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4.1 CATEGORIA: Organização do Trabalho Escravo

4.1.2 Discussão

“Os peões aliciados fora são transportados em avião, barco ou pau-de-arara para o local da derrubada. Ao chegar, a maioria recebe a comunicação de que terão que pagar os gastos de viagem, inclusive transporte. E já de início têm que fazer suprimento de alimentos e ferramentas nos armazéns da fazenda, a preços muito elevados. Para os peões não há moradia. Logo que chegam, são levados para a mata, para a zona da derrubada onde têm que construir, como puderem, um barracão para se agasalhar, tendo que providenciar sua própria alimentação. As condições de trabalho são as mais precárias possíveis. (...) Os pagamentos são efetuados ao bel-prazer das empresas. Muitas vezes usasse o esquema de não pagar, ou pagar só com vales, ou só no fim de todo o trabalho realizado, para poder reter os peões, já que a mão de obra é escassa. (...) O peão, depois de suportar este tipo de tratamento, perde sua personalidade. (...) Vive, sem sentir que está em condições infra-humana. Peão já ganhou conotação depreciativa por parte do povo das vilas, como sendo pessoa sem direito e sem responsabilidade. Os fazendeiros mesmo consideram o peão como raça inferior, com o único dever de servir a eles, os “desbravadores”. Nada fazem pela promoção humana dessa gente. O peão não tem direito à terra, à cultura, à assistência, à família, a nada.”

(Trecho da carta pastoral “Uma Igreja na Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”, de Dom Pedro Casaldáliga, em 1971)

O trecho acima retrata o ciclo do trabalho escravo que ainda persiste em solo brasileiro, em pleno século XXI. A diferença do contexto da época para o dos dias atuais é que desde 1995 o governo federal reconheceu publicamente a existência de trabalho escravo em território nacional e, só a partir de então, as ações de combate e prevenção tornaram-se realidade no país.

Os resultados obtidos na análise das entrevistas revelam que o grupo de trabalhadores vivenciou um modelo atípico e peculiar de organização do trabalho. Eles foram resgatados sob a alegação de estarem trabalhando em condições análogas à escravidão, que configura crime para nosso sistema jurídico.

Esse modelo determina hierarquias de dominação e submissão baseadas na opressão e na injustiça, as quais se manifestam por meio da força física e da coação psíquica e moral, promovendo a alienação do trabalhador garantindo, assim, a reprodução do sistema de capital e a manutenção da falta de consciência em relação à própria exploração.

Não se pode desconsiderar o legado de um passado marcado pelo contexto de escravidão e relações de exploração da pessoa humana. Daí decorre que a alienação invade o mundo do trabalho não apenas no aspecto econômico, como também no político e no psicossocial (FARIA, 2013, p. 493).

Diversas pesquisas em Psicodinâmica do Trabalho revelam que o processo de Banalização do Mal (expressão cunhada por Hannah Arent e revisitada por Dejours (2006), sob o título de A Banalização da Injustiça Social) não é inédito nem excepcional nos contextos de trabalho desde o advento do sistema capitalista de produção.

O fato novo revelado por Dejours é a banalização dos atos injustos, intensificada por um sistema de trabalho cada vez mais precarizado, capaz de aplacar a consciência moral diante do sofrimento assistido, dando origem à tolerância ao mal (MERLO; TRAESEL; BAIERLE, 2013, p. 72). Essa mentalidade é marcadamente observada no contexto de trabalho em condições análogas à de escravo, no qual o trabalhador é aprisionado sem o reconhecimento de seus direitos mínimos.

Segundo o mesmo autor, atualmente é possível encontrar vários exemplos de banalização do mal nas relações de trabalho, como a intensificação do trabalho, a rotinização dos processos, os salários baixos, o assédio moral, entre outros. A

essência da banalização do mal reside na perda do pensamento crítico e na incapacidade de questionar as realidades vivenciadas.

Devido a isso, o trabalho em condições análogas à escravidão encontra espaço, nos contextos rural e urbano, proliferando uma cultura de exclusão social e política alimentada pela lógica do sistema neoliberal, que visa exclusivamente o lucro e o poder econômico em detrimento da dignidade da pessoa humana.

A configuração da organização de trabalho pesquisada denota que o grupo não vivencia uma organização prescrita de trabalho - onde há modelos na realização das tarefas, horários, contratos, regras claras e direitos - mas sim a vivência dura de um trabalho real e precarizado, no qual não há contrato formal, carga horária definida, controle de pagamentos, liberdade de locomoção ou sequer de expressão.

No que tange ao conteúdo das tarefas, as características observadas delineiam uma organização de trabalho marcada pela exigência de uma produtividade desumana e pelas condições degradantes na execução das atividades. É atribuído um ritmo exaustivo de trabalho, o que aumenta o índice de acidentes devido às múltiplas exigências da tarefa, relata um dos sujeitos que atuava no corte de cana-de-açúcar.

E.5. E hora de almoço não tinha horário, era a hora que o almoço chegava. Comeu, volta pra trabaiar. Num tinha negócio de não trabaiar. Se não tivesse cana pra cortá eles ia levá nóis pra otra coisa.

Segundo estudos de Dejours (apud MONTEIRO; JACOBY, 2013, p.406), a imposição de ritmos acelerados de produção e as múltiplas exigências do trabalho influenciam no funcionamento psíquico, no pensamento e na liberdade de escolha, tornando o corpo vulnerável ao surgimento de alguns sintomas até as patologias. O trabalho torna-se fatigante e uma fonte de tensão e desprazer.

Em ambos os contextos pesquisados, o aumento real das jornadas de trabalho aliado ao estabelecimento de metas inatingíveis de produção tornava hábito a realização de tarefas além do horário estipulado. Não havia sequer pausas para almoçar e descansar, em função das altas demandas. A jornada exaustiva impossibilita ao trabalhador recuperar-se do desgaste causado pela atividade e de manter convívio social e familiar. O descanso necessário era negado e a saúde colocada em risco.

A precarização dos laços de solidariedade e o isolamento constituem situações desfavoráveis à construção da subjetividade e da saúde física e mental. Logo, destaca-se a especificidade do trabalho estudado, o qual não consta na história da Psicodinâmica do Trabalho, que tem pesquisado o trabalho livre e seus efeitos na saúde psíquica. Frente a isso, nota-se que a organização do trabalho no contexto análogo à escravidão dificulta a cooperação entre os trabalhadores, pois inviabiliza qualquer mobilização subjetiva, uma vez que são aliciados em diferentes localidades.

As demandas são impostas pelos gatos ou fiscais num discurso ideológico que se traduz no ditado popular “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. As tarefas são fiscalizadas de acordo com cada contexto específico e, tanto a execução quanto o descumprimento, implicam em humilhações, em constrangimentos e na falta de pagamento dos salários, ou seja, na mais estrita exploração do trabalho humano.

Alguns autores (SOUSA; SINGER apud BARROS; MENDES, 2003, p. 65), ao analisar o processo de trabalho na indústria da construção civil, apontam o trabalho por produção como uma modalidade de exploração do trabalho de forma intensiva, que conduz a um esgotamento físico e mental. Esse tipo de exigência, cuja demanda consiste numa produção cada vez mais acentuada, também foi observado em ambos os contextos investigados neste estudo.

A sobrecarga de trabalho, objeto de estudo também de diversas pesquisas desenvolvidas por Mendes (apud MONTEIRO; JACOBY, 2013, p.408), encontra-se atrelada à dominação social nos contextos de trabalho devido à carga de trabalho, que vai além da capacidade do trabalhador. Essa sobrecarga acontece a partir da relação entre adversidade e liberdade, no momento em que a liberdade é capturada pelas exigências do trabalho.

Nos contextos pesquisados, pôde-se constatar que os aliciadores buscavam explorar ao máximo a capacidade física e mental dos trabalhadores, impondo uma sobrecarga cada vez maior. Os sujeitos que atuavam na pedreira afirmaram que, anteriormente, eram obrigados a encher um caminhão de pedras e que, com o passar do tempo, as exigências aumentaram para dois caminhões cheios a cada quinzena. Já o corte de cana levava muitas vezes à exaustão, pois para obter um mesmo valor era necessário produzir cada vez mais já que, à medida que atingiam maior peso, os fiscais diminuíam o valor de mercado para cada tonelada.

As dimensões da organização de trabalho estudadas na presente pesquisa - determinadas por elementos como rotina, tarefa, jornada, condições de trabalho, ambiente físico, equipamentos e prazos - bem como as relações estabelecidas nos contextos analisados, a comunicação, a sociabilidade entre os pares e a hierarquia são fatores responsáveis pelo desencadeamento de sofrimentos, de frustrações e do sentimento de ter sido enganado com uma proposta de emprego promissora feita por aliciadores em suas cidades de origem.

Verbalizações associadas às condições de trabalho demonstraram a inadequação do ambiente em geral, caracterizada por ausência de saneamento básico e de água potável, rede de energia elétrica insuficiente para atender às necessidades locais, construções precárias, falta de proteção contra chuvas e espaço pequeno e sem ventilação.

A organização do trabalho escravo e as condições precárias levam o indivíduo a sentir-se inferiorizado, marginalizado, esquecido, sem lugar e sem voz para lutar. Não há espaço para o uso da inteligência e criatividade. São tratados pior que escravos, conforme demonstrado no relato do trabalhador que saiu de sua terra natal e foi conduzido para as lavouras do Estado do Mato Grosso:

E.4. O alojamento lá era feio. Acho que nem os escravo tivesse ainda na época num queria morar aqui. O quarto, por exemplo, que cabe dez pessoas, põe quarenta, ciquenta. Tinha lugar que tinha beliche de três. E pra quebrar o galho tinha um chiqueiro de porco, uma criação de porco. A gente saia pra trabaiar, quando chegava lá os porco tinha revirado as coisas dentro tudim.

Pode-se constatar que a precariedade das condições de trabalho levantadas pelo estudo, a partir dos elementos da organização do trabalho, influencia a vivência de sofrimento e adoecimento, a realização da dinâmica de reconhecimento no trabalho bem como às estratégias utilizadas pelos trabalhadores para enfrentarem as adversidades e constrangimentos advindos do trabalho escravo.

O presente estudo indica que a Psicodinâmica do Trabalho possibilita, também, a descrição da organização do trabalho análogo à escravidão conforme demonstrado nos contextos pesquisados. A organização apresenta todo um ciclo, que se inicia com o aliciamento no local de origem da pessoa e segue com a chegada ao local em condições degradantes, a aquisição de dívidas com o transporte e a manutenção do trabalhador, por conta da alimentação e moradia. Sua

liberdade é restringida e seu pagamento é realizado por meio de “vales”, a fim de retê-los até que o serviço seja totalmente executado.

4.2 CATEGORIA: SENTIMENTOS E VIVÊNCIAS DE SOFRIMENTO NO

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