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A EXPECTATIVA E A REALIZAÇÃO O terceiro capítulo, “Surge a cidade-organismo” (também dividido em duas seções: Período de

CAPÍTULO 1 DA EMPRESA BANDEIRANTE À CIDADE INDUSTRIAL A HISTÓRIA URBANA DE SÃO PAULO

3. FASES E MATRIZES DE UMA HISTÓRIA URBANA Seja na intenção de elaborar a história das cidades num determinado tempo histórico, seja na vontade

3.3. A EXPECTATIVA E A REALIZAÇÃO O terceiro capítulo, “Surge a cidade-organismo” (também dividido em duas seções: Período de

Expectativa e A Jovem Metrópole)146, tratava do desenvolvimento da cultura cafeeira em São Paulo,

levando a vida intelectual a uma “era do positivismo”. Esse o momento que ganhará mais destaque em toda a historiograia posterior sobre São Paulo, por pretender nessa nova cultura agroexporta- dora a inlexão deinitiva nos rumos da cidade – e que valorizou portanto muito mais a presença estrangeira, a partir do advento da imigração como fator de modernização147. Morse, que via o

ponto de inlexão no momento anterior, ressaltava desta nova fase um certo arrivismo notado na população forasteira que se estabelecia na cidade como a dar o tom (ainda que não desprezasse a importância do estrangeiro como elemento dinamizador). Ecletismo na arquitetura, parnasianismo na literatura, positivismo na ilosoia, uma série de “estilos postiços” que pareciam agregar-se a uma comunidade ainda pouco orgânica cuja cidade rapidamente se transformaria na “capital do café”. Ou, como disse outro historiador em relação a esse período na Europa, “o historicismo na cultura surgi[a] como um modo de enfrentar a modernização invocando os recursos do passado”148, am-

pliando nossa compreensão sobre àquele momento ao alertar para os motivos, digamos, internos daquele dispositivo passadista.

A compreensão de certo modo condenatória de um período ainda informe da história paulista – comparada à metrópole dos anos 1950 – estava de par com uma fração da elite paulista que

os principais nomes da elite do país desde então, e muitos dos principais intelectuais brasileiros, o que tem impacto não apenas em São Paulo mas na constituição do país. O interessante é que Bruno constrói sua leitura citando o artigo Raízes oitocentistas... de Morse. Nota-se assim que a disjunção é a Academia, e não os estrangeiros que chegam com o café. É a cidade letrada, mais que a cidade cosmopolita. Devo o alerta à Paulo Garcez.

146 O terceiro capítulo “Surge a cidade-organismo” na edição de 1970 (desde a de 1958), passou a ser a Terceira parte, reno- meada de “Crescimento da cidade”, com os agora capítulos (antes seções), Autocensura e novos ídolos; Uma nova retórica e a estrada de ferro; A época do positivismo; Expansão econômica e imigrantes; Expansão física; A nova coniguração da vida. 147 Essa a conclusão por exemplo de Wilson Cano em Raízes da concentração industrial em São Paulo, São Paulo: Difel, 1977, livro que faz parte de uma bibliograia muito utilizada em São Paulo. O volume São Paulo, os estrangeiros e a constru- ção da cidade busca em seus diversos artigos discutir com essa bibliograia clássica apresentando novas hipóteses sobre o lugar dos estrangeiros na “construção da cidade” (Cf. Lanna et al. (Orgs.), op. cit., 2010).

se via naquele momento se não em desagregação, ao menos em disputa com os forasteiros, a despeito de todas as acomodações e assimilações por meio de sociedades e matrimônios, que foi a forma que esse grupo soube se recolocar na cena, como bem mostrou Alcântara Machado (o ilho), não sem ironia, no livro do inal da década de 1920 dedicado aos “novos mamelucos” (justamente por ele, paulista dos quatro costados)149. Pois ainda na década de 1950 essa elite se ressentia da perda de hege-

monia, explicitada na volta ao passado que a efeméride do IV Centenário desencadeou no mercado editorial, ou na construção do Monumento às Bandeiras de Brecheret para fazer parte do conjunto do Ibirapuera, ao lado da Espiral moderna de Oscar Niemeyer 150. Como se sabe, com a tomada de poder

por Getúlio Vargas e a derrota paulista em 1932, os paulistas buscaram encontrar o “seu” novo lugar na coniguração nacional transformando-se na burguesia industrial nacional, revendo inclusive o sig- niicado do mito bandeirante para estendê-lo aos “novos ricos” imigrantes, muitos deles “capitães da indústria” paulista. Foi portanto nesse clima de disputa por uma imagem de São Paulo que Morse des- creveu e analisou o papel pregresso da cultura cafeeira, que além de garantir a hegemonia econômica da província também lhe dera as bases para a constituição de uma identidade urbana, com todas as implicações: ferrovias, im da escravidão, substituição de mão-de-obra, imigração, formação de um mercado consumidor, novas demandas, assimilação do imigrante, surgimento dos setores médios, etc. Contudo, o historiador norte-americano daria ênfase menos às determinações econô- micas, vale insistir, que à transformação do ethos paulista operada ali. É certo que um memorialista também não enfatizaria injunções econômicas, pois narrar o cotidiano é o que importava nesse tipo de texto, mas o que Morse fez foi mostrar que a cidade começava a estar intelectualmente preparada

149 “_ Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Tereza para o ilho você aponte o olho da rua para ele, compreendeu?/_ Já sei, mulher, já sei./ /Mas era cousa muito diversa./[...]/O conselheiro possuía uns terre- nos em São Caetano. Cousas de herança. Não lhe davam renda alguma. O cav. uff. tinha a sua fábrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O cav. uff. com o capital. Arruavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, garantidíssimo./[...]/A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois”. O trecho faz parte do conto “A sociedade” publicado por Alcântara Machado em Brás Bixiga e Barra Funda: notícias de São Paulo em 1927, relatando a união entre “Teresa Rita, ilha do Conselheiro José Bonifácio de Matos Arruda, com o jovem galante “Adriano Melli, ilho do cav. uff. Salvatore Melli, após este último renovar sua proposta de “sociedade”. (Cf. Alcântara Machado, Brás Bixiga e Barra Funda: notícias de São Paulo [1927]. São Paulo: IOESP, ed. fac-símile, 1983, pp.67-77).

150 Sobre o signiicado dos monumentos do Ibirapuera e as disputas para a construção do próprio conjunto, cf. Paulo Garcez, op. cit., 1998-1999 e Ana Claudia Barone, “A oposição aos pavilhões do parque Ibirapuera (1950-1954)”, Anais do Museu Paulista, História e Cultura Material, São Paulo, v.17, n. 2, jul.-dez., 2009, pp. 295-316. Garcez aponta para uma superação do mito de origem e o artigo de Ana Barone mostra “o moderno” ainda em disputa com os adeptos de um ecletismo de fundo acadêmico que não havia deixado de ser presente na cidade naqueles anos 1950.

para suportar e levar à frente todas as mudanças implicadas nessa nova cultura, invertendo uma interpretação que via a cidade como relexo das transformações econômicas – e, mais, aprendendo dos próprios intelectuais modernistas a possibilidade de pensar a transformação do ethos paulista que ele sabia caminhar para o mundo moderno. Chamo atenção para isso para mostrar como os argumentos de Morse se foram construindo na esteira daqueles intelectuais locais em busca do seu lugar no mundo, plasmando ideias, intenções e discursos que se ainavam com a intenção de com- preender a cidade em seus próprios termos.

A cidade parecia “preparar-se” para encarar as transformações, e foi nesse sentido que Morse destacou a gestão de João Teodoro (1828-1878) na presidência da Província. Desde um artigo de 1936 do geógrafo Eurípedes Simões Paula (1910-1977), essa gestão havia de se consagrar como a “segunda fundação de São Paulo”, por se reconhecer então os primeiros impulsos cons- cientes por parte do Estado para a transformação de um meio urbano ainda aquém de um futuro entrevisto151. Sem citar tal artigo, Morse chegava talvez por outras vias a essa mesma conclusão. A

transformação da capital em nó do recém implantado sistema ferroviário permitiu o avanço das fronteiras agrícolas, sobretudo do café, possibilitando à própria capital sediar atividades urbanas que a cultura cafeeira pressupunha. O norte-americano ao mesmo tempo destacava o papel do intermediário, dando ao estrangeiro urbano o papel de motor dessa transformação. Valendo-se da imprensa, recuperava sua presença, fosse por meio dos anúncios de serviços, fosse nos empreen- dimentos imobiliários, sublinhando a importância da transformação do valor da terra urbana no sentido do desenvolvimento da cidade. Chácaras eram loteadas, freguesias eram incorporadas à cidade, ora especializando-se em bairros fabris, ora em bairros destinados a nova elite. Jules Martin, Frederico Glette, Victor Nothmann, Martinho Buchard, “os estrangeiros, como era de esperar, desempenharam um grande papel na alta dos terrenos” (DCaM, p.197), airmava Morse, indicando

151 Eurípedes Simões Paula, “Contribuição monográica para o estudo da segunda fundação de São Paulo” (1936), republicado em Revista de História, São Paulo, n. 17, 1954. O geógrafo Pasquale Petrone, em 1958, defenderia uma “terceira fundação”: “Dentro, ainda, da primeira década do século XX, registrou-se o que poderíamos denominar de terceira fundação da cidade, em virtude de razões idênticas às que levaram Simões de Paula a referir-se a uma Segunda ‘fundação’. Na realidade, sob a administração dos prefeitos Antônio Prado e Raimundo Duprat, passou a cidade por tais transformações urbanísticas e recebeu tais melhoramentos, que somos levados a compará-los aos realizados durante a Presidência de João Teodoro. Tais fatos justiicam e conirmam, por isso mesmo, as referências lisonjeiras feitas pelos estrangeiros que nos visitaram, por essa época.” Cf. Pasquale Petrone. “São Paulo no século XX”, Aroldo Azevedo (org.). A cidade de São Paulo. Volume II: A evolução urbana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958,

FIG.11 Novos bairros para os trabalhadores: vilas operárias (1913) para substituir os cortiços dos bairros centrais e “Ter- renos a prestações” seguindo a linha do bonde, para uma nascente classe média (anúncio no Correio Paulistano, 1923) FIG.10 Novos bairros para as classes altas no vetor sudoeste: Rua Barão de Itapetininga no loteamento do Morro do Chá, (cartão postal de Guilherme Gaensly, c. 1900) e Higienópolis, empreendimento imobiliário de Victor Nothmann e Martinho Burchard (folheto, 1893), levado adiante após o “sucesso” dos Campos Elíseos

que a área residencial da classe superior se estenderia “ao sul e ao oeste, na direção de Santo Amaro, por causa da vista e do ar mais seco que os terrenos em elevação proporcionavam”, destacando o ideal de salubridade que surgia, fundamental em tempos de epidemias e teorias sanitaristas. Os pobres, por sua vez, foram contemplados no mercado de terras com terrenos em bairros menos centrais, levados a ocupar as várzeas alagadiças a partir da formação de uma faixa industrial deter- minada pela localização das vias férreas a leste e ao norte da colina, formando um amplo arco, “do qual muitos terrenos já era indesejáveis por serem baixos e úmidos. Neste arco, principalmente no Brás e na Mooca, foi morar a maioria dos trabalhadores.” (DCaM, p. 198)152.

Para o autor, num certo sentido a cidade começava a se transformar em metrópole já naqueles anos, pois era possível de se notar nesse desenvolvimento as características, mesmo que incipientes, que a iriam deinir posteriormente como tal: a industrialização, a inluência sobre uma região para além de seus limites físicos, a expansão da mancha urbana, e até mesmo o início de uma verticalização na área central apontando a necessidade de se adensar o centro153. Para

indicar o que signiicou “a urbanização em termos de experiência, comportamento e valores do cidadão”, Morse recorria nesse ponto não à literatura – talvez porque fosse o tempo do parna- sianismo –, mas à arquitetura, que “serve bem como índice sociológico, cultural e econômico”, tomando-a como ponto de partida para destrinchar a transformação da cidade (DCaM, p.201). Valia-se outra vez dos argumentos dos arquitetos modernos na compreensão das transformações materiais, voltando a ressaltar a “beleza estrutural” que certas construções de taipa teriam tido na cidade, especialmente os sobrados das elites e os edifícios públicos, justa- mente pela própria condição do material que havia imposto uma “solução rigidamente geomé- trica” levando à “honestidade funcional” que as liberava do “engenho estético de um arquiteto especializado”. Era de novo o elogio aos velhos construtores portugueses que está na base da historiograia da arquitetura moderna brasileira. Como airmou certa vez Roberto Schwarz, “nós brasileiros gostamos de nos contrapor aos portugueses, mas não ao legado colonial” – frase que sem ter essa intenção ajuda a deinir a apreciação dos arquitetos modernistas sobre o passado, quando nos anos 1940 passaram a considerar “parte direta da nação tudo o que tenha ocorrido

152 Tanto Monbeig como Caio Prado haviam indicado esse caminho. Cf. Pierre Monbeig, La Croissance de la Ville de São Paulo. Grenoble: Institut et Revue de Geographie Alpine, 1953 e Prado, op. cit., [1936], 2004.

FIG.12 Estilos “postiços” substituem a antiga “beleza” colonial: a demolição da Igreja da Sé (1912); um palacete “pseu- do-colonial” de Ricardo Severo (1926) e o “pretencioso, sem nobreza, de imitação” Teatro Municipal (inaugurado em 1911), do escritório de Ramos de Azevedo

no território”154, conigurando assim uma vanguarda algo distinta das vanguardas europeias155.

Morse incorporou essa visão ao airmar que quando a partir de 1870 a taipa começara a ser con- siderada “feia e rústica” e a “velha rótula encontrou seu im”, a cidade necessariamente já mudara de feição, pois os artíices estrangeiros, com suas técnicas chamadas ‘mais civilizadas’” se asse- nhoravam “do ramo das construções”. Era o tempo dos italianos, que modiicavam a paisagem construída – substituindo a taipa por tijolos, revestindo os exteriores de estuque, acrescentando “cornijas e frisos sem função e sem beleza” (DCaM, pp.201-22).

O autor mostrava que “a estrutura fundamental e a coniguração social que domi- navam a taipa não se modiicaram tão rapidamente”, já que mesmo no Código de 1886 ainda se percebia a “persistência de uma mentalidade de sobrado rígida e destituída de arte”. E de modo a comprovar essa airmação, recuperava as atividades de Ricardo Severo (1869-1940) e sua arquite- tura “pseudo-colonial”, bem como a de Ramos de Azevedo (1851-1928), dono de um “estilo” – as aspas são do próprio Morse – “pretencioso, sem nobreza, de imitação e melhor descrito como ecle- tismo promíscuo com tendências à Renascença” (DCaM, pp.203-5). O historiador dava espaço as críticas à arquitetura eclética, compartilhando juízos que até então haviam sido veiculados sobretu- do na imprensa, e que mais tarde formataram uma história da arquitetura brasileira156. Essa espécie

de autonomia estética que a arquitetura moderna brasileira logrou construir parecia vir de encontro aos anseios de um intelectual que buscava ele também construir um pensamento autônomo em seu olhar sobre a urbanização. Sua identiicação completa com o discurso modernista de condenação ao ecletismo, talvez já previamente preparada pela divulgação da arquitetura brasileira nos Estados Unidos, tinha a ver com esse desejo de construção de um olhar particular para a cidade, a partir da sua própria tradição e afastada dos modelos centrais157.

154 Schwarz, op. cit., 1999, p.49.

155 A respeito desta particularidade das vanguardas latino-americanas, que buscavam construir um passado e uma linguagem nacional na ação de renovação que propunham, cf. Adrián Gorelik, Das vanguardas à Brasília: cultura urbana e arquitetura na América Latina. (Trad. Maria Antonieta Pereira). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.

156 Se intelectuais como Mario de Andrade ou Monteiro Lobato criticavam o ecletismo na imprensa, são os artigos de Lucio Costa, “Razões da nova arquitetura” (1934) e “Documentação necessária” (1937), publicados na Revista do Sphan que são tomados como os textos deinidores do caminho da crítica moderna desde então, numa primeira síntese dessa explicação historiográica. A esse respeito, cf. Carlos Martins, “Arquitetura e Estado no Brasil: elementos para uma investigação sobre a constituição do discurso moderno no Brasil, a obra de Lucio Costa, 1924/1952”. Dissertação (Mestrado), Departamento de História, FFLCH USP, 1987.

157 Ainda que não se possa esquecer que a crítica ao ecletismo e ao século 19 fossem o tópico contra o qual a arqui- tetura moderna internacional, desde Loos e do primeiro Gideon em diante, se opuseram. Cf. Willian Curtis, Arquitetura

Da crítica ao ecletismo na arquitetura, Morse ampliava o olhar para a crítica à uma so- ciedade postiça que se instaurava no Segundo Império, sob o comando de Pedro II (1825-1891), quem – na opinião do escritor português Ramalho Ortigão (1836-1915) em carta à Eduardo Prado (1860-1901) citada pelo norte-americano – tinha um temperamento “absolutamente ines- tético, fundamentalmente antiartístico, rebelde a toda noção de bom-gosto”. Mas tal sociedade suportava exceções, e uma delas era a própria mãe do destinatário da missiva, D. Veridiana Prado (1825-1910), cujo salão teria sido “uma ilha de reinamento” em meio a “heterogeneidade das importações e modismos indiscriminados” (DCaM, pp. 205-6). Morse, assumindo mais uma vez a perspectiva dos paulistas, desdobrava a análise da vida na cidade da arquitetura para os modos de vida, para em seguida passar às facilidades de transporte que as estradas de ferro anuncia- vam, o que acelerara a transformação da própria paisagem, ao encurtar distâncias e facilitar as importações de bens e de proissionais. Buscava desse modo compor o ambiente em que tais transformações se davam e deinir seus protagonistas.

Sua análise não se concentrava apenas nos modos de vida das elites, já que pretendia traçar um panorama da vida urbana em geral. O autor deu atenção às nascentes classes médias e também a “classe inferior”, descrevendo as choças de pau-a-pique e os cortiços que surgiam na cidade em crescimento. Suas descrições pretendiam recompor a vida do habitante destes corti- ços, na sua “sociabilidade de quiosques” (DCaM, pp. 210-12), para entender a mentalidade que se

Moderna desde 1900 (Trad. Alexandre Salvaterra). Porto Alegre: Bookman, 2008, pp.53-72.

FIG.13 Contrastes acentuados na cidade que se moderniza: palacete de Veridiana Prado em Higienópolis (fotograia de Guilherme Gaensly transformada em cartão-postal, c. 1900) e cortiço no Bexiga, início do século 20

formava. Como esse período foi profícuo em depoimentos de viajantes e memorialistas, que es- pantados com a modiicação da cidade em tão curto espaço de tempo, deixavam suas impressões em relatos de diversas naturezas, Morse pôde mobilizá-los para construir um retrato da transfor- mação urbana, variada e dispersiva, que ele contrapunha à falta “de um esquema de referências intrínseco, de uma ‘perspectiva urbana’ singular e integrada a que [os habitantes] se referissem para censura ou para aprovação dos padrões de comportamento, morais ou imorais”. Com isso, concluiria que a despeito das ocupações culturais serem as mais diversas, “a sua expressão cul- tural era pobre e sem relação com a vida cujo sentido ainda não se aprendera.” (DCaM, p. 214). Portanto, era a crítica a um momento visto como quase extemporâneo, pouco orgânico, que Morse fazia à cidade justamente no auge da produção cafeeira e do enriquecimento da sua socie- dade, de novo, de par com aqueles intelectuais, fossem eles arquitetos, fossem críticos literários, que viam o período como um “interregno” da formação da identidade nacional – imagem criada pelos modernistas da década de 1920 que persistia ainda nos 1940 e 50.

O quarto capítulo, “A metrópole moderna”158

, apresentava a cidade já transformada, tomando como ponto de partida a cultura modernista que ali pudera lorescer, de novo, justamen- te porque as características que alimentavam a produção de vanguarda davam suporte para que a cidade vivesse a industrialização, o cosmopolitismo, a intensa mobilidade social, o nascimento de um proletariado urbano, etc. Era a “idade moderna” de São Paulo que Nicolau Sevcenko, quatro décadas depois em seu Orfeu extático na metrópole mostrava que não podia ser facilmente deinida:

São Paulo não era uma cidade nem de negros, nem de mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem americana nem europeia, nem nativa; nem era industrial, apesar do volume crescente das fábricas, nem entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café; não era tropical, nem sub-tropical, não era ainda moderna, mas já não tinha mais passado; essa cidade que brotou de súbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo depois da chuva, era um

enigma para os seus próprios habitantes, perplexos, tentando entendê-la como podiam, enquanto

lutavam para não serem devorados159.

Morse havia anunciado a cidade em sentido semelhante na década de 1950:

158 Que passa a ser a quarta parte nas edições posteriores, e recebe o nome “A idade moderna”, contando com os capítulos (antes seções): O temperamento da metrópole; Industrialismo; A metrópole como “polis”; Modernismo; Anatomia da metrópole; ganhando na edição de 1970 o capítulo Sociedade, Cultura: Reconsideração de alguns temas (1968), cujas seções são: 1. A cidade no espaço; 2. A sociedade urbana; 3. A personalidade cultural de São Paulo. 159 Nicolau Sevcenko, Orfeu Extático na Metrópole: São Pulo nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras,

Atingindo o século 20, chegamos a uma cidade em luxo, que apenas começa a deinir-se, uma ci-

dade cujo passado não é mais sentido e cujo presente e futuro imediato adquirem uma premência que parece aguda e tangível (DCaM, p. 216, grifos meus).

E na versão publicada em 1970, alterara parcialmente a frase:

No limiar do século 19 deparamos com uma cidade em luxo, uma cidade que não apenas começa a