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A CONSTRUÇÃO DE UM ETHOS COLONIAL PAULISTA Como se sabe, a história colonial de São Paulo vinha sendo explorada mais sistematicamente pelo

CAPÍTULO 1 DA EMPRESA BANDEIRANTE À CIDADE INDUSTRIAL A HISTÓRIA URBANA DE SÃO PAULO

2. A CONSTRUÇÃO DE UM ETHOS COLONIAL PAULISTA Como se sabe, a história colonial de São Paulo vinha sendo explorada mais sistematicamente pelo

menos desde a fundação do Instituto Histórico e Geográico de São Paulo (IHGSP) em 1895, agremiação que promovia a publicação de inúmeras compilações sobre o período colonial paulista justamente por ter se colocado a tarefa de “rever” a história “nacional”, conduzindo São Paulo ao posto de protagonista desse processo histórico. Para seus membros, “a história de São Paulo [era] a própria história do Brasil”, como aparece logo no primeiro número da Revista do IHGSP (1895). Tal protagonismo se veriicaria a partir do reconhecimento das ações dos chamados bandeirantes, homens que por meio de suas andanças pelo sertão teriam alargado as fronteiras nacionais, cons-

simbólico”, Saia ao mesmo tempo diria ser “indispensável recuar até a proto-história de São Paulo para encontrar, ainda no primeira século de colonização os motivos que militaram em favor da posição geográica e em favor do sítio urbano que sediariam a capital” (p.209). Portanto, airmava quão fundamental era compreender o período colonial para compreender a metrópole. Perspectiva que informa os estudos de Morse – e que o arquiteto retomou em Morada paulista (1972).

28 “São Paulo: The Early Years”, by Richard M. Morse. Master of Arts in the Faculty of Political Science, Columbia University, New York, Jun., 1947. Texto datilografado, Rare Books & Manuscripts Library, Columbia University. Daqui

truindo o que mais tarde se conigurou como Brasil. Vale notar que a despeito do termo “bandeira” aparecer nos documentos e escritos coloniais, a palavra “bandeirante” só seria dicionarizada em 1913, sendo uma criação a posteriori. Originando-se do substantivo, o adjetivo “bandeirante” estava “pleno de um sentido simbólico”29.

Um primeiro esforço para sistematizar e publicar a documentação colonial havia sido empreendido por Washington Luís (1869-1957), prefeito (1914-19) e governador (1920-24) de São Paulo e membro ativo do IHGSP, quando nas décadas de 1910 e 20 patrocinara a publicação das

Actas da Camara de Santo André (1914) e de São Paulo (1917), os Inventários e testamentos (a partir de

1920) e as Sesmarias (desde 1921), que se tornaram fonte corrente para as pesquisas e interpretações históricas daí em diante. Entre tais estudos iguravam a História geral das bandeiras paulistas em 11 volumes (1924-1950) e a História seiscentista da vila de São Paulo, com 4 volumes (1926-1929), ambos de Alfredo d’Escragnolle Taunay (1876-1958); O bandeirismo paulista e o recuo do meridiano (1924) e

Raça de gigantes (1926), de Alfredo Ellis Junior (1896-1974); Paulística: História de São Paulo (1925) de Paulo Prado; Vida e morte do bandeirante (1929) de José de Alcântara Machado (1875-1941), todos publicados na década de 1920, além de numerosos artigos e dos próprios documentos de época republicados na revista do Instituto ou em outros periódicos, como a Revista do Arquivo Municipal ou os Anais do Museu Paulista.

Dentro do esforço de valorização da história colonial de São Paulo levado a cabo no iní- cio do século 20 pelo então governador – ele próprio historiador, autor de artigos sobre São Paulo, e do livro Capitania de São Paulo (Editora Nacional, 1938), lançado depois de ter sido presidente do Brasil (1926-30) –, não constavam, porém, apenas iniciativas editoriais. Pode-se incluir ali a constru- ção de quatro monumentos neocoloniais no Caminho do Mar30 a reformulação do antigo Largo do

Piques, rebatizado de Largo da Memória31, obras encomendadas pelo próprio Washingon Luís ao

arquiteto franco-argentino Victor Dubugras (1868-1933) para as comemorações do centenário da Independência (1922), ou o monumento às Bandeiras encomendado a Victor Brecheret (1894-1955)

29 Maria Isaura Pereira de Queiroz, “Ufanismo paulista: vicissitudes de um imaginário”, Revista da USP, São Paulo, n. 3, 1992, pp. 78-87, p.81.

30 A primeira estrada da cidade, sua ligação com o litoral e portanto, com a Metrópole, tinha portanto uma impor- tância simbólica para a cidade.

31 Antiga parada dos tropeiros vindos da Feira de Sorocaba antes de entrar na cidade e cruzá-la em direção ao porto, pelo Caminho do Mar. Na reforma ganharia uma nova escadaria e um painel de azulejos (este desenhado por José Wasth Rodrigues).

na mesma ocasião (ediicado entretanto apenas em 1954), como exemplos de ações que buscavam estabelecer uma imagem – nesse caso, materializada em ediicações – de um passado “glorioso”32.

Lucia Lippi, entretanto, volta para trás e recupera dois momentos-chave da historio- graia paulista. O primeiro, ligado aos nomes de Pedro Taques de Almeida Paes Leme (1714-1777) e Frei Gaspar da Madre de Deus (1715-1800), que em suas obras já retomavam os relatos e os documentos coloniais para discutir a origem dos primeiros povoadores (nos livros Nobiliarquia

paulistana histórica e genealógica e Genealogia das principais famílias paulistanas; e em Memória para a história da Capitania de São Vicente). E aquele que identiicamos no inal do século 19, airmando-se sobre-

tudo nas primeiras três décadas do 20 – compreendendo portanto o período da República Velha –, simbolizado na atuação do IHGSP e na obra dos intelectuais a ele ligados, no qual a palavra “bandeirante” passa a ser largamente empregada. A historiadora retoma pressupostos fundamen- tais que teriam orientado a concepção da história paulista, entre eles o “isolamento”, a “mes- tiçagem luso-indígena” e a “ausência de negro africano” – desde Pedro Taques e Frei Gaspar, passando pelos intelectuais do IHGSP (dos quais destaca Taunay, diretor do Museu Paulista entre 1917 e 1945, por atuar em muitas frentes), pela blague oswaldiana: tupy or not tupy, that’s the ques-

tion, chegando à Revolução de 1932 –, para mostrar como os mesmos temas apareciam e rea- pareciam quase sempre para airmar a superioridade paulista em relação ao restante do país33.

32 Ediicado para as comemorações do IV Centenário sediadas no Parque do Ibirapuera então recém inaugurado – conjunto urbano-arquitetônico eminentemente moderno, como se sabe –, o Monumento às Bandeiras (como os outros exemplos citados) airmava uma vez mais a “eicácia” da imagem do bandeirante para o elogio da identidade paulista, materializando a ligação entre passado-presente-futuro que os arquitetos e intelectuais modernos lograram construir nos seus discursos e, mais que isso, mostrando a importância da arquitetura na construção da identidade da cidade. A esse respeito, cf. Paulo Garcez Marins. “O Parque do Ibirapuera e a construção da identidade paulista”, Anais do Museu Paulista, História e Cultura Material, São Paulo, v. 6, n. 7, 2003, pp. 9-36. Sobre a valorização bandeirante nas “instâncias consagratórias”, para usar o termo de Bourdieu, cf. Lilia Schwarcz, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993 e Antonio Carlos Ferreira, A epopeia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940). São Paulo: Ed. Unesp, 2002, entre outros.

33 Lucia Lippi Oliveira, Americanos. Representações da identidade nacional no Brasil e nos EUA, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, pp.69-91. De fato, vemos que nos anos 1920 a obra de Pedro Taques por exemplo, é reeditada pelo IHGSP, acrescida de uma biograia e de um estudo crítico da obra por Affonso Taunay (Pedro Taques e seu tempo: estudo de uma personalidade e de uma época, 1926). Vale ressaltar porém que tais trabalhos não têm todos a mesma perspectiva, e acen- tuam esta ou aquela característica de acordo com seus interesses mais diretos, ainda que se notem continuidades e recorrências. Deste “conjunto”, destaca-se a precocidade de Alcântara Machado no tratamento da cultura material como contribuição para se desfazer a imagem do rico bandeirante, revelando a pobreza da vida no sertão (ao analisar os inventários e testamentos). Ainda assim, todos eles, de certo modo, fazem parte da historiograia paulista que após a historiograia tradicional. Diversos trabalhos, nos últimos anos, têm se

FIG.1 Publicações sobre São Paulo e o bandeirismo: Vida e Morte do Bandeirante (1929); Bandeirismo paulista e o recuo do meridiano (1924) ; S. Paulo Primeiros Anos (1930); História Geral das bandeiras paulistas (1924) e as “pioneiras” Nobiliarquia paulistana histórica e genealógica, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme e Memória para a história da Capitania de São Vicente, de Frei Gaspar da Madre de Deus, escritas no século 18

FIG.2 Valorização do período colonial: Largo da Memória (1922), de Victor Dubugras, e Monumento às bandeiras, de Victor Brecheret (maquete, 1922), construído em 1954 no Parque do Ibirapuera

Raquel Glezer aponta como um “mito de origem” se constitui nessa historiograia que explica o presente pelo passado. Se bem entendo, a autora airma que a preocupação em exaltar o passado por meio desses mitos tem a ver também com o fato de São Paulo não ter tido os mo- numentos arquitetônicos, civis, religiosos ou militares que outras regiões tiveram – como Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e as Minas Gerais –, o que teria levado a uma construção historiográ- ica para mitiicar e valorizar aquele passado através de seus “grandes homens e atos heróicos”34.

Deste modo, segundo a historiadora,

o passado foi criado destacando as diversidades com as outras regiões, como hábitos e valores; transigurando a pobreza em austeridade; procura de índios e ouro em mobilidade expansio- nista nacional; bastardia e miscigenação em formação da raça brasileira; atividades agressivas de sobrevivência em honrosos serviços ao Estado nacional, etc.35

Foi partindo dessa leitura do passado, explorando as mesmas fontes que aqueles his- toriadores exploravam e se baseando nos trabalhos que eles haviam feito que Morse organizou um trabalho dedicado a compreender a formação de São Paulo desde a sua fundação e durante seu primeiro século de existência, antes mesmo das primeiras bandeiras. “São Paulo: The Early Years”36 é de certa forma uma revisão bibliográica dos artigos e documentos publicados na

Revista do Instituto Histórico e Geográico de São Paulo – cuja coleção completa consta da biblioteca da

universidade de Columbia. O trabalho se valeu também de um testamento e inventário da coleção de Washington Luís – cujos 29 volumes editados pelo Arquivo do Estado de São Paulo fazem

dedicado a analisar detidamente essa historiograia, com vistas a desfazer algumas imagens por eles consolidadas, como a de decadência econômica de São Paulo nos setecentos, entre estes o de Ilana Blaj, A trama das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São Paulo: Humanitas, 2002 ou o de Maria Aparecida Borrego, A teia mercantil: negócios e poderem em São Paulo colonial 1711-1765. São Paulo: Alameda, 2010.

34 Raquel Glezer, Chão de Terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Alameda, 2001, pp. 44-5 e ss.

35 Id., p.51. Vianna Moog, em outro contexto e com outra inalidade, dá um testemunho interessante: “a julgar pela atorada da literatura nacional em torno dos bandeirantes, dir-se-ia que o São Paulo moderno [...] é obra exclusiva do bandeirante e do espírito da bandeira. Porque nisto de emprestar ao bandeirante atributo que ele nunca teve o paulista de quatrocentos anos é um verdadeiro ianque. Se para valorizar o símbolo que lhe é caro, for preciso atribuir ao ban- deirante atributos orgânicos, ele o atribuirá; se para magniicá-lo, for preciso torcer a história, ele a torcerá.”. Vianna Moog, Bandeirantes e pioneiros. Porto Alegre: Globo, 1973, p.172.

36 Para a elaboração desta pesquisa na Universidade de Columbia, o historiador recém formado em Princeton contou com uma bolsa do Woodrow Wilson Institute, ligado a essa universidade, o que demonstra o interesse norte-americano na América Latina ainda no pós-Guerra. Para vir a São Paulo, Morse contaria em seguida com outra bolsa, desta vez do

parte daquela biblioteca –, analisado por Morse de modo a dar cor ao que havia sido escrito, já que o documento demonstrava materialmente a penúria e a singeleza das vidas naquele sertão. Segue- se a isso uma apreciação sobre o que teria possibilitado o surgimento da empresa bandeirante. O jovem historiador dividia o estudo em três capítulos: “O padrão”, “A textura” e “O alvorecer de uma era heróica”37.

O primeiro, partindo da descoberta européia do Novo Mundo, descrevia os diversos grupos que iriam compor a cidade de São Paulo em seu momento inicial: os brancos, a partir da igura emblemática e quase mítica de João Ramalho (1493-1580); os jesuítas, citando o papel dos padres Manuel da Nóbrega (1517-1570) e do jovem Anchieta (1534-1597) para o estabelecimento do núcleo jesuítico; e os indígenas. Descrevia ainda a vila de Santo André fundada por Ramalho, que com seus mamelucos logo seria incorporada ao aldeamento de Piratininga. O capítulo dois

37 Capítulo 1 “O padrão” (O Novo Mundo; João Ramalho; Os jesuítas; As capitanias; Os indígenas; Santo André); Capítulo 2 “A textura” (Características naturais; Inimigos humanos; Elementos étnicos; Vida econômica; Vida comu- nitária; Vida familiar; Testamento e Inventário de Henrique da Cunha); Capitulo 3 “Alvorecer de uma era heroica” (Maturação; Bandeiras; Um olhar à frente); Bibliograia. [Chapter I The pattern (p.1); a) The New World (p.2); b) João Ramalho (p.7); c) The Captaincies (p.10); d) The Jesuits (p.13); e) The Indians (p. 21); f) Santo André (p.28); Chapter II The Texture (p.34); a) Natural Features (p.35); b) Human Enemies (p.39); c) Ethnic Elements (p.44); d) Economic Life (P.55); e) Community Life (p.61); f) Family Life (p.71); g) The Will and Inventory of Henrique da Cunha (p.78); Chapter III Dawn of a Heroic Era (p.85); a) Maturation (p.86); b) Bandeiras (p.93); c) A Glimpse Ahead (p.98); Bibliography (p.103)]

era dedicado a uma apreciação sócio-geográica do lugar, explorando as características naturais, os inimigos e a variedade dos elementos étnicos; abordando em seguida as diversas esferas da vida na cidade: a econômica, a comunitária e a familiar; o que se completava pela análise do inventário do português Henrique da Cunha. O último capítulo tratava do tema chave da historiograia paulista colonial, as bandeiras, porém partia de uma perspectiva interessante, questionando o que teria levado ao surgimento das mesmas e apenas anunciando tal realização desde São Paulo no século 16. O trabalho, deve-se notar, não oferecia uma introdução que explicasse suas motivações nem conclusão que izesse um balanço das questões tratadas.

Uma leitura rente ao texto, entretanto, pode trazer alguns elementos para a discussão que pretendo levar à frente. A primeira coisa que deve ser destacada é a bibliograia empregada. Trata-se em sua quase totalidade dos autores paulistas ou radicados em São Paulo, pertencentes ao IHGSP, que haviam construído a visão de São Paulo como terra ímpar, fundada no interior do continente e preservada das inluências externas pela barreira natural da Serra do Mar. Os não pau- listas que fazem parte da bibliograia compartilhavam daquela visão, ou antes, teriam auxiliado eles também a consolidá-la, como é o caso do cearense Capistrano de Abreu (1853-1927)38. Capistrano

pode ser tomado quase como fundador de um campo de estudos, a partir de seus Caminhos antigos e

povoamentos no Brasil, de 1899 e os Capítulos da História Colonial (1500-1800), publicado em 1907, cujo capítulo dedicado ao sertão – num volume que seria segundo o historiador Fernando Novais uma tentativa de síntese do seu ponto de vista sobre o papel de São Paulo na Colônia39 –, iniciava-se da

seguinte forma:

O estabelecimento de Piratininga, desde a era de 530, na borda do campo, signiica uma vitória ganha sem combate sobre a mata, que reclamou alhures o esforço de várias gerações. Deste avanço procede o desenvolvimento peculiar de São Paulo40.

38 Capistrano de Abreu foi um dos primeiros historiadores brasileiros a ressaltar a importância de se pesquisar o ser- tão, as bandeiras, os caminhos e povoamentos – interesse levado à frente em parte por gente de São Paulo –, em con- traposição aos estudos dos estabelecimentos litorâneos. Não por acaso, ele seria lido e louvado pelos autores paulistas e tornar-se-ia “mestre” de Prado, que insiste na proeminência paulista na história nacional justamente a partir do papel do “bravo bandeirante”, publicando em 1926 Paulística. A esse respeito, cf. Fernando Novais, “Capistrano de Abreu na historiograia brasileira”. In: Aproximações. Estudos de história e historiograia. São Paulo: Cosac Naify, 2005, pp.313-6. 39 Id., p. 314. Novais mostra a importância de Capistrano não apenas para a historiograia paulista, mas na histo- riograia brasileira, tomando-o como ponte entre uma historiograia “tradicional”, ligada ao IHGB (e ao IHGSP), e a historiograia “moderna”, universitária.

40 Capistrano de Abreu, Capítulos de História colonial, Domínio público, Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, s/d., p.56 (http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000062.pdf). Acesso 22/09/2010, grifo meu. Uma edição fac-

Estava dado o mote para os paulistas empreenderem a sua história, sempre ressaltando a peculiaridade dessa capitania e de seu “bravo povo” estabelecido no sertão, voltado para dentro do continente, portador da essência do que viria a ser o Brasil moderno. Tampouco o luminense Oliveira Vianna (1883-1951), autor de Populações Meridionais do Brasil – outro autor não paulista mo- bilizados por Morse neste trabalho – teria uma visão menos “paulista” da empreitada seiscentista. A tese defendida por Oliveira Vianna forneceu munição aos que compartilhavam da visão eugênica da constituição de uma raça superior nascida no planalto, tendo sido incorporada e avalizada pelos intelectuais paulistas. Não à toa esse livro, obra de estréia do intelectual, foi publicado pela Editora Revista do Brasil em 1920 – a esta altura pertencente a Monteiro Lobato (1882-1948) –, em reco- nhecimento do seu compromisso com a “saga” paulista e pela airmação da importância da cidade desde a fundação41.

Desse modo, pode-se airmar aqui que Morse retomava uma visão largamente consa- grada sobre a especiicidade paulista – a partir de Capistrano, Taunay, Ellis e vários outros42, formu-

lada com base nos mais antigos como Madre de Deus e Pedro Taques, nos registros dos próprios jesuítas e de alguns viajantes como Saint-Hilaire (1779-1853), Daniel Kidder (1815-1892) ou Pierre Denis (1883-1952)43 –, descrevendo física e psicologicamente a formação daquela região, daquela

vila e daquele grupo de povoadores que desde o princípio teriam deixado de lado qualquer “distin- ção de casta de sua terra natal” para declarar idelidade e comprometimento com seus líderes em razão da “experiência, valor e mérito pessoal”44. Líderes como o português João Ramalho, o único

-símile de 1907 (Rio de Janeiro: M. Orozco) pode ser consultada em Brasiliana USP: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/ handle/1918/00157600#page/5/mode/1up. Acesso 15/08/2011.

41 Morse não embarca na teoria racista de Vianna, valendo-se de trechos de seus estudos menos comprometidos com a superioridade racial meridional. Sobre Oliveira Vianna, cf. Ângela de Castro Gomes, “Oliveira Vianna: um sta- temaker na alameda São Boaventura”. In: Lilia Schwarcz e André Botelho (orgs.), Um enigma chamado Brasil. São Paulo:

Companhia das Letras, 2009, pp.144-59. Para uma análise da Revista do Brasil, onde a atuação de Lobato aparece, cf. Tania Regina de Luca, A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Ed Unesp, 1988.

42 Ainda entre os não paulistas, Seraim Leite (o jesuíta português que escreveu a monumental história da Companhia de Jesus no Brasil), Rocha Pombo, Oliveira Lima e Arthur Ramos. Vale lembrar que Taunay era paulista por ado- ção, tendo nascido em Santa Catarina ilho de pais cariocas, e que o baiano Theodoro Sampaio radicara-se em São Paulo tornando-se membro ativo da elite intelectual local. Entre os paulistas, destacam-se Roberto Simonsen (História Econômica do Brasil, 1500-1820 (1937)), e os artigos de Toledo Piza, dentre uma ininidade de artigos de outros autores publicados na RIHGSP.

43 Mesmo que estes tenham passado posteriormente por São Paulo, Morse se vale de suas impressões sobre a região. 44 From the start, the settlers of Sao Vicente and the planalto were beholden to no outside power. Caste distinctions of their homeland melted away. The fealty pledged to their leader was on the grounds of his experience, valor, and personal merit. (SPEY, p.6)

branco autorizado pela Coroa a se estabelecer no interior do continente desconhecido, que poucos anos antes após paciicar um grupo indígena e se casar com a ilha do cacique Tibiriçá fundara a povoação de Santo André da Borda do Campo. Sabemos a história, mas o interesse está em ver como ela vai ser recontada pela primeira vez pelo norte-americano e como posteriormente ele irá pinçar dali elementos e tirar novas conclusões que aparecem na sua história urbana de São Paulo, à guisa de “antecedentes” para compreendê-la melhor45.

Vale a pena recuperar trechos que evidenciam seu comprometimento com um traba- lho posterior, relativizando a idéia de um trabalho sobre a história da urbanização de São Paulo construído em “um ano de pesquisas e conversas”, imagem que o próprio Morse contribuiu para construir em seus depoimentos e entrevistas. Airmando que quando viera para São Paulo ele “não queria escrever uma tese, não queria entrar para o mundo acadêmico”, mas pretendia apenas “es- crever um livro”, o historiador diria posteriormente que para pensar os argumentos desse “livro” teria passado os primeiros meses em São Paulo “praticamente só falando com pessoas para tentar formar uma imagem do trabalho que faria”46. E nos Agradecimentos da edição de 1954 de fato

airmou: “se este estudo tem um ponto de vista, devo-o à riqueza de conhecimentos e ideias que meus amigos brasileiros me proporcionaram através de contatos não formais” (DCaM, s/p). É certo que o contato com os intelectuais locais foi fundamental para lhe fornecer “pontos de vista”. Mas para poder estabelecer tais contatos e fazer alorar essa espécie de ainidade que logo se mos- trou tão proveitosa, ou mais ainda, fundamental, para a realização de sua obra, o conhecimento da historiograia local adquirido no mestrado não deve ser menosprezado.

Quando lemos que “a escolha [do sítio] dos primeiros colonizadores teria importância para o futuro do Brasil”47 ou que a “sua [dos colonizadores de Santo André] isolada comunidade,

45 Sem entrar aqui na discussão do anacronismo, retomemos apenas as considerações de Fernando Novais para quem “o ‘pecado’ do anacronismo é inerente a todo discurso historiográico, mas nenhum recorte é mais suscetível à tentação anacrônica que o recorte nacional”, para alertar quanto ao tema de Morse, se não a construção da nação, a construção