuficiente ao investir em novas tecnologias e aumentar a eficiência dos equipamentos e, como consequência, reduziu vazamentos, a emissão de GEE, o consumo de eletricidade e os custos de manutenção (MIS, 2017). O histórico de autossuficiência da planta é representado pela Gráfico 3.

Gráfico 3: Histórico de produção, consumo e autossuficiência energética da

planta.

Fonte: traduzido pelo autor com dados coletados na pesquisa.

Mis (2017) argumenta que os engenheiros dinamarqueses que analisaram o projeto acreditam que sistemas semelhantes sejam viáveis a ETEs que atendam população superior a 100mil habitantes.

A despeito de toda essa mudança, a inovação na empresa Aarhus Vand não para por aí. Ela está construindo uma nova planta de tratamento, na mesma região, com previsão de conclusão para 2026. Trata-se de um novo conceito, o projeto denominado Aarhus ReWater, que adotará o conceito de economia circular para água de reúso, com emissão zero de CO2. O plano, iniciado em 2017, prevê a construção da ETE mais eficiente do mundo, que permitirá a produção de nutrientes, proteínas, alimentos, químicos e suprimentos para a indústria da saúde.

É importante observar, entretanto, que a inovação trazida pela Aarhus Vand não é uma iniciativa isolada naquele município, mas parte de um cenário maior de consciência sustentável desenvolvido pela municipalidade.

De fato, fundada por volta do ano 770, a "cidade dos sorrisos" ocupa a 22ª posição no Global Destination Sustainability Index e tem, como características: 450 bicicletas emprestadas gratuitamente à população e visitantes; 5% dos veículos

elétricos da Dinamarca, 25% dos quais utilizados por empregados da municipalidade; iluminação pública substituída por LED; gestão inteligente de sistemas públicos de iluminação e trânsito (no conceito smart city); mais de 2000 quartos de hotéis, 83% dos quais eco-certificados (SUSTAIN EUROPE, 2019). A cidade contempla, inclusive, projetos de gestão de resíduos marítimos (GDS, 2017).

O processo do modelo de sustentabilidade da cidade (Aarhus Sustainability Model – ASM) vem sendo trabalhado e discutido desde 2011 e revisto anualmente desde então, com objetivos de curto, médio e longo prazo (AARHUS 2017, 2017). O processo do ASM, que contempla os 17 ODS, engloba planejamento, envolvimento, pensamento, compreensão e ação, sempre com intensa participação da comunidade, e está dividido em quatro seções: operações diárias e mobilidade; alimentos e bebidas; arquitetura e estrutura física; comunicação e comportamento (AARHUS 2017, 2017).

O ASM também ainda é responsável por: meta de neutralização na emissão de CO2 até 2030; 80% de energia proveniente de fontes renováveis, 80% das quais de origem de biomassa, eólica e solar; apenas 1,3% de resíduos sólidos descartados em aterro sanitário; reciclagem de 59,7% dos resíduos sólidos; 909ha de área verde por 100 mil habitantes (cinco vezes e meia a média da capital de São Paulo, por exemplo, de acordo com Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis (2019)); 50 estações públicas de recarga de veículos elétricos (GDS, 2018).