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Mediação do sofrimento em trabalhadores resgatados do trabalho em condições análogas à de escravo

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Academic year: 2017

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Pró-Reitoria Acadêmica

Escola de Saúde

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia

MEDIAÇÃO DO SOFRIMENTO EM TRABALHADORES

RESGATADOS DO TRABALHO EM CONDIÇÕES

ANÁLOGAS À DE ESCRAVO

Autora: Ana Cláudia de Jesus Vasconcellos Chehab

Orientadora: Prof.ª Dra. Lêda Gonçalves de Freitas

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ANA CLÁUDIA DE JESUS VASCONCELLOS CHEHAB

MEDIAÇÃO DO SOFRIMENTO EM TRABALHADORES RESGATADOS DO TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Psicologia.

Orientadora: Prof.ª Dra. Lêda Gonçalves de Freitas

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C515m Chehab, Ana Claudia de Jesus V.

Mediação do sofrimento em trabalhadores resgatados do trabalho em condições análogas à de escravo. / Ana Claudia de Jesus V. Chehab – 2015.

93 f.; 30 cm

Dissertação (Mestrado) – Universidade Católica de Brasília, 2015. Orientação: Profa. Dra. Lêda Gonçalves de Freitas

1. Psicologia. 2. Trabalho análogo à escravidão. 3. Mediação do sofrimento. 4. Psicodinâmica do trabalho. I. Freitas, Lêda Gonçalves de, orient. II. Título.

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Dissertação de autoria de Ana Cláudia de Jesus Vasconcellos Chehab, intitulada "Mediação do Sofrimento em Trabalhadores Resgatados do Trabalho em Condições Análogas a de Escravo", apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Psicologia da Universidade Católica de Brasília, em 29 de julho de 2015, defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinalada:

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Orientadora

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11

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-Prof.ª Drª. Ana Magnólia Bezerra Mendes Examinadora Externa

UnB

Profº. Drº. Benedito Rodrigues dos Santos Examinador Interno

UCB

Profª. Drª. Ondina Pena Pereira Suplente

UCB

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AGRADECIMENTOS

Agradeço de modo especial primeiramente a Deus, que não poupou a sua infinita Graça e Força para que eu chegasse à conclusão desse trabalho. Ao meu querido esposo Gustavo que, por meio de seu incentivo, exemplo, inspiração e coragem, mostrou-me que eu seria capaz de concretizar mais uma etapa de desafios como a realização de um mestrado.

Aos meus filhos, que se privaram de minha companhia em muitos momentos, principalmente nas viagens, demonstrando atitudes de tolerância diante da minha ausência.

Aos meus familiares, pai, mãe, irmãos, sogra e cunhados que se

“desdobraram”, auxiliando-me a cuidar dos meus filhos para que eu pudesse dedicar-me a essa obra. Ressalto, também, a equipe da Coordenadoria de Desenvolvimento de Pessoas do Tribunal Superior do Trabalho, que me possibilitaram o início desse empreendimento.

De maneira especial agradeço à minha orientadora, Lêda Gonçalves de Freitas, que com imenso comprometimento e profissionalismo demonstrou sempre solicitude, presteza e disponibilidade na orientação desta dissertação.

Aos professores Benedito dos Santos, Ondina Pereira e Lêda Gonçalves que fizeram parte do processo de qualificação desse projeto, contribuindo de forma peculiar com questões pertinentes à melhoria do meu trabalho.

Agradeço ao coordenador do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, sr. Valdir Monteiro da Silva, do Estado de Goiás, que com disposição e muita boa vontade possibilitou meu encontro com os trabalhadores que foram resgatados da pedreira.

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Aos Juízes do Trabalho Drª Francisca Brenna Vieira Nepumuceno, pelo encorajamento e apoio, e ao Dr Jônatas dos Santos Andrade, vencedor do Prêmio de Direitos Humanos 2012 na categoria Erradicação do Trabalho Escravo pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Agradeço imensamente seu incentivo, seu contato e sua intervenção para que eu pudesse participar do Lançamento do Movimento Ação Integrada em Mato Grosso. Sua coragem, sua determinação e seu vigor na prevenção e combate à erradicação do trabalho escravo em nosso país são um exemplo para toda a sociedade civil.

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RESUMO

CHEHAB, Ana Cláudia J. Vasconcellos. Mediação do Sofrimento em Trabalhadores Resgatados do Trabalho em Condições Análogas à de escravo. 2015. 93 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2015.

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de que todos possam se comprometer com a prevenção e a erradicação dessa chaga social.

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ABSTRACT

This study aims to identify the strategies of mediation of suffering in workers rescued from conditions of slavery. The work under these conditions is a crime and a reality in Brazil today. The theoretical contribution of the Psychodynamics of Work, in terms of which seeks to study the Dejours, is used to study the invisible aspects, subjective worker relations with its activity, the suffering and the wear generated by work and its effects on your physical and mental health. Participated in this study five workers rescued from slavery, four of them men and a woman, with an average age of about 46 years old. Most of them are illiterate. Three interviews were conducted, two collective and an individual. The interviews were in two distinct contexts: a in the State of Goiás, with workers of a quarry; and another occurred in the State of Mato Grosso with workers who acted in crops of sugar cane. The analysis of conversation were organized into four categories: a) organization of slave labor – which seeks to describe: workers' recruitment, routine and division of labor, load time, equipment and instruments of work, hierarchy, physical environment, working conditions, time limits for task execution, payment and the rescue; b) distress – the workers ' reports have revealed that the working conditions caused feelings of helplessness, low self-esteem, sadness, dissatisfaction and indignation, because of the degrading treatment form; c) mediation strategies of suffering – shows strategies for individuality, denial and alienation and d) work pathology – that verified the presence of social diseases: loneliness, overload, violence and voluntary servitude. The workers adopt an attitude of conformism, submission and servitude, acting passively on the situations of conflict, or waiting in "God" the solution of the problems. Searched contexts are permeated by the precariousness of working conditions, exhaustive journey, curtailment of freedom and the non-payment of salary. This paralyzes action of workers to the possibilities of change. For them, remains the use of defense strategies, mainly from denial, passivity and individualism; remains only hope for the full operation of the structures of the State so that this kind of work is denounced and, at the same time, count on a society that produce a culture of solidarity so that everyone can commit to the prevention and eradication of this social ulcer.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 11

2 REFERENCIAL TEÓRICO ... 16

2.1 O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO ... 16

2.2 A PSICODINÂMICA DO TRABALHO ... 24

2.2.1 Principais conceitos em Psicodinâmica do Trabalho ... 27

3 MÉTODO ... 34

3.1 PARTICIPANTES E LOCAL ... 35

3.1.1 Participantes ... 35

3.1.2 Local ... 36

3.2 INSTRUMENTOS ... 37

3.2.1 Análise Documental ... 37

3.2.2 Entrevista Semiestruturada ... 38

3.3. PROCEDIMENTOS PARA A COLETA DE DADOS ... 39

3.4 ANÁLISE DOS DADOS ... 39

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO ... 41

4.1 CATEGORIA: Organização do Trabalho Escravo ... 41

4.1.1 Descrição ... 41

4.1.2 Discussão ... 50

4.2 CATEGORIA: Sentimentos e Vivências de Sofrimento no Trabalho ... 55

4.2.1 Descrição ... 55

4.2.2 Discussão ... 59

4.3 CATEGORIA: Estratégias de Mediação do Sofrimento ... 64

4.3.1 Descrição ... 64

4.3.2 Discussão ... 66

4.4 CATEGORIA: Patologias do Trabalho Análogo à Escravidão ... 70

4.4.1 Descrição ... 70

4.4.2 Discussão ... 73

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 76

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 81

ANEXO A ROTEIRO DE ENTREVISTA ... 90

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1 INTRODUÇÃO

“Acrescento uma palavra sobre uma outra

situação de trabalho que me incomoda: refiro-me ao que definimos como ‘trabalho escravo’, o trabalho que escraviza. Quantas pessoas no mundo são vítimas deste tipo de escravidão, em que é a pessoa que serve o trabalho, enquanto deve ser o trabalho a oferecer um serviço à

pessoa, para que tenhamos todos dignidade”

(Papa Francisco, Catequese, 1º de maio de 2013).

Esta pesquisa consiste no estudo da mediação do sofrimento de trabalhadores que foram submetidos ao trabalho em condições análogas à de escravo nos dias atuais.

Para tanto, buscou-se como referência a abordagem da Psicodinâmica do Trabalho, que investiga a saúde e o adoecimento, bem como as estratégias de enfrentamento que os trabalhadores utilizaram para ressignificar e superar o sofrimento, com vistas à transformação do contexto de trabalho em um lugar de prazer (FEREIRA; MENDES, 2003; AUGUSTO, 2011, p. 11).

O trabalho constitui uma fonte de subsistência da espécie humana desde seus primórdios, nas diversas formas e concepções que surgiram ao longo da História sendo, às vezes, fonte de satisfação e de prazer e, em outras, de desgaste e de sofrimento.

A própria etimologia da palavra "trabalho" invoca a noção de sofrimento. No latim, tripaliare é martirizar com o tripalium, antigo instrumento composto de três paus utilizado com a finalidade de torturar.

A noção de prazer também foi associada ao conceito de trabalho ao longo da História. Após a Revolução Industrial e as lutas sociais que deram origem ao Direito do Trabalho baseado na noção de emprego, a Encíclica Rerum Novarum trouxe a consciência da dignidade do trabalho humano (LEÃO XIII, 1891, nº 13) que, então, passou a ser visto como um bem econômico, juridicamente protegido, fator de civilização e progresso (GONÇALVES, 2010, p. 99) e fonte, portanto, de prazer.

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Ao analisar Marx, Lukács define o trabalho como a atividade humana que interfere em toda a existência, do sentir ao agir, sendo o mediador entre o pensamento e a ação (FREITAS, 2013, p. 78). Segundo o autor, o trabalho consiste no processo contínuo de busca por novas possibilidades.

No campo da Psicodinâmica do Trabalho, Dejours resgata e utiliza dois binômios antagônicos e complementares entre si: prazer e sofrimento. Assim, por meio do trabalho o indivíduo transforma-se, ampliando sua competência e sua habilidade quando consegue progredir diante das dificuldades. O trabalho adquire papel central na formação de sua identidade e de sua saúde mental (DEJOURS apud MERLO; MENDES, 2009).

O modo como o trabalho é organizado influencia toda a vida humana, apropriando-se não apenas do tempo e dos movimentos dos trabalhadores como também de sua subjetividade (ANJOS, 2013, p. 270). Sendo assim, ele não se resume apenas em uma relação salarial ou empregatícia, mas consiste no trabalhar, ou seja, no modo específico de cada um envolver sua subjetividade e o próprio corpo a fim de desenvolver determinada tarefa.

Para entender os processos de organização do trabalho, salienta-se a definição de Marx (1996, p. 297):

O trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza.

Assim, as diferentes formas de organização proporcionam aos trabalhadores níveis de satisfação e insatisfação, de prazer e sofrimento. As diversas pesquisas na área da Psicodinâmica do Trabalho concentram seus estudos em organizações formais de trabalho, sendo essa a primeira pesquisa a estudar uma organização de trabalho não formal e ao mesmo tempo ilícita.

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A pesquisa tem relevância no sentido de possibilitar aos sujeitos avançarem em suas interpretações acerca da organização do trabalho na qual estão inseridos. A partir dessa elaboração e de vivências subjetivas, poderá propor-se ações adequadas para possibilitar a transformação desta lamentável realidade.

Uma vez que a proposta de investigação desse estudo refere-se ao trabalho em condições análogas à de escravo, deve-se estar ciente de que o fenômeno constitui uma realidade no Brasil em pleno século XXI, ainda que seja uma prática criminosa.

A atual redação do artigo 149, caput e § 1º, do Código Penal (BRASIL, 1940), dada pela Lei nº 10.803/2003, define o crime de trabalho análogo ao de escravo, nos seguintes termos:

Redução a condição análoga à de escravo

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a csujeitando-ondições degradantes de trabalhsujeitando-o, quer restringindsujeitando-o, psujeitando-or qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 3.842/2012 (BRASIL, 2012), que pretende redefinir o conceito de trabalho análogo ao de escravo alterando o texto do referido artigo para, especialmente, retirar os termos “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho”. Aprovado recentemente na Comissão de Agricultura, Pecuária e Abastecimento e Desenvolvimento Rural daquela casa, a intenção é afastar interpretações que possam levar à desapropriação de imóveis rurais em face da recente promulgação da Emenda Constitucional nº 81 (BRASIL, 2015).

De qualquer maneira, percebe-se, pela atual disposição do Código Penal, que o trabalho em condições análogas à de escravo compreende o labor forçado, contra a vontade do trabalhador ou em condições degradantes (MIRAGLIA, 2010, pp. 118-119). Nesse sentido, inclusive, já decidiu o Supremo Tribunal Federal (2012).

Trabalho forçado ou compulsório, para o artigo 2º, nº 1, da Convenção nº 29 de 1930 da Organização Internacional do Trabalho –OIT, é “todo trabalho ou serviço

exigido de uma pessoa sob ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido

espontaneamente” (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1930). Por outro lado, segundo Denise Lapolla Andrade (2005, p. 81):

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saúde. [...] Será degradante aquele que tiver péssimas condições de trabalho e remuneração incompatível, falta de garantias mínimas de saúde e segurança; limitação na alimentação e moradia. Enfim, aquele que explora a necessidade e a miséria do trabalhador. Aquele que o faz submeter-se a condições indignas.

Submeter uma pessoa à escravidão ou a condições análogas a essa constitui grave violação dos direitos humanos. A Declaração Universal de Direitos Humanos (ORGANIZAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948) estabelece que toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal (artigo 3º) e que ninguém será mantido em escravidão ou servidão (artigo 4º).

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, Pacto de São José da Costa Rica (BRASIL, 1992), também prevê que ninguém pode ser submetido à escravidão ou servidão e acrescenta que não deve constranger-se ninguém a executar trabalho forçado ou obrigatório (artigo 6º, nºs 1 e 2).

A Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988) estabelece, dentre os fundamentos do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º, incisos III e IV) e o país rege-se, nas suas relações internacionais, pela prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, inciso II).

São direitos humanos ou fundamentais, reconhecidos pela Constituição Federal, entre outros: a liberdade, a proibição de tratamento desumano e degradante e o livre exercício de qualquer trabalho ou profissão, atendida a qualificação exigida em lei (artigo 5º, incisos II, III e XIII).

Diversos direitos trabalhistas são assegurados aos empregados urbanos e rurais (artigo 7º), entre os quais estão a limitação da jornada de trabalho, o repouso semanal remunerado, o salário mínimo, a irredutibilidade salarial e as férias anuais remuneradas.

O objetivo geral desta pesquisa é investigar quais as estratégias de mediação do sofrimento os trabalhadores submetidos às condições análogas à de escravo lançaram mão para enfrentar o sofrimento advindo desta conjuntura.

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Nesse sentido, a presente dissertação foi estruturada da seguinte forma: o primeiro capítulo visa contextualizar a noção de trabalho até o conceito jurídico-legal de trabalho em condições análogas à de escravo, incluindo a construção da proposta e dos objetivos da pesquisa bem como sua relevância. O segundo capítulo é dedicado ao referencial teórico que ofereceu suporte à pesquisa, contextualizando o trabalho escravo no Brasil nos dias atuais além dos principais constructos da Psicodinâmica do Trabalho como aporte teórico para subsidiar a investigação.

O terceiro capítulo aborda a metodologia utilizada no desenvolvimento do estudo que originou esta dissertação. O quarto capítulo apresenta e discute os resultados à luz da Psicodinâmica do Trabalho.

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2 REFERENCIAL TEÓRICO

“A escravidão contemporânea não se utiliza de grilhões e chibata, mas, assim como aquela que marcou nossos períodos de Colônia e Império, baseia-se na violência e na destituição dos trabalhadores de sua condição de ser humano. Em muitos casos, a exploração não é vista como tal e é considerada natural, como hábito, cultura ou a única opção destinada a quem nasceu pobre”. (BRASIL, 2013).

2.1 O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

A escravidão teve início no Brasil com a ocupação portuguesa. Ao longo da história, a exploração do trabalho humano foi ganhando novas facetas e significados até os dias atuais. As sequelas da herança escravagista permitiram uma nova forma de exploração de grupos excluídos, que ainda persiste na sociedade brasileira em pleno século XXI.

Os escravizados naquela época foram os índios e, mais tarde, os negros africanos. Na atualidade é o homem, na sua grande maioria, pobre, analfabeto e marginalizado, independentemente da cor de sua pele. Mas a mentalidade escravagista, que “coisifica” o ser humano e o impossibilita de exercer sua cidadania, permanece mesmo após 500 anos de história. O Brasil, sob esse aspecto, não abandonou por completo suas raízes.

Segundo Mello (2005, p. 24), a “reescravização” ainda acontece atualmente quando os trabalhadores, embora libertos da superexploração, vêem-se obrigados a aceitar nova proposta de trabalho com as mesmas características degradantes da anterior porque a falta de escolaridade, de cultura e de oportunidades não lhes permite galgar novos horizontes.

Além disso, o recente passado escravocrata criou um padrão cultural de comportamento que norteia as relações de trabalho baseando-se na desumanização do trabalhador, viabilizando sua submissão a condições degradantes (COSTA, 2010, pp.116-117) e sua perda de identidade (SIQUEIRA, 2010, p. 137).

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submetidos ao trabalho escravo, garantindo àqueles a sobrevivência ao transferir essa ocupação. Observa-se, portanto, que a ideologia da época considerava o trabalho escravo como algo próprio da existência humana (FREITAS, 2006, p. 24).

A superexploração do trabalho, da qual a escravidão é uma das formas mais cruéis, é deliberadamente utilizada em determinadas regiões e circunstâncias como parte integrante e instrumento do capital.

A escravidão moderna diferencia-se daquela dos períodos colonial e monárquico do Brasil porque naquela o trabalhador era uma propriedade do escravagista, podia ser negociado e não tinha direitos. A função dele era servir e trabalhar para o seu senhor sem qualquer remuneração. Essa forma de escravatura foi muito comum antes da Lei Áurea, mas na atualidade raramente acontece.

No trabalho em condições análogas à de escravo existente hoje, o trabalhador é alguém que está subjugado a uma servidão por dívidas ou por contrato.

Na servidão por dívidas (debt bondage), a pessoa trabalha muito para quitar um empréstimo em dinheiro, mas seu esforço não basta para reduzir a dívida, que mantém o trabalhador sob controle (BALES, 2012, pp. 19-20).

Na servidão por contrato (contract slavery), a pessoa, atraída por uma promessa de emprego, encontra a própria escravidão quando chega ao local de trabalho. Caso haja problemas legais, o contrato pode ser formalmente produzido mas, na realidade, o trabalhador torna-se um escravo ameaçado por violência, sem liberdade de locomoção e sem salário (BALES, 2012, p. 20).

Em geral, os indivíduos escravizados no Brasil (no campo ou na cidade) são atraídos por aliciadores, conhecidos como “gatos”, e levados para trabalhar em locais distantes (VIEIRA, 2003, p. 2). Lá são mantidos por capatazes, fiscais ou pistoleiros mediante vigilância armada, violência física, coação psíquica e dívidas ou pelo isolamento geográfico.

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O trabalho escravo tem estreita relação com o tráfico de pessoas para fins econômicos, cuja principal finalidade é fornecer mão-de-obra para o trabalho forçado. (FAUZINA et al., 2009, pp. 10-11).

No Brasil atual ainda é possível encontrar trabalho análogo à escravidão, tanto em áreas rurais como em grandes centros urbanos. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (SAKAMOTO, 2006, p. 26), foram libertados desde 1995, quando se iniciaram as fiscalizações móveis de trabalho escravo no país, até 2005, 18.704 trabalhadores, distribuídos pelas seguintes unidades da federação:

Tabela 1: trabalhadores libertados da escravidão entre 1995/2005 por unidade da federação

Unidade

Federação 1995/ 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 Total em %

1º PA 254 132 383 280 527 1.392 1.888 928 1.219 7.003 37,44% 2º MT 436 19 283 157 245 567 683 326 1.454 4.170 22,29%

3º MA 8 27 457 184 276 347 383 1.682 8,99%

4º BA 1.089 150 314 1.553 8,30%

5º TO 32 27 462 541 328 1.390 7,43%

6º GO 79 245 404 728 3,89%

7º RJ 446 183 629 3,36%

8º RO 42 355 18 42 457 2,44%

9º ES 244 80 324 1,73%

10º SP 76 142 218 1,17%

11º MG 80 24 19 123 0,66%

12º PI 83 38 121 0,65%

13º AL 50 49 99 0,53%

14º PR 82 82 0,44%

15º MS 29 18 47 0,25%

16º RS 35 35 0,19%

17º RN 29 29 0,16%

18º AC 2 12 14 0,07%

TOTAL 903 159 725 516 1.305 2.285 5.228 3.212 4.371 18.704 100%

em % 4,80% 0,90% 3,90% 2,80% 7,00% 12,20% 28,00% 17,20% 23,30% 100,00% Fonte: Comissão Pastoral da Terra

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Gráfico 1: trabalhadores libertados da escravidão de 1995 a 2005 por unidade da federação

Fonte: Comissão Pastoral da Terra

Apenas nos estados do Mato Grosso, Pará, Tocantins e Maranhão concentravam-se mais de 75% dos trabalhadores que foram libertos pela Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, compondo um arco geográfico.

Dados recentes do Ministério do Trabalho e Emprego (2014) revelaram, contudo, que houve uma mudança na distribuição dos trabalhadores resgatados da escravidão no último quinquênio:

Tabela 2: trabalhadores libertados da escravidão entre 2008 e 2013 por unidade da federação

Estado 2008 2009 2010 2011 2012 2013 TOTAL em %

1º PA 811 326 559 233 563 141 2633 14,07% 2º MG 229 421 511 417 394 446 2418 12,92% 3º GO 867 328 343 310 201 133 2182 11,66% 4º MT 578 308 122 91 83 86 1268 6,77% 5º SP 172 38 91 180 239 419 1139 6,09% 6º TO 78 353 92 106 321 41 991 5,29% 7º RJ 46 521 58 111 14 129 879 4,70% 8º PR 155 227 120 19 256 64 841 4,49% 9º MS 236 22 8 389 49 101 805 4,30% 10º BA 106 285 101 110 52 135 789 4,22% 11º PE 309 419 0 19 8 755 4,03% 12º AL 656 51 42 749 4,00% 13º SC 140 98 253 107 52 27 677 3,62% 14º MA 99 161 119 126 67 71 643 3,44% 15º ES 89 99 107 22 26 13 356 1,90% 16º AM 85 28 55 174 342 1,83% 17º CE 192 20 103 315 1,68% 18º PI 129 11 20 23 97 26 306 1,63% 19º RO 28 26 37 90 39 19 239 1,28% 20º RS 4 18 24 28 59 44 177 0,95%

21º RN 7 74 81 0,43%

22º AC 14 8 23 13 58 0,31%

23º PB 27 21 48 0,26%

24º AP 0 3 23 26 0,14%

TOTAL 5.016 3.769 2.628 2.491 2.750 2.063 18.717 100,00%

Fonte: Ministério do Trabalho

(21)

Apesar do Estado do Pará ainda ser o primeiro em libertação de trabalhadores escravos, 35% dos resgates feitos pelo Ministério do Trabalho no último quinquênio aconteceram no quadrilátero formado pelos Estados de Minas Gerais, Goiás, São Paulo e Rio de Janeiro, percentual este superior aos quase 30% que se deram no arco formado por Mato Grosso, Pará, Tocantins e Maranhão.

Informações mais recentes revelam que pela primeira vez na história do combate à escravidão o número de trabalhadores resgatados em áreas urbanas superou o da zona rural. O maior responsável por isso é o setor da construção civil, que contabiliza 40% desse total, enquanto a pecuária, segunda colocada, responde por apenas 12% (REPÓRTER BRASIL, 2014).

No início de junho de 2012, a OIT estimou que o número de vítimas do trabalho forçado chegava a 14,2 milhões em todo o mundo, ou seja, 68% dos trabalhadores em diversas atividades econômicas. A vulnerabilidade econômica e social é a grande responsável por esse quadro (CNBB, 2013, p.13).

O mapa a seguir, formulado a partir de dados fornecidos pela Fiscalização do Trabalho (THÉRY et al., 2009, p. 22), apresenta os locais do país onde ocorreram resgates de trabalhadores em condições análogas à de escravo entre os anos de 1995 e 2006:

Gráfico 2: localização dos resgates de trabalhadores submetidos à escravidão entre 1995 a 2006

(22)

em áreas rurais (BRASIL, MTE, 2013). A escravidão no campo está associada às seguintes atividades (THÉRY et al., 2009, p. 37; COSTA, 2010, p. 70):

Gráfico 3: atividades desenvolvidas por trabalhadores libertados da escravidão em fazendas

Nos centros urbanos, a Fiscalização do Trabalho tem encontrado situações de escravidão em indústrias têxtil, especialmente no Estado de São Paulo, protagonizadas por imigrantes em condições irregulares oriundos de países como Bolívia, Peru e Paraguai.

Em uma pesquisa de campo realizada pela OIT com pessoas envolvidas em resgates pela Fiscalização do Trabalho, em dez fazendas, de diversos tamanhos e culturas, situadas nos Estados do Pará, Mato Grosso, Bahia e Goiás, entre outubro de 2006 e julho de 2007, foi traçado o perfil dos principais envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil (OIT, 2011, pp. 55-149). Em relação aos trabalhadores, seguem os principais resultados obtidos:

Tabela 3: perfil de trabalhadores libertados da escravidão em fazendas entre out. 2006 até jul. 2007

Critério Resultados obtidos Padrão médio

Sexo 99% homens, 1% mulheres Homem

Idade 1,7% menos de 18 anos; 51,2% de 18 a 29 anos; 39,7% de 30 a 49 anos; 7,4% mais de 50 anos 31,4 anos Cor/raça 18,2% negros; 62% pardos; 0,8% índigenas; 19% brancos Pardo Renda

Familiar

40,5% até 1 salário mínimo; 44,8% de 1 a 2 salários mínimos; 7,8% de 2 a 3 salários mínimos; 6,9% acima de 3 salários mínimos

1,3 salários mínimos Naturalidade 77,6% nasceu no Nordeste; 8,3% é do Centro-Oeste; 5% do Norte; 5% do Sul; 4,1% do Sudeste Nordestino

Escolaridade 18,3% são analfabetos; 65,8% têm ensino fundamental incompleto; 20% possui ensino fundamental completo; 1,6% têm ensino médio incompleto; 2,5% têm ensino médio completo

Ensino fundamental incompleto Migração 61% deixou seu local nascimento; 39% trabalha no município que nasceu Migrou

Estado civil 36,4% são separados; 34,7% tem esposa ou companheira; 28,9% são solteiros Separado ou casado

Filhos 62% têm filhos; 38% não têm filhos Têm filhos

Convivência

Familiar 72,7% viviam com familiares antes da escravidão; 25,6% viviam sós; 1,7% moravam com não familiares Viviam com a família Formação 85% nunca fizeram curso profissional; 15% já fizeram curso Não têm curso

49%

2% 19% 12%

5% 11% 2%

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Profissional profissional de curta duração profissional Trabalho

Infantil 92,6% começaram a trabalhar antes dos 16 anos; 7,4% iniciaram após os 16 anos

Trabalham antes dos 16 anos Fonte: OIT

A partir dos dados acima, percebe-se que o trabalhador escravizado no meio rural, em regra, tem pouca qualificação profissional e educacional, convivia com a família, possui filhos, começou a trabalhar ainda muito jovem, ganhava pouco e migrou em busca de condições melhores de trabalho e perspectivas financeiras mais favoráveis. Essas características apontam um perfil que propicia sua escravização.

A pobreza é uma das principais causas da escravidão no Brasil (COSTA, 2010, pp. 111-112) e quase todos os trabalhadores resgatados têm histórico de trabalho infantil (OIT, 2011, p. 81), sendo 59,7% a porcentagem de reincidentes (OIT, 2011, p. 84).

Gráfico 4: reincidência em escravidão (em %)

Fonte: OIT

Apenas 12,6% haviam sido resgatados anteriormente pela Fiscalização do Trabalho (OIT, 2011, p. 85). Ameaças psicológicas, humilhações, castigos físicos, danos morais, assassinatos, condições degradantes, medo de denunciar os escravagistas (BRASIL, Município de São Paulo, 2006, p. 30) são alguns dos ingredientes que, isoladamente ou conjugados, atuam diretamente no processo de adoecimento e desumanização do indivíduo nessas condições.

Com base nas características da escravidão contemporânea, o exame da literatura especializada e alguns dados já disponíveis permitem aludir sobre a possibilidade de desenvolvimento, dentre outras patologias, da síndrome de Estocolmo, estresse pós-traumático, depressão e síndrome de Burnout, além de aumentar os riscos de morte no trabalho, por karoshi ou suicídio, cuja descrição será retomada mais adiante.

Foram escravos antes; 59,7 Primeira escravidão;

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A fim de combater o trabalho forçado, o governo brasileiro tem adotado diversas medidas. Em 2003 foi lançado o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (BRASIL, 2003). Atualizado e ampliado em 2008, por ocasião da 2ª edição desse Plano Nacional, adotou-se como ação nº 1, dirigida aos três poderes do Estado e ao Ministério Público, “manter a erradicação do trabalho escravo contemporâneo como prioridade do Estado brasileiro” (BRASIL, 2008, p.

12).

O 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (BRASIL, 2010, p. 69) fixou oito ações programáticas, dentre as quais estão: a garantia do trabalho decente ou digno (objetivo estratégico VI) e o combate e prevenção ao trabalho escravo (objetivo VII).

Desde 2004, o Ministério do Trabalho e Emprego divulga e atualiza frequentemente o cadastro de empregadores autuados por manterem trabalhadores em condições análogas à de escravo. Na versão de 1º de fevereiro de 2013, havia 405 pessoas e empresas incluídas na chamada “lista suja” (BRASIL, 2013).

Os dados relativos às pessoas resgatadas da escravidão (SAKAMOTO, 2006, p. 26) e o elevado número de incluídos no cadastro de empregadores autuados (BRASIL, 2013) revelam que a escravidão contemporânea atinge uma parcela razoável de trabalhadores no campo, na cidade e em inúmeros estados da federação.

Trata-se de um problema social que mobiliza o Estado brasileiro e cuja erradicação é uma prioridade (BRASIL, 2008, p. 12). O combate à escravidão motivou o estabelecimento de ações, de metas e a edição de Planos Nacionais para Erradicação do Trabalho Escravo, além de um Programa Nacional de Direitos Humanos.

A criação de centros de atendimento a esses trabalhadores, como prevê o 2º Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (BRASIL, 2008, ação nº 44, p. 20), precisa estar acompanhada da compreensão sobre a identidade, o sofrimento, as patologias, a mobilização subjetiva e as estratégias defensivas desse público específico, podendo a Psicodinâmica do Trabalho contribuir nesse sentido.

Os profissionais envolvidos necessitam conhecer esse trabalhador para que, a partir daí, haja a “implementação de políticas de reinserção social dos libertados

da condição de trabalho escravo” conforme estabelece a ação programática “g” do

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Devido à relevância e ao impacto que o tema em questão suscita, a Igreja Católica Apostólica Romana lançou, no ano de 2014, a Campanha da Fraternidade com o tema “Fraternidade e Tráfico Humano”, sendo o tráfico para a exploração no trabalho uma das modalidades discutidas (CNBB, 2013, p. 13). A Igreja mantém a Pastoral da Terra, que lida com questões voltadas para a prevenção e o combate do trabalho escravo desde 1975.

Para atuar de forma efetiva nessa matéria, depende-se de uma compreensão sistêmica do problema, das suas causas e consequências, assim como dos diversos atores envolvidos nessa rede de combate e proteção.

Assim, os dados levantados e as ações descritas constituem pontos de partida para uma análise e um estudo mais aprofundado à luz da Psicodinâmica do Trabalho. Compreender a organização do trabalho, o sofrimento, as defesas e as patologias causadas pela escravidão contemporânea podem constituir importantes ferramentas para a escuta e ressignificação do sofrimento das vítimas dessa realidade.

2.2 A PSICODINÂMICA DO TRABALHO

"E é precisamente essa a finalidade da Psicodinâmica do Trabalho: tratar o trabalho enquanto atividade humana da qual se busca interpretar clinicamente as causas, os fracassos e as vitórias; reconhecer o que implica para o trabalho o fato de ser um trabalho vivo (Dejours, 2007, p. 13-14)" (AUGUSTO, 2011, p. 23).

Desenvolvida a partir dos estudos de Christophe Dejours em 1980, a Psicodinâmica do Trabalho, substituiu o conceito de Psicopatologia do Trabalho e pressupõe a possibilidade de agressão mental e sofrimento psíquico originados na organização do trabalho (MERLO; MENDES, 2009, p. 143). A trajetória da Psicopatologia do Trabalho rumo à Psicodinâmica do Trabalho está alicerçada em uma descoberta crucial, que consiste no reconhecimento da realidade das situações concretas, ou seja, a relação entre a organização do trabalho e o sujeito num contínuo movimento (DEJOURS, 2011a, p. 70).

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uma abordagem científica, de caráter clínico, cujo centro da investigação contempla o sofrimento e a normalidade no trabalho.

Ao longo do tempo, a Escola Dejouriana ampliou seu enfoque, transpondo as fronteiras dos estudos da dinâmica saúde-doença e procurando compreender as consequências das organizações e modelos de gestão do trabalho contemporâneo sobre o aparelho psíquico do trabalhador. A partir do avanço nas pesquisas, tornou-se uma abordagem autônoma com objeto, princípios, conceitos e métodos próprios.

A palavra "psicodinâmica" foi cunhada por Sigmund Freud a partir do termo grego dynamike, que significa ‘forte’ (MENDES; DUARTE, 2013, p. 14). A Dinâmica é um ramo da Física que procura compreender os movimentos de um corpo, suas causas e como a ação das forças pode produzi-los ou alterá-los. Segundo Ana Magnólia e Fernanda Sousa Duarte (2013, p.14), “Freud acreditava que havia uma energia psíquica que se transformava e se manifestava no comportamento,

sugerindo a existência de uma psicodinâmica”.

O foco da Psicodinâmica do Trabalho é compreender o que move psíquica e socialmente o sujeito no trabalho (MENDES; DUARTE, 2013, loc. cit.), os processos psíquicos existentes, a formação da sua identidade individual e social, o confronto entre seu mundo externo e interno, o sofrimento e o prazer no labor e a influência da organização do trabalho na sua qualidade de vida, saúde mental, desgaste e adoecimento (LANCMAN, 2011, pp. 41-42).

Uma grande contribuição desse modelo refere-se à investigação do sofrimento psíquico desde o estado pré-patológico, o que possibilita identificar as consequências das organizações do trabalho sobre o aparelho psíquico dos indivíduos a fim de buscar uma intervenção terapêutica precoce.

De acordo com Ferreira e Mendes (2003, p.37), a Psicodinâmica do Trabalho constitui uma teoria de base epistemológica nas ciências hermenêuticas, para as quais o conhecimento é construído a partir da interpretação do sentido dos fenômenos. Consiste numa teoria crítica do trabalho, pois envolve dimensões da construção e reconstrução das relações entre o trabalhador e a realidade concreta do trabalho.

Para Dejours (2009), a Psicodinâmica do Trabalho, denominada como disciplina clínica, apoia-se na descrição e no conhecimento das relações entre

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O ato de trabalhar” acontece, segundo as premissas teóricas da Psicodinâmica do Trabalho, quando da ação e mobilização subjetiva, ou seja, está além da mera execução de uma tarefa no mundo objetivo, pois envolve toda a subjetividade do trabalhador.

Assim, o trabalho envolve o sujeito além do tempo em que se encontra no trabalho, não podendo reduzir seu envolvimento em uma análise exclusivamente temporal.

Segundo Dejours (apud MOLINIER, p. 103):

Trabalhar – seja em uma atividade assalariada, seja em uma beneficente, doméstica ou profissional, manual ou de chefia, no setor público ou no privado, industrial ou de serviço, de agricultura ou de comércio -, trabalhar é mobilizar o seu corpo, a sua inteligência, a sua pessoa, para uma produção revestindo valor de uso.

Por meio do trabalho, o indivíduo transforma-se, ampliando sua competência e sua habilidade quando consegue progredir diante das dificuldades. A atividade adquire papel central na formação de sua identidade e de sua saúde mental (DEJOURS, 2009).

Esse sujeito , segundo a concepção da Psicodinâmica do Trabalho, não se restringe, em seu contexto de trabalho, ao sujeito político, social ou do inconsciente. Trata-se do indivíduo que também luta por sua saúde mental em um constante embate contra a loucura do trabalho, a doença mental e a patologia.

A Psicodinâmica do Trabalho busca especialmente os aspectos invisíveis, as relações subjetivas do trabalhador com sua atividade, com o sofrimento e o desgaste gerados pelo trabalho e os efeitos que ele tem sobre sua saúde física e mental.

Atenta-se para a desordem, a indeterminação (aquilo que não está dado, mas construído na fluidez das relações humanas) e a subjetividade (a atribuição de sentido a partir da vivência intra e interpsíquica). Dessa maneira, o essencial do trabalhar é fundamentalmente invisível.

O que importa é conseguir compreender como os trabalhadores mantêm um

“certo equilíbrio psíquico, mesmo estando submetidos a condições de trabalho desestruturantes” (MERLO; MENDES, 2009, p. 143). Daí a escolha dessa abordagem para o estudo da presente pesquisa.

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possibilitando a cooperação e o reconhecimento entre eles, sendo o trabalho também um lugar de relações sociais dirigidas por um conjunto de prescrições técnicas e éticas.

Ao final da década de 90, a Psicodinâmica do Trabalho consolidou-se como uma abordagem científica que vislumbra o trabalho como fator fundamental para a construção da identidade e a inclusão social (FREITAS, 2006).

O foco, desde então, tornou-se a subjetivação das vivências de prazer-sofrimento e o uso de estratégias defensivas contra as condições adversas. Seu objeto de estudo são as relações dinâmicas entre a organização do trabalho e a saúde mental, não se restringindo aos seus efeitos nocivos, mas abrangendo também as situações favoráveis à saúde (DEJOURS, 2007).

Estudos recentes têm tido um enfoque mais vasto considerando o trabalho como construtor da identidade. Destaca-se, nesse sentido, a dinâmica do reconhecimento, de mediação do prazer-sofrimento, as novas formas de organização do trabalho e seu impacto sobre as vivências. Constroem-se, assim, análises sobre a dialética entre prazer, reconhecimento e sofrimento, e uma compreensão do adoecimento e do não adoecimento no trabalho.

Portanto, a finalidade desta abordagem teórica metodológica é, precisamente, a de humanizar o trabalho, do qual se procura compreender as implicações, as causas, os fracassos e os avanços na vida das pessoas. A partir daí, possibilita-se aos trabalhadores a criação de um espaço de livre circulação da fala, que facilite uma ação coletiva de apropriação de sentido.

Tal ação viabilizaria o processo transformador, tanto dos sujeitos nas suas relações de sofrimento e prazer no ofício quanto da própria organização do trabalho.

2.2.1 Principais conceitos em Psicodinâmica do Trabalho

2.2.1.1 Organização do trabalho

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 Divisão técnica do trabalho - define o quê e o como as tarefas serão realizadas, qual a produtividade esperada, as regras formais, o tempo, os ritmos, os controles, os procedimentos, as ferramentas e as características das tarefas. Entendia-se que não era o homem que deveria se adaptar ao trabalho, mas o trabalho ao homem.

 Divisão social e hierárquica do trabalho - fixa as formas de comando e de coordenação, os níveis de responsabilidade, de autonomia e tudo o que envolve a avaliação do trabalho.

O termo organização do trabalho ganhou notoriedade quando passou a designar o modelo taylorista de organização baseado nos princípios da administração científica do trabalho. Posteriormente, esses princípios foram desenvolvidos também em outros modelos. Henry Ford os aplicou na indústria automobilística a partir da criação da esteira de produção. No Japão, a fábrica da marca Toyota desenvolveu um modelo específico que tem sido inspiração para outros países.

A flexibilização das relações de trabalho ganhou espaço frente à rigidez e a padronização na execução das tarefas. O taylorismo, o fordismo e o toyotismo não são as únicas formas de organização do trabalho pós-industrial, mas representam um referencial de destaque e influência no mundo empresarial.

O modo como o trabalho é organizado tem influência direta no horário que o empregado acorda, em sua forma de vestir-se, de falar, de agir e até de pensar. São apropriados não apenas seu tempo e sua movimentação como também sua subjetividade (ANJOS, 2013, p. 270).

A crescente valorização de modelos de gestão do trabalho dentro de um contexto neoliberal tem agravado a situação do trabalhador por meio da alienação e da exploração do sofrimento humano, objetos de estudo desta pesquisa.

De acordo com Dejours (apud ANJOS, 2013, p. 270), a organização do trabalho divide as tarefas e os homens, organizando-os subjetivamente por meio das vivências de prazer e de sofrimento, influenciando sua mobilização subjetiva e seu engajamento afetivo-emocional no compromisso com o ofício.

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É dividida em duas partes: o trabalho prescrito - corresponde ao que antecede a execução da tarefa como as normas, o tempo e o controle exigidos para o seu desempenho sendo, inclusive, motivo de reconhecimento ou de punição para quem não o cumpre - e o trabalho real - é o próprio momento de execução da atividade, a maneira desenvolvida para lidar com as situações reais, composta pelas interações entre os trabalhadores, com os recursos disponibilizados pela organização e os demais participantes do processo de trabalho.

Dejours (2011b) define trabalho como tudo aquilo que não está prescrito, já que a prescrição por si só não concretiza a tarefa, e sim a ação real do sujeito. É importante ressaltar o papel do trabalhador sem, contudo, menosprezar a importância do planejamento. A prescrição, no entanto, não prevê inúmeras dificuldades que podem surgir no cotidiano do trabalho, pois a realidade é muito mais complexa do que qualquer regra ou manual (ANJOS, 2013, p 271).

Pode-se considerar, à luz da Psicodinâmica do Trabalho, que a diferença entre o trabalho prescrito pela organização e as situações reais é o próprio conceito de trabalho. Na discrepância ou lacuna existente entre a prescrição e a realidade encontram-se as contradições, os conflitos, as incoerências e as inconsistências, ou seja, os constrangimentos que impõem dificuldades aos trabalhadores (COSTA, 2013b, p. 468) e que podem ser funcionais, caso mantenham a saúde mental do indivíduo, ou converter-se em patogênicos no caso oposto.

Pensar a organização do trabalho requer o afastamento da prescrição e a interpretação do real frente às dificuldades concretas, uma vez que a organização do trabalho apresenta uma série de contradições que incidem sobre a saúde psíquica dos trabalhadores.

2.2.1.2 Sofrimento, patologias e estratégias defensivas

O termo "sofrimento no trabalho" teve sua origem na Psicanálise quando Freud (1996), na obra intitulada “A Psicopatologia da Vida Cotidiana”, empregou o

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subjetiva intermediária entre a doença mental e o bem-estar psíquico (VASCONCELOS, 2013, p. 421).

Segundo Dejours, o sofrimento é inerente ao ato de trabalhar porque há um conflito central entre a organização do trabalho, com suas normas e prescrições, e o funcionamento psíquico, que é pautado pelo desejo. Assim, trabalhar consiste em deparar-se inevitavelmente com a experiência de sofrimento.

O campo da Psicodinâmica do Trabalho refere-se ao do sofrimento, com sua significação e suas formas, e ao do conteúdo, situando a investigação no contexto pré-patológico (MERLO; MENDES, 2009, p. 142). Assim, o sofrimento é um espaço clínico intermediário que marca a evolução de uma luta entre, de um lado, o funcionamento psíquico e o mecanismo de defesa e, de outro, as pressões organizacionais desestabilizantes.

A saúde mental, nesse contexto, coloca-se entre a patologia e a normalidade, ou seja, resulta do modo como os sujeitos-trabalhadores agem e reagem frente ao sofrimento originado dos constrangimentos impostos pela organização do trabalho.

O trabalhador, ao mesmo tempo, sofre e busca não sofrer com a experiência de fracasso decorrente da falibilidade humana frente ao trabalho real. Ele entra em contato com a imperfeição e com a falta, elementos indissociáveis do fazer, dada a condição permanente do trabalho, que será sempre inacabado. O sofrimento é um dos temas mais frequentes nas pesquisas que abordam aspectos subjetivos do trabalho.

Dependendo dos processos psicodinâmicos desenvolvidos, o sofrimento pode encaminhar-se para diferentes destinos. Um deles é a criação, a engenhosidade, situações em que o sofrimento se torna criativo, conduzindo à invenção de soluções para os constrangimentos vivenciados na organização do trabalho. Nesse caso, ele atua como um mobilizador para transformações, impulsionando para soluções que poderão beneficiar a própria organização do trabalho, além de contribuir para a realização pessoal do trabalhador.

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A mediação do sofrimento é composta por estratégias de defesa e de mobilização subjetiva, ou seja, para não adoecerem, os trabalhadores desenvolvem estratégias de defesa diante desse sofrimento (DEJOURS, 1992), um conjunto de condutas que possibilite a convivência com a dor, sendo esse o foco do presente estudo.

As defesas representam a forma e o destino dados ao sofrimento, configurando-se como o meio de acesso aos seus aspectos subjetivos e dinâmicos (DEJOURS, 2011a). As estratégias defensivas geralmente são inconscientes, individuais ou compartilhadas em grupos de trabalhadores, e se apresentam sob a forma, principalmente, da negação ou da racionalização.

Quando há negação o trabalhador não admite o próprio sofrimento. Já na racionalização, há uma suavização da angústia, do medo e da insegurança presentes no contexto de trabalho.

As estratégias de mobilização, em contrapartida, favorecem a saúde ao permitirem a ressignificação do sofrimento por meio da transformação das situações. A mobilização subjetiva consiste no processo pelo qual o sujeito pode (se) criar e (se) reinventar, vivenciando o sofrimento criativo e o prazer na atividade.

São modos de ação coletiva dos trabalhadores, que se operacionalizam a partir da criação de um espaço público de discussão e de cooperação, com vistas a eliminar o custo humano negativo do trabalho, a ressignificar o sofrimento e a transformar a organização, as condições e as relações socioprofissionais em fontes de prazer e de bem estar (FERREIRA; MENDES, 2003).

Para esses autores, o espaço público de discussão constitui-se no local onde o trabalhador expressa livremente os seus sentimentos em relação ao sofrimento vivido. Nesse espaço coletivo, a engenhosidade aparece, os indivíduos discutem formas de agir sobre o hiato entre o trabalho prescrito e o real e a inteligência prática ultrapassa a consciência que os agentes têm dela.

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Quando a organização do trabalho constitui uma fonte de exigências rígidas e estáveis passa, então, a inviabilizar a construção de estratégias defensivas. Aos trabalhadores resta a opção de se adaptarem ao trabalho, tornando-o apenas uma fonte de pressões patogênicas e um meio de sobrevivência.

Algumas pesquisas brasileiras que utilizaram a fundamentação teórica da Psicodinâmica do Trabalho identificaram, em quase 40% dos estudos, a menção ao uso de estratégias defensivas – individuais e coletivas – como meio de manutenção do equilíbrio, evitando o adoecimento.

As estratégias mais utilizadas segundo Mendes e Morrone (apud MORAES, 2013a, p. 156) foram: racionalização, negação, aceleração de cadências, uso de brincadeiras durante o trabalho, chegar antes do horário, optar por seguir ou não os scripts, criar expressões verbais, buscar apoio no coletivo de trabalho, embotamento afetivo, distanciamento do cliente, individualismo e passividade.

As estratégias defensivas individuais somente têm resultado em determinadas circunstâncias e até certo momento quando, então, perdem a eficácia na manutenção e sustentação da saúde do aparelho psíquico. Essas desempenham um papel considerável na adaptação do indivíduo ao sofrimento, mas pouco alcance na violência social. Nesse sentido, deve-se procurar desenvolver estratégias de modo coletivo a fim de ressignificar o sofrimento e amparar a saúde.

Deve-se estabelecer uma cooperação coletiva para conseguir lidar com o sofrimento infligido pela organização do trabalho: “as estratégias coletivas de defesa contribuem de maneira decisiva para a coesão do coletivo de trabalho, pois trabalhar não é apenas ter uma atividade, mas também viver: viver a experiência da pressão, viver em comum, enfrentar a resistência do real, construir o sentido do trabalho, da

situação e do sofrimento” (COSTA, 2013a, p. 378).

Embora o sofrimento seja uma vivência individual, os indivíduos podem estruturar estratégias coletivas que dependem do consenso do grupo para funcionarem como uma regra de conduta. Tais estratégias parecem ser mais eficazes do que as individuais, por contarem com a adesão e a força do coletivo de trabalho (MORAES, 2013a, p. 154).

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patologias psíquicas e/ou somáticas, caracterizando o sofrimento como patogênico (DEJOURS apud MORAES, 2013b, p. 417).

Diante desse cenário, tal sofrimento ganha espaço e multiplicam-se as novas patologias do trabalho, que possuem como agravante comum a solidão. Essas novas formas de sofrimento, classificadas como patologias de sobrecarga, do assédio, pós-traumáticas, depressões e suicídios, sinalizam que o sofrimento está sendo agravado nos contextos atuais de trabalho.

Nas últimas décadas o sofrimento nesses ambientes tem se agravado e se tornado patogênico. Mudanças relevantes no mundo empresarial têm conduzido à degradação das relações intersubjetivas e ao esfacelamento dos coletivos de trabalho. As novas formas de gestão relacionadas ao modo de acumulação flexível do capital e aliadas aos avanços tecnológicos, principalmente a partir dos anos de 1990, intensificaram o controle e a dominação no contexto laboral.

O uso do autoritarismo, as metas desmedidas, as avaliações injustas, a coação e a violência verbal por parte das chefias, a competição exacerbada e as fofocas e intrigas estão relacionadas à experiência do sofrimento que, se prolongada, pode conduzir a um quadro patogênico.

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3 MÉTODO

O método adotado na presente pesquisa é qualitativo com ênfase na fala do sujeito como matéria primordial para a análise. Baseia-se na Psicodinâmica do Trabalho não apenas como referencial teórico, mas também como método.

A metodologia stricto sensu da Psicodinâmica do Trabalho é a clínica do trabalho baseada no discurso do indivíduo, tornando possível expressar sua vivência e elaborar, de modo coletivo, uma reflexão sobre a relação entre prazer e sofrimento. Ressalta-se a importância do discurso como ação e da interpretação como instrumento de análise, favorecendo o ato de pensar como oportunidade de gerar transformações. Assim, a pesquisa tem caráter intervencionista podendo constituir-se como análise crítica da realidade para a construção de sentidos e alternativas de mudança.

Apesar da Psicodinâmica do Trabalho privilegiar o método científico da clínica do trabalho, não se torna restrita a ele. Ampliando as contribuições de Dejours (1980/1987), propõem-se algumas variações e adaptações diferentes da clínica do trabalho mantendo-se, porém, os princípios centrais da Psicodinâmica capazes de revelar o trabalho em toda a sua complexidade.

Desde 1994 vêm sendo utilizadas como técnicas para coleta de dados entrevistas semiestruturadas individuais e coletivas, e como técnicas de análise a análise dos núcleos de sentido (ANS), inspirada e adaptada a partir da análise de conteúdo categorial desenvolvida por Bardin na década de 1970 (apud MENDES, 2007, pp. 67-73).

O momento da entrevista é um processo no qual os vínculos são estabelecidos, pois à medida que o entrevistado fala o entrevistador, na sua escuta, envolve-se no discurso buscando apreender os conteúdos psicológicos latentes e manifestos, que se revelam nas verbalizações. Sem essa escuta não é possível investigar os elementos reveladores do latente encobertos pelos elementos falados.

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A entrevista semiestruturada coletiva foi realizada com os trabalhadores resgatados de situações de trabalho em condições análogas à de escravo, em dois contextos específicos, criando um espaço de discussão em consonância com os princípios da Psicodinâmica do Trabalho. Buscou-se, a partir da reflexão, tornar os sujeitos capazes de se reapropriarem de suas realidades laborais.

3.1 PARTICIPANTES E LOCAL

3.1.1 Participantes

Participaram deste estudo cinco trabalhadores resgatados do trabalho em condições análogas à de escravo sendo, destes, quatro homens e uma mulher, com idades médias de aproximadamente quarenta e seis anos, sendo a maioria analfabeta. Para conhecer melhor a amostra, traçou-se um perfil conforme tabela abaixo:

Tabela 4: perfil dos trabalhadores entrevistados resgatados da escravidão

Características E.1 E.2 E.3 E.4 E.5

Sexo F M M M M

Idade 46 42 38 43 60

Raça branca parda negra parda parda

Estado Civil casada solteiro casado solteiro solteiro

Naturalidade GO GO GO AL MG

Renda familiar < 1 sal. mín. 2 sal. mín. 2 sal. mín. R$ 1.100,00 R$ 1.200,00 Escolaridade analfabeta analfabeto 2ºgrau incompleto analfabeto 2ºgrau incompleto

Filhos 2 2 Não Não 2

Convivência

familiar Sim (esposo) Não Sim (esposa) Não Não Formação

profissional Não tem Não tem Não tem hidráulica marceneiro pedreiro carpinteiro Migrou para

trabalhar Sim Sim Sim Sim Sim

Trabalhou na

infância Não

desde os 10 anos desde os 12 anos desde os 12 anos desde os 10 anos Tempo de

escravidão 7 anos 4 anos 12 anos 2 anos 2 anos

Reincidência Sim Sim Sim Sim Sim

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Todos os trabalhadores da amostra já haviam passado por situações de escravidão anteriormente e a maioria tem histórico de trabalho infantil. Destaca-se o sujeito E.3, que trabalhou por doze anos em condições análogas à de escravo em uma pedreira do Estado de Goiás. Ele relatou que, em regra, saía de três em três meses, mas que houve período em que ficou até nove meses sozinho e sem poder retornar para a cidade.

3.1.2 Local

As entrevistas foram realizadas em dois contextos distintos, sendo um no Estado de Goiás com trabalhadores resgatados de uma pedreira da região, e outro no Estado do Mato Grosso com trabalhadores que atuavam em lavouras de cana-de-açúcar. A exposição dos locais será detalhada a fim de explicitar melhor a investigação.

3.1.2.1 Estado de Goiás

O contexto do trabalho escravo investigado no Estado de Goiás é caracterizado por uma pedreira situada a 40 Km de uma cidade, cujo nome será mantido em sigilo por questões de segurança. A atividade principal consistia em remover as pedras em seu tamanho original e quebrá-las em pedaços menores, com a finalidade de serem comercializadas em ambientes de hotelaria da região.

O Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, na pessoa de seu coordenador, foi acionado por meio de uma denúncia anônima ao Ministério Público do Trabalho, que em parceria foram averiguar sua veracidade, constatando a prática ilegal de trabalho escravo. Foi realizado o resgate e o encaminhamento dos trabalhadores a um abrigo da região para posteriormente serem conduzidos às suas residências.

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As entrevistas aconteceram dois meses após o resgate e foram intermediadas pelo coordenador do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas de Goiânia e sua equipe, que tem fornecido todo o apoio jurídico, assistencial e emocional a esses trabalhadores. Ocorreram em um fim de semana, sendo entrevistados dois no sábado e o terceiro no domingo.

3.1.2.2 Estado do Mato Grosso

O segundo contexto compreende o trabalho de corte de cana-de-açúcar em lavouras do Estado do Mato Grosso destinadas ao fornecimento para usinas de álcool. A entrevista coletiva ocorreu em uma sala da sede do Ministério do Trabalho e Emprego em Cuiabá, e foi agendada pela assistente social que acompanhou o processo de resgate dos entrevistados 4 e 5 (perfis especificados na Tabela 4).

Esses trabalhadores foram resgatados em 2012 sendo, posteriormente, convidados a participarem do Projeto Piloto - Ação Integrada, que é voltado para a qualificação e reinserção profissional de pessoas resgatadas do trabalho escravo e de trabalhadores em situação de vulnerabilidade no Mato Grosso.

O contato se deu por meio de um convite, em conjunto com o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT), para participar do

“Lançamento do Movimento Ação Integrada” e da “Oficina de Intercâmbio de Experiências para Implementação do Projeto Ação Integrada”, eventos ocorridos na capital do Estado.

O Movimento Ação Integrada busca criar condições e promover iniciativas que possibilitem a reinserção social, educacional e econômica dos trabalhadores resgatados e vulneráveis a condições análogas à escravidão. Os sujeitos 4 e 5 foram alguns dos pioneiros a integrarem o projeto.

3.2 INSTRUMENTOS

3.2.1 Análise Documental

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jurisprudências acerca do alcance do conceito de trabalho análogo à escravidão e das ações e programas do Governo Federal acerca do trabalho nessas condições.

Para isso, a investigação contou com o exame de estudos e pesquisas recentes realizadas no Brasil, a fim de permitir uma abordagem crítica da problemática.

Buscou-se, também, um panorama do conceito e da disciplina legal e judicial sobre o tema da escravidão contemporânea em solo brasileiro.

3.2.2 Entrevista Semiestruturada

Como instrumento de coleta de dados foram utilizadas entrevistas semiestruturadas, com perguntas abertas, conduzidas de acordo com o roteiro adaptado por Freitas (2006) em uma adequação da metodologia da Psicodinâmica do Trabalho, conforme Anexo I.

Os sujeitos participantes foram entrevistados por adesão livre e consentida. Foram devidamente esclarecidos a respeito dos riscos, das responsabilidades da pesquisa e do conceito da Psicodinâmica do Trabalho. O Anexo II apresenta o modelo do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que foi utilizado.

As entrevistas foram baseadas em quatro eixos temáticos principais: 1) organização do trabalho; 2) vivências de sofrimento no trabalho; 3) estratégias de mediação do sofrimento; e 4) principais patologias envolvidas nesse contexto e os possíveis impactos sobre a saúde desses trabalhadores.

Ressalta-se que esse modelo sofreu uma adaptação do modelo da clínica do trabalho proposto inicialmente por Dejours (1980/1987), no entanto manteve os princípios centrais da psicodinâmica, ou seja, é capaz de revelar o trabalho na sua complexidade, desvelando mediações, contradições e vivências subjetivas.

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Nesse momento foi explicitado o projeto de pesquisa (objetivos, metodologia e forma de apresentação dos resultados esperados) e realizada a leitura e a assinatura do Termo de Compromisso Livre e Esclarecido.

Mediante autorização prévia dos sujeitos-participantes, as entrevistas foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas na íntegra, considerando que a fala dos sujeitos, dado essencial para apreensão do objeto e para a interpretação dos dados, pudesse ser submetida à análise.

3.3 PROCEDIMENTOS PARA A COLETA DE DADOS

Os participantes da pesquisa do Estado de Goiás foram recrutados por meio de um convite telefônico, realizado pelo coordenador do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas de Goiânia para obter-se a aceitação e o apoio à realização da pesquisa, bem como a participação voluntária dos trabalhadores.

Os sujeitos participantes do Estado do Mato Grosso foram encaminhados para a entrevista coletiva pela assistente social do Projeto Ação Integrada. O contato se deu por meio telefônico e e-mail com agendamento das entrevistas na cidade de Cuiabá.

Desde o primeiro momento, buscou-se estabelecer um vínculo de confiança visando à prevenção de riscos, a garantia dos aspectos éticos da pesquisa no que se refere aos conteúdos discutidos coletivamente (os discursos manifestos individualmente, quando colocados em debate, passam a ser uma construção coletiva do grupo e, portanto, de responsabilidade de todos os participantes), às formas de expressão e ao respeito às manifestações de afetos, às mobilizações subjetivas e às expressões de sofrimento ou de prazer.

As entrevistas foram realizadas exclusivamente pela pesquisadora, com duração média de uma hora e meia a duas horas, sendo conduzidas de forma aberta e permitindo que os participantes expressassem livremente suas opiniões sobre os temas propostos.

3.4 ANÁLISE DOS DADOS

(41)

da interação do sujeito com o seu contexto de trabalho. A análise de conteúdo, segundo a autora, corresponde a um conjunto de técnicas de análises de comunicações cujo objetivo é fazer inferências sobre os conhecimentos que surgem com as mensagens. Assim, com a expressão do conteúdo manifesto, é possível iniciar o processo de análise.

A análise de conteúdo pode ser definida “como um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição das mensagens” (BARDIN, 1977, p.38).

Nessa lógica, trata-se de uma ferramenta muito eficaz para o processamento de dados científicos uma vez que possibilita, a partir de uma série de procedimentos especiais, captar o sentido simbólico de uma mensagem e entender os seus múltiplos significados.

O conteúdo das falas é analisado segundo as contradições e os paradoxos da linguagem, as negações de percepções, a verificação se os assuntos são objetos de discussão ou ocultação, a formação reativa, as falhas e a falta de comentários em relação ao tema abordado.

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4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

“Mesmo a dominação mais despótica que

conhecemos, o domínio do senhor sobre os escravos, que sempre o excederam em número, não se amparavam em meios superiores de coerção como tais, mas em uma organização superior de poder, isto é, na solidariedade organizada dos senhores. Homens sozinhos, sem outros para apoiá-los, nunca tiveram poder

suficiente para usar a violência com sucesso”

(ARENDT, 1994, p.40).

Este capítulo tem como finalidade apresentar a análise e a discussão dos dados coletados na pesquisa com base na teoria da Psicodinâmica do Trabalho. Para tanto, foram organizados em quatro categorias conforme os objetivos pretendidos. As descrições serão apresentadas ao longo do texto e exemplificadas com as verbalizações dos sujeitos, sendo discutidas em seguida.

A primeira categoria refere-se à organização do trabalho análogo à escravidão na qual estavam inseridos os indivíduos resgatados. Ressalta-se que o estudo trata de dois contextos específicos, sendo o primeiro relacionado à atividade em uma pedreira no Estado de Goiás e o segundo ao corte de cana-de-açúcar no Estado do Mato Grosso.

A segunda categoria indica os sentimentos relacionados às vivências de sofrimento psíquico dos trabalhadores que passaram por essa situação.

A terceira categoria mostra o processo de mediação do sofrimento nesses contextos.

Na quarta e última categoria destacam-se as patologias do trabalho em condições análogas à de escravo.

4.1 CATEGORIA: ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO

4.1.1 Descrição

Nessa categoria, apresenta-se a organização do trabalho análogo à escravidão nos seguintes elementos:

Imagem

Tabela 1: trabalhadores libertados da escravidão entre 1995/2005 por unidade da federação  Unidade  Federação  1995/  1997  1998  1999  2000  2001  2002  2003  2004  2005  Total  em %  1º  PA  254  132  383  280  527  1.392  1.888  928  1.219  7.003  37,44
Tabela 2: trabalhadores libertados da escravidão entre 2008 e 2013 por unidade da federação  Estado  2008  2009  2010  2011  2012  2013  TOTAL  em %  1º  PA  811  326  559  233  563  141  2633  14,07%  2º  MG  229  421  511  417  394  446  2418  12,92%  3º
Gráfico 2: localização dos resgates de trabalhadores submetidos à escravidão entre 1995 a 2006
Gráfico 3: atividades desenvolvidas por trabalhadores libertados da escravidão em fazendas
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Referências

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