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4.3.1 Descrição

A terceira categoria estudada refere-se às estratégias individuais ou coletivas de mediação do sofrimento que os trabalhadores utilizaram frente às dificuldades vivenciadas no contexto de trabalho análogo à escravidão. Serão transcritas as falas

que realçam as formas que os trabalhadores encontraram para enfrentar ou atenuar o sofrimento patogênico.

Como encontravam-se distante da cidade e com sua liberdade de locomoção restringida pela dificuldade de acesso ao local de trabalho, na maioria das vezes não tinham em quem buscar apoio. Logo, a postura adotada era de conformismo, submissão e servidão. A única solução que visualizavam era aguardar o pagamento e aguentar até que chegasse o momento de poder sair daquela situação, o que não acontecia, em grande parte.

E.2. É aguenta porque num tinha o qui fazê.

E.3. Empurrando (choro e pausa), du jeito que dava.

E.4. Eu enfrentava com humildade. A estratégia minha era recebe um dinhero pra sair, mas nunca recebia. Então essa estratégia era perdida. E.5. Aí cê tem que ficar quieto. Então a estratégia era esperar, até você receber pra poder sair dali. Pra sair tranquilo.

Adotavam uma atitude passiva diante das situações de conflito, ou esperavam de uma divindade a solução dos problemas. As estratégias utilizadas para conseguir suportar ou esquecer os sofrimentos iam desde o refúgio nas bebidas e cigarro até na fé.

E.3. Quando saia pra trabaiar era muito difícil. Às vezes parava pra fazer um cigarro.

E.1. Pidindo força pra Deus né! Só Deus pra da força. Eu me refugiava na fé em Deus né! Deus nos ampara.

E.4. Bibia cachaça, pra esquecer. Às vezes jogava, às vezes num jogava. Uma bebidazinha, uma cervejinha mais os amigo, pra esquecer a metade dos poblema.

Os entrevistados que atuavam no serviço da pedreira relataram que buscavam compensar o sofrimento com algumas distrações e lazer que o próprio local lhes proporcionava naturalmente, pois moravam em um rancho próximo à pedreira e perto dele havia uma mata e um rio.

Segundo relato de um dos trabalhadores, o qual permaneceu doze anos nessa condição, os momentos em que não estavam trabalhando eram sossegados e

bons, ou seja, o prazer era vivenciado fora do horário de trabalho e não estava relacionado à atividade laboral em si.

E.3. Nos momentos que não tava trabaiando ia caçar e brincar com os cachorros. Também ia beber para espairecer um pouco e preparava um cigarro. Nessas horas era sossegado, era bom.

E.3. Andava no mato caçando baurú, caçando aqueles cajuzinho do mato, andando no mato, ia passear com os cachorro, às vezes os cachorro matava um tatu, nós pegava.

Percebe-se que eles não dispunham de estratégias coletivas para lidar com o sofrimento. As estratégias utilizadas, na maioria das vezes, evidenciaram o uso da individualidade subjetiva do silêncio para sobreviver às disputas e impasses que aconteciam entre aqueles que eram a favor do “gato” e os que eram contrários.

E.5. Ficava às vezis quieto, calado, tinha que segurar a onda. Porque se começasse a conversa muito também não saía.

E.4. Eu vou te explicar, era o seguinte, às vez tem trezentas pessoa aqui trabaiano. Se cem quer fazer uma outra coisa, os duzento é a favor do gato.

A estratégia utilizada pelo trabalhador do corte de cana-de-açúcar para receber os pagamentos que lhe eram devidos, consistia em permanecer inativo, em greve, até acontecer o ressarcimento de seus créditos. Como trata-se de uma fala individualizada não se pode inferir que tal estratégia era utilizada coletivamente.

E.5. Inda tem que passar cinco, seis dia parado, fazendo greve pra receber.

4.3.2 Discussão

Dejours (2011a) afirma que as estratégias defensivas são um meio utilizado pelo trabalhador para proteger-se do sofrimento e poder continuar a trabalhar. Podem ser elaboradas individualmente ou coletivamente.

Para lidar com as vivências de sofrimento, os sujeitos protagonistas desta pesquisa lançaram mão de estratégias de mediação, principalmente defensivas, para propiciar a manutenção do aparelho psíquico. Não se observou o uso de mobilização subjetiva individual ou coletiva.

Não há dúvidas de que os contextos de trabalho influenciaram nas estratégias que foram adotadas e que prevaleceram, entre os trabalhadores, para lidar com as contradições suscitadas pela precarização do trabalho. As estratégias têm como objetivo minimizar a percepção do sofrimento oferecendo suporte, ou seja, proteção psíquica para o sujeito.

Pode-se afirmar que as estratégias de defesa são positivas à medida que protegem o sujeito contra o sofrimento causado pelas situações geradoras de conflito e mantêm o equilíbrio psíquico, evitando o adoecimento. De acordo com os autores, as estratégias defensivas possibilitam um frágil equilíbrio que, embora precário, evita que ocorram as descompensações (DEJOURS; BÈGUE apud MORAES, 2013, p. 154). Em contrapartida, a utilização dessas defesas pode ser negativa quando provoca uma falsa estabilidade psíquica, alienando e imobilizando o sujeito, levando-o a não buscar mudanças no contexto de trabalho.

Os contextos pesquisados são permeados pela precariedade das condições de trabalho, pelo cerceamento da liberdade, pela ausência de pagamentos e pelas violações de direitos, inabilitando os indivíduos de evitar o sofrimento e, consequentemente, o adoecimento.

Uma vez que as condições de trabalho que agravam o sofrimento não são alteradas, corre-se o risco de conduzir à alienação, favorecendo o desencadeamento de uma crise de identidade e um quadro de descompensações, o que sinaliza o esgotamento da eficácia da estratégia de defesa (MORAES, 2013, p. 156). Assim, os trabalhadores tendem à paralisia ante as possibilidades de mudança, restando-lhes a utilização de estratégias defensivas, em especial a negação, a passividade e o individualismo.

A negação refere-se ao não reconhecimento do próprio sofrimento e do sofrimento alheio, e pode ser sinalizada pela presença de desconfiança, de isolamento e da banalização das dificuldades da organização de trabalho. Nega-se o fato de que a organização é a causa do sofrimento, responsabilizando a si mesmo pelos problemas e até mesmo pelas dívidas contraídas.

Dejours (2011c) ressalta os modos como as estratégias defensivas podem ser exploradas pela organização sendo, inicialmente, estruturadas como defesas de proteção, posteriormente, de adaptação e, por fim, como defesas baseadas na exploração. As defesas de proteção fundamentam-se na racionalização e consistem

em modos de pensar, sentir e agir compensatórios, mas tendem a perder sua eficácia quando as adversidades do trabalho se intensificam.

Pôde-se observar que os trabalhadores buscavam equilíbrio em atividades fora do trabalho, para não refletirem a respeito do sofrimento advindo de sua prática laboral. Buscavam “válvulas de escape” como caçar, brincar com animais, confeccionar e fumar cigarros, jogar e ingerir bebidas alcoólicas, além de cultivar fé e esperança em alguma divindade que, em seu imaginário, seria capaz de resgatá- los das mãos de seus algozes.

As defesas de adaptação e de exploração, por sua vez, baseiam-se na negação do sofrimento e na supressão dos próprios desejos em benefício dos objetivos da organização. Nesses casos, as vítimas assumem como suas as metas de produção do explorador, o que conduz à alienação.

Estudos empíricos desenvolvidos por Mendes (1996) e Mendes e Abrahão (1996) investigando engenheiros de uma área técnica de telecomunicações, identificaram três tipos de defesas: racionalização, individualismo e passividade, que, respectivamente, correspondem às defesas de proteção, adaptação e exploração (MENDES, 2007, p. 39).

As estratégias de isolamento e individuação, características da negação, aparecem na fala de um entrevistado quando ele declara que ficava “na dele” para conseguir sobreviver e sair daquela situação. A ausência de solidariedade e cooperação dos pares torna mais difícil suportar os constrangimentos impostos pela organização.

E.5. Ficava às vezis quieto, calado, tinha que resistir pra segurar a onda e conseguir sair.

Estudos evidenciam que o individualismo pode ser resultante da falta de cooperação e precarização das relações psicoafetivas com o coletivo de trabalho, conforme Jayet, Mendes e Abrahão e Dejours (apud FERREIRA, 2007, p. 132).

Para Dejours (apud FERREIRA, 2007, p. 132), nessa estratégia “cada um deve se preocupar apenas em resistir. Quanto ao sofrimento alheio, não se pode fazer nada. Negando o sofrimento alheio e calando o seu”. O individualismo, a depender da intensidade, leva à estratégia defensiva do silêncio e da resignação, podendo alcançar dimensão patológica.

Na análise feita pelo viés da Psicodinâmica do Trabalho, nota-se que a degradação e a falta de estratégias coletivas de defesa constituem perda considerável de recursos para a saúde dos trabalhadores. Nos contextos investigados, a mobilização coletiva é silenciada pelo medo e pela violência. Outro ponto verificado é que tanto na pedreira quanto nos canaviais, a produção era exigida pelos aliciadores em escalas cada vez maiores, conduzindo os trabalhadores a um processo de alienação, sendo tal estratégia explorada nesses ambientes.

E.3. Às vezes enchia um caminhão de quinze em quinze dias e às vezes até dois. O serviço lá e trabaioso.

E.4. A gente cortava cana por tonelada. Se a tonelada era quato real e noventa, aí eles pesava a cana e a gente ia trabaiá. Quanto mais a gente ganhasse, ele ia baixar o preço. Se era dez centavo o metro, mudava pra cinco. E a produção da gente era quato tonelada o dia intero.

As defesas de adaptação e exploração podem esgotar-se mais rapidamente pelo fato de exigirem do trabalhador um investimento físico e psíquico além de sua capacidade. Ocorre um vínculo entre o funcionamento perverso da organização e o comportamento neurótico que eles passam a assumir perante as exigências descabidas por resultados (MENDES, 2007, p. 39).

Segundo a autora, a saída dessa armadilha reside na (re)apropriação, por parte dos cativos, do próprio desejo, resgatando assim um modo de pensar e agir criticamente a respeito da organização na qual estão inseridos.

Uma alternativa seria constituir espaços de discussão onde seja possível propor soluções coletivamente para as contradições inerentes ao trabalho. Porém, os momentos destinados ao coletivo são, na maioria das vezes, consumidos pelo cansaço da labuta diária.

A estratégia de mobilização subjetiva, caracterizada pelo modo de agir coletivo dos trabalhadores, tem como objetivo transformar o contexto de produção e reduzir o custo humano. Essa estratégia torna-se, porém, inoperante e ineficiente visto que os trabalhadores em condições de escravidão têm pouca ou nenhuma participação coletiva, engajamento político ou associações e sindicatos. A visibilidade de sua condição e sua representatividade só existe de fato quando há denúncias que conduzem ao resgate.

A mobilização subjetiva viabiliza a dinâmica do reconhecimento, que é definida por Dejours (apud MENDES, 2007, p. 43) como um modo específico de retribuição simbólica dada ao sujeito por sua contribuição para os processos da organização, pelo engajamento de sua subjetividade e inteligência.

No caso desta pesquisa, não foi observado o uso da estratégia da mobilização s ubjetiva, tampouco da dinâmica de reconhecimento. Não havia nenhuma retribuição simbólica e sim a constante violação dos direitos e da dignidade da pessoa humana.

As marcas da escravidão refletem a espera dos trabalhadores por uma entidade exterior, como Deus ou o Estado, que possa libertá-los de tal situação. Constata-se a ausência de engajamento e de mobilização coletiva dos entrevistados, que não se veem capazes de romper com as estruturas da opressão, da violência e da exclusão social que alimentam o ciclo do trabalho escravo contemporâneo.

Enfim, as estratégias de mediação do sofrimento presentes neste estudo foram, principalmente, as defensivas de adaptação e exploração com modos de agir que buscam compensar as dificuldades deste tipo de trabalho e, ainda, o conformismo frente à precariedade do trabalho análogo ao de escravo. Assim sendo, o modelo teórico-metodológico de Dejours mostrou-se eficaz também para investigar a mediação do sofrimento em trabalhadores nestas circunstâncias, não havendo grandes diferenças pelo fato de terem vivenciado uma condição tão peculiar.

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