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2. O TURISMO ÉTNICO NO CEARÁ

2.1 O caso do turismo dos Jenipapo-Kanindé

Assumi desde o início da pesquisa a posição que conflui com a perspectiva adotada por Grünewald (2001a, 2001b, 2003a, 2003b), estudo do turismo realizado pelos Pataxós no litoral sul da Bahia, onde firmou que o turismo realizado nos territórios indígenas se torna um campo de negociação, uma “arena turística”. Esses agentes sociais procuram os agentes econômicos, sociais e políticos que querem se relacionar, submetendo-se à gestão da atividade, aos seus critérios e às suas visões de mundo com intuito de assegurar sua sobrevivência e saciar seus desejos, no seio de uma sociedade de consumo.

De igual modo recorro a Bourdieu (2004, 2005) para compreender que existem em todas as comunidades campos sociais em disputas que têm as próprias regras, princípios e hierarquias e que são definidos com base nos conflitos, negociações e tensões no que diz respeito à sua própria delimitação e establecidos pelas redes de relações ou de oposições entre os atores sociais que são seus membros. A Rede TUCUM é uma dessas, assim como a Rede Cearense de Museus Comunitários (RCMC), de museus indígenas, de ecomuseus e as próprias articulações do movimento indígena estadual, como a COPICE e APOINME.

Parto da fala de pessoas mais velhas da etnia (os troncos velhos), como a cacique Pequena (72 anos) e seu Chiquinho (77 anos) que contam suas histórias, memórias do contato com os seus antepassados que pertenceram à etnia Paiacu7 (ou Baicú ou Pacajús)

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De acordo com Brito (2004. p. 72) “Segundo as pesquisas históricas, os Paiacu (ou Pacajú) habitavam as regiões compreendidas entre o rio Açu, a Serra do Apodi e grande parte da ribeira do Jaguaribe. Eram inimigos de muitos grupos indígenas, entre eles os Potiguara e Jaguaribara. Chegavam até bem perto de Fortaleza em expedições de guerra e saque, acometendo os índios mansos que residiam ali. Em 1666, foi a primeira rebelião, insurgindo os Paiacu contra os índios aldeados na Porangaba, não teve sucesso, mas, as ordens para puni-los foram severas submetendo-os pela rendição ou exterminação. Assim ocorreram espaços de tréguas e repetição de hostilidades. O Capitão-mor Jorge Correia da Silva decidiu, em 1671, pelo bem do sossego e paz da Capitania, fazer guerra de extermínio aos Paiacú. As perdas sofridas e o enfraquecimento desses índios fizeram com que eles solicitassem um tratado de paz em 1672, o Capitão- mor atendeu, mas os Paiacú não permaneceram tranquilos por muito tempo. Em 1688 houve novos ataques. Apesar das providências de defesa deliberando o combate por meio de ordenanças de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, também com ajuda dos paulistas, os Paiacú continuavam em guerra contra os colonos do Ceará e Rio Grande do Norte. Os Paiacú se aliaram aos índios Icó e Jandoin e, em 1694, promoveram um confronto mais organizado, quase aniquilando os colonos instalados nas margens dos rios Jaguaribe e Banabuiú. Só após 30 anos de luta é que aconteceu o aldeamento dos Paiacú em 1696, “perto do Aracati, no lugar chamado Araré pelo Padre João da Costa”.

Por volta de 1765, os índios Paiacú “andavam errantes e dispersos pelas margens do rio Choró. Foram andados aldear na Vila de Montemor, o Novo, aldeamento dos índios Jenipapo Kanindé, conforme determinação expressa do governador Borges da Fonseca. Por volta de 1818 residiam ainda em Monte-mór, no Novo d’América (atual cidade de Baturité), “índios Paiacú de raça pura” (STUDART FILHO, 1931:70 in ASSIS, 1998:32). A chegada desses índios à Vila de Montemor o Novo d’América, provocou desagrado

com os colonizadores europeus, seja os que vieram para se apossarem violentamente das suas terras, como ocorreu nas primeiras expedições no início do século XVII, seja com os missionários jesuítas e seu relacionamento mais amistoso, porém altamente transformador de sua cultura, línguas, hábitos, costumes. Todos esses fatos e notícias são narrados pelos troncos velhos, nas rodas ao redor de uma fogueira para os turistas que visitam a aldeia.

O historiador Manoel Coelho Albuquerque (2002) diverge da visão sobre a “aculturação” subsumidora das identidades indígenas, porque

Os trabalhos marcados pela perspectiva de aculturação trazem em si a compreensão de que os índios, assimilados e integrados ao mundo dos brancos, perderam, por completo, a identidade, ou, se não, tornaram-se índios menores. Os índios, longe de serem sujeitos passivos em todo o processo da colonização, atuaram em estratégias as mais diversas, moldando situações e fazendo sobreviver a indianidade. (P.38).

De acordo com a perspectiva adotada por Barth, ao se referir às fronteiras dos grupos étnicos em contato interétnico, nos quais os próprios sujeitos sociais estão inseridos em situações sociais e históricas específicas, por meio de múltiplas estabilizações contrastivas de grupos que vivenciaram e vivenciam situações de “diáspora”, “contato” e “misturas” (CARNEIRO DA CUNHA, 1987 e OLIVEIRA, 1988). A etnicidade se constrói como um sistema de separações e de diferenças com relação a “outros” significativos, em contexto histórico e social determinado, perspectiva valiosa no que toca à análise das reelaborações de identidades étnicas.

Ao voltar a atenção para a época atual, quando se identificam como índios Jenipapo-Kanindé, os troncos velhos de hoje falam da época em que eram jovens e assistiram ao primeiro encontro de sua gente na condição de “Cabeludos da Encantada”, com os homens brancos do governo e a da relação com a população circunvizinha. Eles passaram pela fase de reivindicarem e serem aceitos e reconhecidos publicamente pela sua condição de indígena, por comunidades da sua região circunvizinha como Trairussu, Riacho, Batoque, Barro Preto, Novo Iguape, Tapera, Presídio e os munícipes e gestores de Aquiraz, Pindoretama e Cascavel, no início dos anos 1980, até chegarem à elaboração e implementação da proposta de turismo comunitário, ou o etnoturismo Jenipapo-

aos moradores da vila, exigindo das autoridades a transferência dos Paiacú para Messejana em 1829. Mesmo com as ordens de mudança, muitos índios continuaram morando nas terras pertencentes à antiga missão. Como se constata nos estudos do “historiador Antônio Bezerra, quando em 11 de novembro de 1891, o capitão-mor dos índios Paiacú, Manuel Baptista dos Santos, lhe pediu proteção” (ASSIS, 1998: 33)”.

Kanindé, suas peculiaridades e especificidades que serão aqui analisadas e descritas, pelas próprias vozes dos seus sujeitos sociais emponderadores desse fazer turístico.

Também consta no Resumo do Relatório de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Lagoa Encantada, de Brito (2004. p. 71) que o processo de ocupação da TI Lagoa Encantada foi referendado pelos não índios que habitam as áreas próximas à Ti que então estava em estudo de identificação e delimitação, com fins demarcatórios. Ela registrou um depoimento expressivo de uma moradora de nome Dona Mariquinha que relatou lembranças do trabalho de rezadora e curandeira feito por sua mãe, Dona Luíza, e das estratégias que fazia para ajudar um povo chamado de “Cabeludos da Encantada”, que costumava pescar de rede e de anzol na Lagoa Encantada. Falou também que ouviu do seu marido que já memorava o que ouviu do seu pai a respeito do modo vida das pessoas mais velhas e das relações de parentesco entres eles. Lembrou-se de um dos troncos velhos muito importante para a história dessa etnia, que foi o “velho Chico Pixinga”, bisavó do pai do marido da cacique Pequena, ou seja, o tataravó do seu Chiquinho.

A Cacique relatou as habilidades desse povo mais antigo como pescadores, agricultores de roçados, coletores de mel de abelha da mata. Lembrou-se dos irmãos Manoel Pixinga, Zé Pixinga e de Zé Simplício, que tinha um “cabelãozão grande”; daí o nome popular dado aos índios de “Cabeludos da Encantada” e que incluía as mulheres como “cabeludas”. Um dos serviços espirituais da rezadora e curandeira Dona Luiza era rezar o terço, “festejar santo” (o que denota uma influência do catolicismo na comunidade, reminiscência da colonização e catequese jesuítica) lá na casa dos índios. A cacique Pequena disse-me que, como retribuição e gratidão aos serviços recebidos, quando eles faziam farinha, convidavam-nos para irem até lá comerem a farinha, a tapioca e o beiju que eles preparavam para seu sustento.

Todas essas histórias já foram repassadas às novas gerações, que se situam na faixa dos 13 a 21 anos e à geração adulta, e que estão inseridas nos trabalhos ligados ao etnoturismo Jenipapo-Kanindé, como o trabalho como guias etnoecológicos, monitores do MIJK e integrantes do Grupo de Dança Kunhã Apyara, além de serem assuntos estudados na Escola Indígena Jenipapo-Kanindé (EIJK). Os lugares onde os troncos velhos percorriam se transformaram nas cinco trilhas (dos roçados, Lagoa da Encantada, Sucurujuba, do marisco e do Morro do Urubu) que foram implantadas, considerando-se os aspectos ambientais e culturais mais relevantes na comunidade. Para tanto, os caminhos foram sinalizados e recuperados.

Os visitantes além de conhecerem as histórias da etnia durante os percursos que têm durações diferenciadas de 01h30min a 05h00min, também visualizam as áreas de cultivos, os locais de moradias de antigos índios (as taperas), as casas de farinha, a EIJK, o Galpão de Artesanato, o Cantinho do Jenipapo (local onde se serviam as refeições no início do projeto de turismo), os campos de dunas, as matas preservadas, as lagoas, as nascentes de água, os riachos e outros atrativos naturais e culturais. Todas as trilhas e locais de visitação foram sinalizados.

As histórias sobre o modo de vida dos troncos velhos e seus mitos são contadas por alguns guardiões da memória em rodas de conversa à noite em frente à PIJK, ou na varanda da casa da cacique Pequena, que é a mais procurada para contar essas histórias, e também seu Chiquinho, que costuma aparecer para contar histórias pessoais e as histórias que ouviu dos seus pais e avós.

Os saberes indígenas que se manifestam em diversos atos simbólicos realizados para os turistas representam um contato com o passado e a tradição do lugar visitado, no caso em específico a TI Lagoa Encantada e seus bens patrimoniais materiais e imateriais, mas que não necessariamente tenham sido construídos e analisados pela história vivida pelos antepassados, pois uma parte das narrativas surge como elementos vivos da criatividade das pessoas antigas e que foram repassados oralmente.