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TRÊS CATALISADORES E A RESSACA ROMÂNTICA Em “Colonialismo e novos estimulantes”, o primeiro capítulo da edição de 1954 127 , Morse armou

CAPÍTULO 1 DA EMPRESA BANDEIRANTE À CIDADE INDUSTRIAL A HISTÓRIA URBANA DE SÃO PAULO

3. FASES E MATRIZES DE UMA HISTÓRIA URBANA Seja na intenção de elaborar a história das cidades num determinado tempo histórico, seja na vontade

3.2. TRÊS CATALISADORES E A RESSACA ROMÂNTICA Em “Colonialismo e novos estimulantes”, o primeiro capítulo da edição de 1954 127 , Morse armou

o problema que queria enfrentar – a evolução urbana da cidade – descrevendo inicialmente como o espaço urbano se conformava nos anos anteriores à Independência, ligado àquele ethos colonial, comunitário, que ele pudera compreender de modo mais aprofundado com o mestrado. Mas não a romantizava como uma comunidade idílica, pois as idiossincrasias daquele período também eram ressaltadas de modo a mostrar que não se tratava de uma comunidade em sentido absoluto, antes um agrupamento que se reconhecia a partir de um sentido de vida comum.

A representação escrita mais antiga de cidade, em hieróglifo, como notou o historiador Robert Lopez, consistiu-se de uma cruz encerrada em um círculo: “a cruz representa a conver- gência de caminhos que trás e redistribuem homens, mercadorias e ideias” e o círculo indicaria um fosso ou um muro a circundar a vila128. Ora, essa também a primeira representação de São

Paulo, o entroncamento de caminhos e o isolamento pela Serra do Mar, a própria deinição de cidade portanto, reposta por todos os seus historiadores, Morse incluso129. O autor iniciava a his-

tória da cidade partindo da perspectiva geográica, deinindo sua dimensão como artefato material. Reconhecia o sítio estrategicamente localizado, “de modo a dominar as rotas terrestres e luviais de um vasto platô que declina para o oeste até atingir o sistema do rio Paraná”, conigurando um “destino para o interior” (DCaM, p.19). As primeiras vias de entrada, a partir dos velhos caminhos, na seqüência se tornariam os principais eixos viários da cidade, ao longo dos quais se deram os primeiros desenvolvimentos urbanos para além do núcleo original, que passaria a ser chamado de “ colina histórica”. A elas aderiram em seguida as estradas de ferro, adequando-se à coniguração de caminhos existentes, convergindo para seu centro: “a cidade era portanto freqüentemente o único ponto de ligação possível entre duas artérias e tornou-se ponto obrigatório para a maioria

127 Esse primeiro capítulo passa a ser a Primeira Parte na edição de 1970 (já na de 1958, na verdade), que compre- enderá então os seguintes capítulos (antes seções): A conformação da cidade; A vida da cidade; As consequências da Independência. As duas edições ganham ainda o capítulo Antecedentes, como vimos, que recuperavam mais detidamente o período colonial paulista.

128 Robert S. Lopez, “The city in technological innovation and economic development”. In: Handlin & Burchard (Eds.), op. cit., 1963, pp. 27-43, p. 27.

129 Sergio Buarque também iniciará Caminhos & Fronteiras recuperando, a partir de Capistrano, o fato de São Paulo ter sido, desde os primeiros tempos, o entroncamento de caminhos, inicialmente dos nativos, que cruzavam o vasto conti- nente americano do Prata ao Amazonas, e logo dos conquistadores, que puderam a partir daí trilhar para o sertão. Mas além da importância para o desenvolvimento daquela região, a situação era vista como a representar simbolicamente os destinos paulistas (Holanda, op. cit., 1957, p.16).

dos viajantes que passavam pelo planalto”, como atestam os testemunhos de Mawe, Kidder, Spix e Matius, Saint-Hilaire, invocados para reconstruir a situação da vila de São Paulo e seus arredores por volta de 1800130.

O norte-americano dava atenção aos caminhos que cruzavam o pequeno núcleo desde o mais antigo deles, o Caminho do Mar, a “artéria vital [que] saía de São Paulo tomando a direção sul polariz[ando] o plano de ruas da cidade em torno de um eixo norte-sul” (DCaM, pp.20-21), valendo-se não apenas dos relatos de viajantes, mas de pesquisas e trabalhos cientíicos então disponíveis. Entre eles destaca-se o estudo pioneiro de Caio Prado (1907-1990) sobre a formação da cidade de São Paulo, autor que reconheceu esse sistema convergente adequado à topograia baseado na coniguração morfológica do terreno onde a vila se implantou131. Nem só de textos se

constituíam suas fontes. Valeu-se também da observação de gravuras, aquarelas e mapas antigos, incluindo a cultura visual como material de pesquisa, como se nota no trecho seguinte:

[...] mapas posteriores mostram como essa orientação se modiicava no im do século e como as estradas de ferro, a leste para o rio e, de modo mais marcante, a oeste para a zona do surto do café, deram à periferia da “ixação urbana a forma de um círculo, continuando a distendê-la ao longo das novas linhas de força. (DCaM, p.21)

130 Viajantes citados por Morse em todo o livro (a maioria republicada em português até a primeira metade do século 20, o que mostra o interesse pelo passado da cidade no mercado editorial local): John Mawe, Viagem ao Interior do Brasil principalmente ao districto do Ouro e Diamantes (1807, editado em português em 1944); Gustavo Beyer, “Ligeiras notas de viagem do Rio de Janeiro à Capitania de S. Paulo, no Brasil, no verão de 1813” (em português, 1907); Marta Grahan, Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante os anos de 1821, 1822, 1823 (em português, 1956); Daniel P. Kidder, Sketches of Residences and Travels in Brazil (escrito em 1839, editado em 1845); Daniel P. Kidder e J. C. Fletcher, O Brasil e os brasileiros: esboço histórico e descritivo (editado em português em 1941); Thomas Ewbank, A vida no Brasil ou Diário de uma viagem ao país dos cacaus e das palmeiras (1856; traduzido em 1973); Augusto Emilio Zaluar, Peregrinações pela província de S. Paulo 1860, 1881 (em português em 1946); Louis e Elizabeth Agassiz. Viagem ao Brasil (1872, editado em português em 1938); Hercules Florence, Voyage luvial du Tieté à l’Amazone par les provinces brésiliennes de St. Paul, Matto Grosso et Gran-Pará (1875, do qual aparecem trechos traduzidos por Taunay na RIHGB em 1928, editado em português em 1977); Louis Mouralis, Un séjour aux Etats-Unis du Brésil: impressions et relexions (Paris, 1934); Ida Pfeiffer, Voyage d’une femme autour du monde (Paris, 1880); Pierre Denis, Le Brèsil au XIXeme siécle (Paris, 1909); Luiz d’Alincourt, Memória Sobre a viagem do Porto de Santos à Cidade de Cuiabá, (traduzido em 1953); William Hadield, Brazil and the River Plate in 1868 (Londres, 1880); Auguste de Sainte-Hilaire, Viagem à Província de São Paulo, Província Cisplatina e Missões do Paraguai (tra- duzido em 1940); J. B. von Spix e C. F. Martius, Viagem pelo Brasil, 1817-1820 (editado em português em 1938); J. J. von Tschudi, Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo (traduzido em 1953).

Ou na descrição de uma das vistas clássicas da São Paulo antiga, a partir da Várzea do Carmo, a principal entrada da cidade:132

De longe, o viajante que chegasse por uma dessas estradas que para aí convergiam, veria a cidade comprimir-se em sua colina. Era graciosa sua aparência, com a silhueta harmoniosa das igrejas e o branco [...] das paredes dos sobrados. [...] E ao longo do Tamanduateí, a serpear ao sopé da cidade até encontrar o Anhangabaú mais modesto, veria ele, abaixada nas margens, as escravas lavando roupa. (DCaM, p.21)

Temas que vão aparecer na bibliograia sobre a cidade desde então – como o crescimen- to urbano a partir dos eixos viários, a inversão de polaridades que se daria com a implantação das

132 Neste capítulo estão publicadas (s/p) duas aquarelas de “Arnaldo Juliano Pallieri” [Arnaud Julien Palliére (1784- 1862)] da Coleção de Yan de Almeida Prado, vistas da cidade tomadas da Várzea do Carmo em 1828. Morse publi- ca ainda 3 fotograias, “Velhos sobrados (Rua Direita, esquina de São Bento)”, “Sobrado com rótulas (Rua de São Francisco, por volta de 1860. Ao fundo o Piques)” e “Chácaras no Brás (Vista tomada do Morro do Carmo, mais ou menos em 1870)” para mostrar a cidade pouco transformada e uma última, “O movimento nas ruas de São Paulo que impressionou Pierre Denis (Rua 15 de Novembro, entre 1910 e 1911)” que mostrava a mudança. Todas as fotograias pertencentes ao Arquivo da Seção de Iconograia do Departamento Municipal de Cultura (DCaM, folhas em papel couché seguintes às páginas 47, 111, 190, 238.)

FIG.4 São Paulo vista por um viajante: a partir do Convento do Carmo, via-se a torre da Igreja de Santa Tereza, da Cate- dral e da Igreja dos Jesuítas, e à direita, parte da várzea do Tamanduateí (Thomas Ender, 1817)

FIG.5 Caminhos que partem da colina, antes e depois das ferrovias: na Planta da Cidade de S. Paulo (1810), a “colina his- tórica” entre os rios; na Planta Geral da Capital de São Paulo (1987), os bairros novos formados ao longo da linha férrea

ferrovias, a deinição da estrutura radio-concêntrica que a caracterizou a partir dos caminhos que a cruzam – eram ali expostos de modo a tornar inteligível a morfologia daquela pequena vila ainda de ares coloniais em pleno século 19 e a maneira como ela foi se transformando a partir do incremento e diversiicação populacional. Trata-se de um olhar para a cidade atento aos ciclos e às características formais, aos traçados, aos espaços e a sua arquitetura, de modo a enriquecer as análises com descrições da própria forma urbana, apoiado na bibliograia crítica e nos relatos, fossem eles escritos ou visuais. Mas a descrição da forma urbana só faz sentido por estar conectada a uma explicação ampliada do desenvolvimento social daquela comunidade, reconhecendo a cidade como espaço de tensões e conlitos, e também como locus da memória. Essa visão ia sendo formulada na seqüência dos capítulos, no embate com a própria produção cultural sobre e da cidade, seus discursos – fos- sem eles literários ou iconográicos – mobilizando portanto a dimensão das representações na compreensão do espaço urbano. Ou seja, um olhar alimentava o outro e assim sucessivamente, entre as diversas esferas sociais e as suas representações, numa via circular entre a cultura material, os processos sociais e as ideias, ou como quer Ulpiano Bezerra de Menezes, sem fetichizar a cidade como objeto, ao dar a devida importância à urbanização como um processo social e cultural133.

Neste primeiro capítulo, Morse pontuou três eventos fundamentais que ele chamou de “catalisadores” da mudança posterior – os tais “novos estimulantes” do título – a saber, o es- tabelecimento da imprensa, a fundação da Academia de Direito do Largo de São Francisco e o surgimento de um certo aparato burocrático de ordem nacional a impor a São Paulo o rompimento da autonomia gozada no período pré-Indepêndencia134. Os três, pode-se dizer, partes da “cidade

letrada” que caracterizará a modernização das cidades na América135. Aqui a matéria principal eram

os viajantes, que forneciam as imagens daqueles anos remotos com suas descrições minuciosas do

133 Ulpiano Bezerra de Menezes, “Morfologia das cidades brasileiras: introdução ao estudo histórico da iconograia urbana”, Revista USP, São Paulo, n. 30, jun.-ago., 1996, pp. 145-55.

134 Num artigo publicado antes da tese, quando Morse testa sua argumentação buscando apontar fatores que aju- dariam a compreender o desenvolvimento posterior da cidade, aparecem outros, como a permissão às manufaturas domésticas e o papel dos paulistas na própria declaração de Independência feita pelo ilho de Dom João, que reapare- cem no livro mas com menor destaque. Nota-se deste modo como Morse reina sua análise, deixando-a mais precisa. Cf. Richard Morse, “A cidade de São Paulo no período de 1855-1870 (I)”, Sociologia, Escola de Sociologia e Política, São Paulo, v. XIII, n. 3, 1951, pp. 230-51 (a esse se segue o artigo “A cidade de São Paulo no período 1855-1870 (II): uma nova retórica e a estrada de ferro”, Separata de: Sociologia, São Paulo, v.3, n. 4, 1951). Argumentação semelhante aparece em “Sao Paulo in the 19th Century: Economic Roots of the Metropolis”, Inter-American Economic Affairs, v. 5, n. 3, 1951, pp.3-29.

FIG.6 Uso das imagens na edição de 1954: “Vistas da cidade tomadas da Várzea do Carmo em 1828” (aquarelas de Arnaud Julien Palliére);“Sobrado com rótulas (Rua de São Francisco, por volta de 1860. Ao fundo o Piques)”; “Chácaras no Brás (Vista tomada do Morro do Carmo, mais ou menos em 1870)”; “O movimento nas ruas de São Paulo que impres- sionou Pierre Denis (Rua 15 de Novembro, entre 1910 e 1911)”

cotidiano da cidade apreendido em viagens para a pequena vila do sertão, passagem obrigatória aos que buscavam conhecer o interior do continente. Quase que os únicos testemunhos que temos hoje daqueles dias, os viajantes funcionavam como cronistas dos tempos passados – na acepção mais antiga da palavra, daqueles que narram o desenrolar do tempo, os primeiros historiadores – e reviviam o cotidiano daquela vila por meio de seus relatos, construindo uma imagem da cidade.

Para o norte-americano, havia sido a perda, com a Independência em 1822, de uma relativa autonomia desfrutada por São Paulo que juntamente à implantação da Faculdade de Direito e ao estabelecimento da imprensa com a inauguração do primeiro jornal, ambos em 1827, o que

catalisou a “explosão” posterior. Os três fatores, do seu ponto de vista, prepararam o terreno para

o paulista sair deinitivamente do seu mundo interior, apontando, ou melhor, suportando o surgi- mento do cosmopolitismo que caracterizará a cidade mais adiante (DCaM, pp.44-58). Os trechos citados a seguir parecem ser suicientes para indicar a forma como Morse construía esse argu- mento. Mostrando como o estabelecimento de uma administração ligada ao poder central trazia mudanças, o historiador airmava:

A lei tirava aos paulistanos sua capacidade de resolver as necessidades orgânicas da cidade como cidade. Os membros da câmara conheciam essas necessidades porque as viviam. A auto- ridade máxima, entretanto, passara a pessoas do governo provincial que não participavam da vida municipal, que viviam de olhos voltados para a Corte no Rio e reletiam sua harmonia e pompa espúrias. (DCaM, p. 54)

Do papel da Academia, Morse lembrava que ela teria sido “por muitos decênios o cen- tro vital da cidade” (DCaM, p. 55).

Atraía alunos e professores de todo o país e de fora. Com estes vieram necessidades e atitudes que iriam lançar o fermento na comunidade introvertida. Vieram os costumes mundanos; as ideias e as paixões políticas a transcenderem o contexto local; a necessidade de teatros, jornais, livrarias, bailes e pontos de reunião não formais, como os cafés; o ceticismo cáustico dos aca- dêmicos sempre pronto a desarticular os estritos padrões da vida provinciana. (DCaM, p. 55)

Junto a isso, “a imprensa fazia parte do processo de extroversão da cidade” (DCaM, p. 57), e deste modo:

Era através da imprensa que uma teia de interesses distantes e pessoais se projetava sobre a tela circunscrita e imediata, vida e sentida, da rotina e do costume. [...] a imprensa era ao mesmo tem- po efeito e causa da nova tensão entre o conhecimento imediato e a ideia distante. (DCaM, p. 57)

FIG.7 Academia de Direito: inaugurada em 1827 e instalada no Convento de São Fran- cisco, em 1867 (fotograia de Militão Augusto de Azevedo)

FIG.8 Vida letrada: venda, fuga e aluguel de escravos (Província de S. Paulo, c. 1870) na imprensa paulista

Ainda que mantivesse certas características daquele substrato cultural original, o ethos da sociedade mudava e se adaptava a partir dos intercâmbios sociais, expressando a transformação dos imaginários e revelando uma reelaboração permanente ao longo da história. Morse justamente bus- cava mostrar como a partir da 1822 a cidade e seus habitantes se viram diante de novas injunções que começavam a alterá-lo. Antes, entretanto, de explorar os efeitos de tais catalisadores, o autor se demorou na descrição física daquela cidade com seus sobrados de taipa, “a qual, apesar de ser uma técnica européia, exprimia peculiarmente as necessidades e condições do sertão brasileiro, agreste e isolado” (DCaM, p.34).

Se os memorialistas de certo modo já haviam recorrido à história material a partir de elementos como a arquitetura ou as técnicas construtivas, é certamente a leitura que os arquitetos modernos faziam contemporaneamente da arquitetura colonial em busca dos traços e tradições originais de uma arquitetura própria, “nacional” – cuja linha traçada nos tempos da Colônia se li- gava ao presente não pela forma, mas pelo procedimento, a adequação ao meio, a honestidade dos materiais, ou seja, uma série de temas “modernos” – que informava a formulação que Morse levava à frente. “A beleza e a honestidade estética do sobrado foram mais tarde negadas. [...] A metrópo- le renegou ao esquecimento esta estrutura e o modo de vida que lhe correspondia [...].” (DCaM, p.35). O historiador apoiava-se no manuscrito “Monograia sobre Carapicuíba” (1938) escrito por FIG.9 Sobrados de taipa na cidade: rua do Imperador e ao fundo a Igreja de São Gonçalo, na atual Praça João Mendes, c. 1862 (fotograia de Militão Augusto de Azevedo)

Luiz Saia, e em seu artigo “Notas sobre a arquitetura rural paulista do segundo século” (1944), que juntamente ao texto de Silva Bruno, “Apontamentos sobre a cidade e a casa de São Paulo no século 19” (1944), davam-lhe as bases para discutir a adequação das técnicas coloniais ao meio e a posterior substituição por outras menos adaptadas e quase anômalas, compartilhando da visão condenatória dos arquitetos modernos à cidade da belle époque.

De fato, é a perspectiva dos proissionais que forjaram o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional que se pode ler nas entrelinhas, pois como sabemos, desde a fundação do Sphan em 1937 aqueles intelectuais buscavam valorizar a tradição colonial com vistas à construção da nação, propondo uma ligação orgânica entre aquela arquitetura pregressa e a arquitetura moderna contemporânea. Os arquitetos modernos defendiam a última como a verdadeira arte nacional, após um interregno que levara às cidades a se coalharem de edifícios ecléticos, importados e sem caráter que teriam construído “cidades postiças” deste ponto de vista, condenando o ecletismo do século 19 ao esquecimento do ponto de vista do patrimônio – e historiográico136. Morse também a absorvia

pelo intermédio de Saia, que acabou se tornando uma espécie de “tradutor” para os temas urbanos e arquitetônicos para o norte-americano. A visão do arquiteto sobre o tema explicitava a ideia de que mesmo a casa senhorial tivera suas bases irmadas na “arquitetura popular com sabores eruditos, pelo uso das técnicas construtivas, da racionalidade sincera e da simplicidade despojada, uma nudeza linguística típica das casas rurais”137, onde se veriicava

136 Como nota Silvana Rubino, “diversos autores já assinalaram que o período histórico de eleição para os tombamentos do Sphan situa-se entre os séculos XVI e XVIII, sendo o período entre o XIX e o término da Primeira República o oposto disso: o período imediatamente anterior à geração do Sphan, a ser no máximo tolerado quando se tratasse de inscrever um bem de qualidade excepcional. É comum, tanto nos escritos de Mário como nos de Lúcio [Costa], a menção a um bem ou um elemento notável, apesar de ser do século XIX”. (Silvana Rubino, “Lucio Costa e o patrimônio artístico nacional”, Revista USP, São Paulo, n.53, mar.-mai., 2002, p. 6-17, p. 14., grifo meu (http://www.usp.br/revistausp/53/01-silvana.pdf. Acesso 22 /09/2012)). De fato esta leitura de “condenação” à cidade erigida no século 19 pode ser notada pelo menos desde a década de 20, não apenas nos modernistas mas também nos “nacionalistas” que buscavam o local através de uma arte neocolonial. Explorei tal tema no artigo escrito com Joana Mello no qual analisamos as leituras de Ricardo Severo, Monteiro Lobato, Menotti del Picchia e Gregori Warchavchik em relaç ão a busca da “verdadeira arte nacional” para se contrapor à “cultura postiça” que aos olhos dos quatro grassava em São Paulo no início do século 20. (Cf. Ana Castro e Joana Mello, “Entre nacionalismos e cosmopolitismos: imagens da metrópole moderna paulistana nas primeiras décadas do século 20”, Anais do VIII Seminário de História da Cidade e do Urbanismo (CD-Rom), Niterói, UFF, 2004).

137 Paulo Roberto Masseran, “Diálogo atrevido entre a pedra e o tijolo, ou o popular e nacional na arquitetura brasileira, por Luiz Saia e Mario de Andrade”, Tese (Doutorado), Faculdade de Ciências e Letras de Assis, UNESP, 2011, p. 268. Saia, como sabemos, é autor do livro Morada Paulista (1972), que periodiza a história de São Paulo por

uma prática de soluções mestiças, ou seja, a impregnação das soluções ibéricas de importação jesuítica, nos programas e detalhes técnicos, e outras de procedência primitiva, afro-negra e ameríndia, constatáveis pelo uso de detalhes técnicos de origens autóctones.138

Essa perspectiva certamente encantou um Morse já disposto a absorver os resultados de uma cul- tura híbrida, ajudando-o a incorporar o olhar modernista em suas leituras do passado paulista em diversas passagens do texto.

Duas seções do primeiro capítulo, “A conformação da cidade” e ‘A vida na cidade”, apre- sentavam a compreensão de Morse da forma urbana entrelaçada à vida de seus habitantes, partindo de como a cidade havia sido vista pelos que nela viveram ou a visitaram para formular uma visão geral daquele período. Com isso, o leitor podia entender melhor o papel dos catalisadores das mudanças bem como aquilatar o desenvolvimento posterior. Como São Paulo durante as décadas de 1940 e 1950 se tornava uma metrópole industrial, Morse dava atenção ao que poderiam ser as primeiras e in- cipientes movimentações para o estabelecimento de indústrias na capital paulista, desde a chegada de D. João em 1808 no Rio, para pontuar a gênese de um processo de industrialização. Recuperando as ações necessárias para que tal fato pudesse acontecer, retomava de maneira mais elaborada argumen- tos já explorados em artigos publicados anteriormente, buscando acentuar como aquela pequena vila não tinha ainda as condições mentais (culturais) para absorver tal transformação. O seu ponto, deste modo, tornava-se mais claro. Tratava-se de dar atenção a transformação da “mentalidade” paulista:

O progresso, os salários ou o prazer psíquico da produção em massa não podiam sujeitar ho- mens cuja posição na vida era pré -determinada, cujas despesas com alimentação, vestuário e álcool eram mínimas, cuja necessidade de mobiliário e assessórios não tinha sido estimulada. (DCaM, p.45)

Com argumentos que podem nos remeter à famosa leitura de Monteiro Lobato sobre o Jeca Tatu: