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CATEGORIA: Sentimentos e Vivências de Sofrimento no Trabalho

4.2.1 Descrição

Esta categoria traz os sentimentos e as vivências de sofrimento psíquico dos trabalhadores que se encontravam em condições análogas à escravidão. O sofrimento psíquico pressupõe a possibilidade de agressão mental oriunda dos conflitos entre o sujeito e a realidade laboral, muitas vezes desencadeado pela própria organização do trabalho.

Nos dois contextos pesquisados, os sentimentos descritos são bastante semelhantes. Foram recorrentes nos relatos vivências de solidão e desamparo, pois além da distância física de seus familiares, não havia a possibilidade de comunicação.

E.3. Eu fiquei uma vez lá, eu fiquei nove mesis sozinho lá uma vez. Só tinha como sair a pé ou sinão de bicicleta. Fica a 40 km daqui, lá. E não tem água não. Se não levar daqui pra lá fica com sede na rua.

E.4. Eu encontrei muita dificuldade. Tem contato ninhum com minha família, ninhum.

E.5. O caminhão ia saindo carregado de soja pra Primavera, eu pedi pra ele me trazer até Primavera. Ele negou, falou que não podia. Eu tive que andar uns deiz quilômetro de pé.

A escravidão distancia o trabalhador das suas raízes, da sua cidade natal, dos filhos e das famílias, gera solidão e desafeto, sequestra sua subjetividade, conserva as estruturas de injustiça e de opressão, retira as esperanças de uma vida digna e é um campo fértil para vivências de tensões e violência, gerando sentimentos de insegurança e fragilidade.

E.5. E não pudia debate muito com ele (gato), que eu era sozinhu e eles era muitos. Que eles tem os encarregado, tem os jagunço, tem pistolero, eles tem tudo. E eu num tinha ninguém. Aí cê tem que ficar quieto, que um sozinhu num vai enfrenta quatro, cinco.

E.5. Então, se você é minoria e se você é quatro, cinco, de um lugar que tem trinta. Que é de um lugar só, do lugar do gato. Inda é perigoso você apanhar daqueles trinta. Porque o gato faz a cabeça daqueles trinta pra pôr contra os outros.

Observou-se nos contextos investigados bastante assédio moral sofrido pelos trabalhadores. Havia reiteradas exposições a situações constrangedoras, vexatórias e degradantes com o propósito de humilhá-los e rebaixá-los para demonstrar “quem é que manda”. Tais vivências provocavam sentimentos de impotência, frustração, submissão e servidão. O assédio moral torna-se uma das formas constituintes do trabalho nessas circunstâncias.

E.5. Ocê falava com um gato e ele falava: ‘cê tem tanto pra receber’, era aquele tanto, se ocê quisesse receber aquele tanto recebia, se num quisesse ainda apanhava pra aprender a viver.

E.4. Já aconteceu deu recebe agressão verbal. Promessa eu recebi muita de agressão física.

E.5. Ficava às vezis quieto, calado. Tinha que fazê o que eles queria. Ficava calado pra segurar a onda.

Os sentimentos de medo e isolamento, em geral, estavam impregnados nas práticas cotidianas das relações de trabalho e na própria maneira dos aliciadores de exercer o poder e autoridade. Os trabalhadores tinham que lidar continuamente com o medo do desemprego, de serem descartáveis, como se observa nos relatos.

E.4. A genti tamo trabaiano num serviço escravo, que é um serviço que é mei isolado, a gente fica meio escundido. Isso dá um sentimento de medo. E.5. Que se demonstrar medo pru'm gato lá no meio do mato, ele quer bater no cara. Que lá quem manda é eles.

E.3. Dá sentimento de medo mermo. É num conseguir otro emprego. Pior coisa do mundo que a genti tem medo. Agora mermo, cê tá num emprego, eu vou sair. Vai pensa, vai consegui onde, quando vai consegui otro?

Além dos sentimentos de medo e insegurança, os sujeitos também eram obrigados a conviver com ameaças de todos os tipos inclusive de morte, o que gerava angústia e vulnerabilidade diante dessas circunstâncias.

E.5. Eu já fui ameaçado pelo impreitero, o gato que eles fala né. Trabalhei dois mêis. Aí chamei ele pra fazer um acerto pra eu ir embora, ele mandou eu sair, mas falou que num tinha acerto. Aí eu falei pra ele que ele tinha que

me pagar, que eu levava ele no Ministério. Aí ele prometeu que se eu levasse ele no Ministério ele me pegava depois, só que num pegou. Mas prometer, prometeu.

E.3. Ele ameaçou nóis de morte. O que deu pra trazer dentro da caminhonete nóis troxe, o que não deu... (cabisbaixo e com choro contido)

De acordo com as verbalizações, eles eram esquecidos e relegados à própria sorte. Não havia assistência em casos de acidente de trabalho e nem meios de comunicação. A liberdade de locomoção era cerceada ou porque não havia transporte de volta ou porque o local de trabalho era distante e de difícil acesso. As condições de trabalho causavam sentimentos de inferioridade, desamparo, baixa autoestima, tristeza, insatisfação e indignação.

E.4. Ocê se sente piqueno em frente à sociedade. Ocê não tem como anda numa cidade grande, em lugar ninhum.

E.3. E se alguém adoecesse, se machucasse lá, cortasse uma mão, um braço? Morria lá. Não era dado ninhum tipo de assistência. Não, num tinha assistência ninhuma. Que eles num dava o carro, não tinha transporte, não tinha como. Tinha que guentar a situação lá mermo.

E.1. Se sente muito ruim! Sofrido! Sofria demais, tinha hora que se machucava! Tinha vez que eu ficava muito triste né, às vezes a gente adoecia e não tinha assistência nem nada.

Os trabalhadores demonstraram insatisfação, desânimo e descontentamento frente às promessas de pagamento não concretizadas. Sentimentos de terem sido enganados e ludibriados tornam-se frequentes em seus discursos.

E.5. Continuei trabaiando e perdi foi tudo, que eu num recebi nada. Sentimentos de ter sido inganado, passado pra trás.

E.3. O ruim era isso aqui (gesto simbolizando o dinheiro), que não pagava na hora, nóis carregava caminhão, e falavam "tal dia te pago, tal dia te pago" toda segunda-feira, até pegar e resgatar nóis lá.

E.2. Todo mundo ali sem receber. Naquela esperança, nóis vamo receber tal dia. Chegava aquele tal dia, mudava pra otro tal dia, e esse tal dia nunca chegava.

Os sentimentos de desgaste físico e mental estavam constantemente presentes por consequência do tipo de tarefa executada, da jornada de trabalho exaustiva e do cerceamento da liberdade. O trabalho é percebido como atividade

incapaz de proporcionar crescimento, reconhecimento e de prover suas necessidades básicas.

A falta de infraestrutura, reconhecimento e relacionamento interpessoal e as condições degradantes também contribuíram como elementos desencadeadores de sofrimento psíquico.

E.4. E pra quebra o galho tinha um chiqueiro de porco, uma criação de porco. A gente saia pra trabaiar, quando chegava lá os porcos tinha revirado as coisas dento tudim.

E.3. É fez o serviço deles é o que eles queria. Eles num queria saber da tua situação, se você tá precisano, tá passano necessidade. Eles queria saber de suprir a necessidade deles. A sua pra eles pouco importava. Se você tava bem ou se num tava, ele num queria saber.

E.5. Mas lá da fazenda mesmo num saía. Ele não deixava. Não saía, porque tinha que pegar o gato de surpresa. Ele te pagou, cê já pega tuas coisa pra ir embora, porque se ocê disse eu vou imbora tal dia, cê num vai, porque ele num vai deixá.

Após o resgate, em ambos os contextos, foram relatados sentimentos de emoção, perplexidade, agradecimento e alívio com a libertação. Por outro lado, surgiam sentimentos de repulsa ao imaginarem estar de volta àquelas circunstâncias.

E.3. Nem pensar! Isso não passa nem pela minha cabeça mais, volta a trabaiar nessa condição. Nunca mais, pendurei essa profissão minha. Fica jogado lá do jeito que eu tava, não desejo nem pra mim nem pra qualquer um, desejo não, fica jogado lá naquele mato lá, eu não desejo não. É só isso que eu falo.

E.2. Eu isso eu não quero mais nunca. De pedreira não! Na verdade eu sou servente! Servente de pedreiro. Nem a passeio quero retornar àquele lugar. E.4. Ó, minha alegria foi demais. Foi emocionante esse momento (resgate) porque eu nunca tinha passado por isso.

Os entrevistados manifestaram interesse em mudar de atividade profissional e passaram a vislumbrar um novo futuro, no qual novas perspectivas surgiam num horizonte, mesmo que distante.

E.4. É primero nóis fizemo curso de alfabetização, todo mundo. Então, depois do curso de alfabetização, aí que veio o curso de profissionalizante. Minha perspectiva é essa, procura otro serviço.

E.5. Ah, sentimento eu num tem sentimento guardado porque o que passou, passou né, acabou. Aí depois que saí desse negócio de usina, as fazenda escrava, aí entrei na Mendes Júnior (empresa legalizada), graças a Deus fiquei três ano na Mendes Júnior, saí muito bem, controlei minha situação. E graças a Deus, pra mim hoje tá tudo bão.

E.2. Eu vou trabaiar de servente. Só arrancar os dentes, eu já arrumei serviço de servente até com meu irmão.

E.1. Eu vou fazer o seguinte, porque eu sou cozinheira. Eu vou arrancar meus dentes tudinho, porque não tem como eu entra no sirviço agora, fui até chamada pra poder trabalha no restaurante di uma amiga minha que eu trabaiei muitos anos com ela. Mas só que eu não posso porque estou extraindo os dente. E no restaurante sabe como é né, trabaia todos os dias.

Cabe ressaltar que os cativos em situação de escravidão aceitaram trabalhar naquelas circunstâncias por ser a única oportunidade de trabalho que encontraram naquele momento específico, por ser um meio de sobrevivência e uma forma de evitar o desemprego.

E.3. As pessoas dizia que não ía arranjar emprego fichado porque não tinha estudo, então acabava nóis aceitando trabaiá naquelas condições, mas isso eu não quero mais não.

Por fim, evidencia-se a mensagem de um dos trabalhadores resgatado da usina de cana-de-açúcar que, ao longo de sua trajetória laboral, foi fortemente marcado pelo trabalho escravo. Após ser liberto participou do projeto Ação Integrada, que lhe possibilitou capacitação e um emprego formal, e demonstra muita gratidão e apreço pelas conquistas.

E.5. É o que eu tava falano, em três anos que eu fiquei na Mendes Júnior (empresa formal) eu consigui coisas que o resto da vida pra trás eu num consiguia trabaiano em fazenda, em usina. Hoje eu tô bem, graças a Deus, tenho o meu carro pra andar, tenho tudo. Mas tudo comprado depois que entrei na Mendes Júnior.

4.2.2 Discussão

De acordo com a abordagem teórica de Dejours, o trabalho pode ser um lugar tanto de saúde quanto de patologia, tanto de sofrimento quanto de prazer. É apresentado de modo dinâmico e com duplo papel, podendo ser estruturante como também adoecer, promovendo dignidade ou deteriorando e alienando (DEJOURS, 2011d, pp. 13-16).

A partir da ótica da Psicodinâmica do Trabalho, os resultados revelam que os sujeitos vivenciaram um contexto peculiar de organização do trabalho onde não havia espaço para vivências de prazer. Os achados permitem concluir que os ambientes tanto da pedreira quanto dos canaviais, na complexidade de seus elementos, foram responsáveis pelas vivências de sofrimento dos sujeitos entrevistados.

Os trabalhadores de ambos contextos encontravam-se totalmente imersos na precariedade de organizações ilegais, que não proporcionavam condições mínimas de sobrevivência, de direitos, de reconhecimento e de relacionamento entre os pares. Não havia espaços de discussão do coletivo, de criação, de autonomia ou de liberdade.

Dejours (apud MORAES, 2013, p. 417) destaca, como agravante do sofrimento, o avanço do individualismo, que corrói o reconhecimento, a cooperação e os espaços de convivência. Ficou evidente através das entrevistas que o cenário contribui para o isolamento social, a competição entre os pares e a falta de engajamento coletivo e de reconhecimento.

Todos esses fatores observados nos dois ambientes de trabalho em situação análoga à escravidão, somados, dificultam enormemente a transformação da dor em prazer e favorecem o predomínio do sofrimento, que pode levar a doenças psíquicas e somáticas.

O estudo retrata contextos ilícitos que fogem aos padrões dos modelos de organização investigados até o momento pela teoria dejouriana. No entanto, constata-se que a maioria dos tipos de sofrimento descritos nesta pesquisa já foi alvo de estudos desenvolvidos pela Psicodinâmica do Trabalho em contextos de trabalho livre, notando-se similaridades entre os sentimentos desenvolvidos nesse contexto e no de trabalho análogo à escravidão - no caso dessa categoria específica.

No levantamento realizado por Mendes e Morrone (apud MORAES, 2013a) de pesquisas desenvolvidas no Brasil sobre prazer e sofrimento no trabalho, no período de 1998 a 2007, percebeu-se que as vivências de sofrimento podem ser sinalizadas pela presença dos seguintes sentimentos: medo, insatisfação, insegurança, alienação, vulnerabilidade, frustração, inquietação, angústia, depressão, tristeza, agressividade, impotência para promover mudança, desestímulo, desânimo,

desgaste físico e emocional, desvalorização, culpa, tensão e raiva. Observa-se que vários desses sentimentos foram relatados pelos sujeitos entrevistados.

As causas do sofrimento no trabalho, segundo Dejours (2011a), têm origem nas pressões provenientes da atividade laboral, no modo de produção competitivo, na divisão e conteúdo das tarefas e nas relações de poder e responsabilidade. Tudo isso tende a abalar o equilíbrio psíquico e a fragilizar a saúde mental do trabalhador. Ingredientes como pressão, sobrecarga, condições degradantes e relações de poder rígidas e autoritárias foram relatados pelos entrevistados e, somados, tornam o trabalho análogo à escravidão uma fonte de sofrimento, desgaste e fadiga.

No caso desta investigação, os sujeitos vivem constantemente com medo, pois tal sentimento encontra-se entranhado na própria atividade de trabalho, nas relações com os superiores e pares, nas ameaças de precarização inerentes aos contextos de trabalho e nas situações de intimidação, coação e constrangimentos às quais eram submetidos.

Alguns estudos de Dejours (1999), ao analisar o processo de trabalho na indústria da construção civil, ressaltam que a pressão socioeconômica da ameaça de desemprego gera nos operários um sentimento de medo preponderante, instalando-se, assim, o sofrimento psíquico. Ainda segundo o autor (1992, p. 72), “o medo, seja proveniente de ritmos de trabalho ou de riscos originários das más condições de trabalho, destrói a saúde mental dos trabalhadores de modo progressivo e inelutável, como o carvão que asfixia os pulmões do mineiro com silicose".

O sentimento de medo permanente dos entrevistados motivava condutas de obediência, resignação e submissão aos algozes, desde o momento em que eram aliciados com promessas de dinheiro garantido, até se depararem com condições de trabalho degradantes e ameaças constantes, finalizando esse martírio somente com o afastamento dessas circunstâncias. O temor e a solidão alimentados pela despolitização e pela banalização de práticas injustas constitui-se um espaço de sofrimento e adoecimento dos indivíduos tolhendo, assim, a mobilização subjetiva contra o sofrimento e a alienação.

Com base nos relatos dos trabalhadores em condições análogas à de escravo, tanto na pedreira quanto nos canaviais observa-se vivências de intenso sofrimento psíquico e físico. Os trabalhadores são impedidos de questionar, sob pena de serem considerados subversivos. O trabalho é repetitivo, monótono,

extenuante e sem nenhuma possibilidade de realização pessoal, tornando-se um risco para a saúde psíquica.

A exploração frequentemente é justificada como uma alternativa ao desemprego e à falta de meios de sobrevivência. No entanto, pode-se afirmar que trabalhar em condições degradantes cuja precarização e ausência de amparo legal são fatores significativos, acarreta vivências de sofrimento patogênico associadas ao quadro de adoecimento psíquico por causa do trabalho.

A predominância do sofrimento patogênico em detrimento do sofrimento criativo pode ser inferida a partir da fala dos sujeitos entrevistados. O sofrimento criativo resulta na criação de soluções originais que visam à promoção da saúde, ou seja, à subversão do sofrimento em prazer, de acordo com Moraes (2013, p. 418). O sofrimento é considerado patogênico quando se esgotam os recursos defensivos, permanecendo a vivência prolongada de fracasso, que desencadeia o adoecimento. A potencialização do sofrimento leva à patologia que será discutida na quarta categoria de análise dos dados.

Segundo Dejours (apud MORAES, 2013, p. 417), o processo de fragilização e desestabilização do trabalhador pode conduzir a uma crise de identidade, o que abre caminho para a manifestação de doenças caracterizando o sofrimento como patogênico.

A experiência de fracasso vivenciada pelos cativos ao depararem-se com o real e o inesperado, causou em muitos deles dificuldade de encarar suas famílias, uma vez que saíram de seus lares com promessas rentáveis e, na grande maioria dos casos, voltaram sem nada ou até endividados. Assim, sentimentos de inferioridade, de discriminação e de desvalorização social são frequentes no momento do reencontro.

A precariedade das condições de trabalho é um dos elementos recorrentes nos relatos e é responsável pela ausência da dinâmica de reconhecimento, pois o descaso por parte dos aliciadores e da sociedade em geral é compreendido pelas vítimas não apenas como falta de reconhecimento profissional como também da sua própria dignidade.

Para a Psicodinâmica do Trabalho, a conquista da identidade no campo social, mediada pelo exercício do trabalho, passa pela dinâmica do reconhecimento (AUGUSTO, 2011, p. 70). Porém, no âmbito do trabalho em condições de escravidão não há margem para o reconhecimento e a valorização do trabalhador, o

que conduz à despersonalização, à falta de sentido do seu saber-fazer e, consequentemente, à alienação pelo trabalho.

Carla Morrone (2011, p. 105), Dejours, Périlleux, Maranda, Leclerc e Toupin salientam o papel do coletivo de trabalho como espaço de fala e expressão do sofrimento, fundamentais para o processamento da dinâmica de reconhecimento do trabalho. Todavia, em ambos os casos pesquisados não há espaço ou interesse na constituição desse coletivo. Qualquer tentativa mínima de mobilização é reprimida por meio da violência física ou verbal. A exposição vexatória a que são submetidos, além de ameaças veladas, impõe uma “lei do silêncio” nesses contextos e a imagem do trabalhador é cada vez mais denegrida.

O reconhecimento do trabalho parece influenciar na identidade, segundo pesquisas empíricas realizadas nos últimos anos por Itani, Pellegrin-Rescia, Vargas e Dunezat (apud MORRONE, 2001, p. 105). Os achados indicam que a construção da identidade social passa pela identidade profissional, assumindo o trabalho um papel de construção e resgate da imagem de si mesmo. Essa construção, porém, é inviabilizada no trabalho em condições análogas à de escravo, já que não há reconhecimento do trabalho tampouco da própria dignidade do trabalhador. Daí os sentimentos de inferioridade e menos valia desencadeados pela ausência de reconhecimento social, desconstituindo assim, cada vez mais, sua identidade.

Outro dado levantado pela pesquisa refere-se às vivências de violência, nos contextos estudados, como forma de ação que resulta, em sua maioria, da dominação e do abuso de poder, manifestada por meio da força física e da coação psicológica e moral, afetando a saúde física e emocional das vítimas. A finalidade da violência é, segundo José Henrique de Faria (2013, p. 121), “conservar as estruturas de injustiça, de opressão e de privilégios em benefício de uma minoria, retirando da maioria suas esperanças de vida digna”.

Observa-se nos relatos que a violência, tanto física quanto psíquica, encontra- se institucionalizada em ambos os contextos de trabalho, residindo na perda do pensamento crítico e na inabilidade de organização coletiva. A violência se intensifica pela ausência da capacidade de questionamento e da mobilização das realidades vivenciadas pelos próprios trabalhadores, desde o aliciamento até o resgate, fazendo parte de todo o ciclo do trabalho em condições de escravidão.

De acordo com Faria (2013, p. 493), a aceitação da violência no trabalho, seja na dimensão econômica, política ou psicossocial, está relacionada às formas de

constituição das relações de trabalho sob o sistema de capital, cuja lógica torna os indivíduos sujeitos alienados. É nesse quadro de alienação, medo e submissão que a prática da violência ganha espaço nos contextos pesquisados.

Enfrentar a violência no ambiente de trabalho escravo, ou seja, em um terreno de luta no qual a liberdade é constantemente cerceada, torna-se algo quase impossível, a menos que os trabalhadores sejam capazes de defender seus interesses coletivamente e, assim, exercer seu poder.

De uma forma geral, os resultados demonstram que as características da organização do trabalho em condições análogas à escravidão exercem papel importante para a vivência de sofrimento e de sentimentos que agridem a dignidade da pessoa humana.

A realização de atividades rotineiras e penosas perante ameaças e humilhações, condições degradantes, metas abusivas, ausência de salários, de autonomia e de liberdade nas decisões e a falta de um espaço coletivo de discussão, favoreceu a vivência de sofrimento patogênico nos grupos pesquisados.

Salienta-se que os sentimentos de frustração, desamparo, tristeza, baixa autoestima, insatisfação, medo, insegurança, angústia, indignação, menos valia, solidão, submissão, perplexidade e alívio diante do resgate, ansiedade quanto ao

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