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A Lingüística não se tem furtado ultimamente aos debates epistemológicos, conforme se pode verificar nas considerações teóricas e nos empreendimentos analíticos de inúmeros grupos de pesquisa. Há uma polarização inicial entre modelos aristotélico, de cariz essencialista, e o protopista, de natureza escalar. O primeiro modelo é, em geral, excluidor de variações, de zonas de fronteira ou cinzentas, em razão da dificuldade de enquadramento típico. O segundo, ao contrário, considera a possibilidade de referentes típicos, que constituem os pólos de escalas de manifestação. Assim, o comportamento dos entes de um dado fenômeno não é regido por uma matização binária simples, mas, a partir de um binarismo, percebem-se variações múltiplas, as quais, a bem do rigor descritivo, não podem ser ignoradas. Em suma, a fim de preservar a propriedade de fenômenos que se manifestam caleidoscopicamente, urge complexificar a abordagem, ou seja, os modelos de conhecimento devem obedecer à natureza do fenômeno, e não o contrário.

Em razão da observância da multiplicidade ou variação de comportamento dos fenômenos lingüísticos, muitos autores têm aderido a uma categorização científica não- aristotélica ou não exclusivamente tal, vide a citação abaixo de autores da lingüística cognitiva:

O assim chamado modelo clássico de categorias conceituais define-as em termos de um conjunto de traços necessários e suficientes. Os traços são necessários na medida em que nenhuma entidade que não possua o conjunto inteiro é um membro da categoria, e eles são suficientes na medida em que essa posse de todos os traços garante a filiação. (CROTT & CRUSE, 2004, p.76).11

Fundamentalmente, o problema pode ser enfocado, conforme dissemos, sob dois prismas: aristotélico e prototípico. Do ponto de vista da epistemologia, isto é, da forma de concepção de organização do conhecimento, essas duas perspectivas rivalizam-se por causa

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The so-called classical model of conceptual categories defines them in terms of a set of necessary and sufficient features. The features are necessary in that no entity that does not possess the full set is a member of the category, and they are sufficient in that possession of all the features guarantees membership. (CROT & CRUSE, 2004, p.76).

do tipo de categorização. Taylor (1989, pp.23-26)12 descreve os traços típicos da abordagem clássica, ou seja, da categorização aristotélica e a implicação de cada traço:

1. Categorias são definidas em termos de uma conjunção de características necessárias e suficientes. Implicação: “A lei de contradição declara que uma coisa não pode ao mesmo tempo ser e não ser, ela não pode possuir uma característica e não a possuir, ela não pode pertencer e não pertencer a uma categoria.”

2. Características são binárias.

Traços ou características são um problema de tudo ou nada. Ou uma característica está envolvida na definição de uma categoria, ou não está; uma entidade possui essa característica, ou não (23)”.

3. Categorias têm limites claros.

“Uma categoria, uma vez estabelecida, divide o universo em dois conjuntos de entidades – aquelas que são e as que não são. Não há casos ambíguos, nem entidades que ‘de algum modo’ ou ‘em alguma medida’ pertencem à categoria, se forem de outra natureza, não pertencem”.

4. Todos os membros da categoria têm estatuto equivalente.

“Qualquer entidade que exibe todas as características definitórias de uma categoria é um membro pleno dessa categoria; qualquer entidade que não exibe todas as características definitórias não é um membro. Não há graus de filiação a uma categoria, ou seja, não há entidades que sejam membros melhores da categoria do que outras”.

5. Características são primitivas.

“Fonemas são decompostos em características. Características, supõe-se, não são mais decomponíveis em elementos mais básicos da estrutura sonora. Características são os ‘constituintes últimos’, ‘os componentes atômicos’ da fonologia”.

6. Características são universais.

“Por isso se significa que as categorias fonêmicas ou fonológicas de todas as línguas humanas devem ser definidas em termos de características provindas de um acervo de características universais. O conjunto de características universais pode ser pensado como a caracterização das habilidades humanas de produção sonora. Reconhecidamente, a escolha de características a compor o conjunto universal tem sido uma questão controversa, e muitos fonólogos têm sentido necessidade de revisar os acervos existentes e propor seus próprios. Desacordo sobre a escolha de características, entretanto, não oculta o consenso geral concernente à exeqüibilidade e desiderato do objetivo ”.

7. Características são abstratas.

a. “O relato abstrato é preferido, porque permite ao lingüista fazer declarações econômicas sobre as relações entre categorias dentro de um sistema lingüístico”

b. “Relatos abstratos de sistemas sonoros não estão sujeitos à validação empírica, em qualquer sentido habitual do termo. A única evidência ‘empírica’ em seu favor é o fato de que eles parecem funcionar, o que significa dizer, eles tornam possíveis relatos elegantes e econômicos de uma gama ampla de fenômenos diversos”.

8. Características são inatas.

Essa propriedade se segue logicamente às precedentes. Se características são abstratas (i.e., elas portam apenas uma relação indireta com os fatos físicos da fala), e ao mesmo tempo são universais (ou seja, cada língua seleciona traços de um acervo fixo finito), e se, além disso, o lingüista atribui algum tipo de realidade psicológica às suas abstrações (i.e. o relato abstrato não é apenas um exercício de elegância formal, mas objetiva descrever, em algum sentido, aspectos de um conhecimento do falante sobre sua língua), o problema que se apresenta é como uma criança que adquire sua língua mãe pode vir a ganhar conhecimento de um conjunto de características peculiares à sua língua. (TAYLOR, J. 1992, p.23-28).

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É digno de nota observar que, nesta tese, a flexibilização categorial é aplicada predominantemente a formas, mas Taylor (1989) discute a aplicação de modelos não-aristotélicos para fenômenos de construções regulares, como, v.g., pode ser verificado em Nogueira (1999), que estuda a categoria da aposição, com base na percepção de que a referida categoria somente pode ser satisfatoriamente descrita com base em um feixe de traços e não com base em discreção pura.

Givón (1995) declara que a cognição humana lança mão tanto de expedientes embasados em procedimentos cognitivos racionais e proposicionais quanto de operações analógicas. Nesse caso, não se poderia, caso se concorde com essa perspectiva de definição da matriz do conhecimento, exigir respostas puramente racionais ou exclusivamente analógicas. O primeiro extremo produziu, em Lingüística, as aspirações da gramática de Port-Royal e do gerativismo, que, mutatis mutandis, se constitui sua versão contemporânea. São perspectivas que abraçam uma descrição muito rígida porque, epistemologicamente, seu intuito mor é prover a teoria com princípios ou regras constitutivas capazes de discrecionar, de forma teórico-dedutiva, atualizações nos mais diferentes sistemas lingüísticos. Já as operações analógicas podem nos levar a um labirinto sem fio de Ariadne desde que as conexões ou interseções entre os entes não obedeçam a limites categoriais de pretensão generalista ou universal. Noutros termos, o excesso de analogismo nos conduziria a um percurso associativista infinito, o que, igualmente, não sustentaria a operacionalidade de qualquer conhecimento.

A fim de sanar eventuais impasses gerados por posturas excessivas, convém ter em mente uma visão do conhecimento científico que não lide estritamente com elementos discretos, nos moldes herdados da lógica platônico-aristotélica, nem aposte em uma explosão total dessa categorização. A esse respeito, partilhamos do mesmo ponto de vista de Givón (1995, p.12), que afirma que “tanto a categorialidade quanto a não- discretude têm sido sempre ingredientes necessários na representação e na comunicação da experiência – no contexto apropriado”13.

Por outro lado, o mesmo autor considera que a não-discretude e a gradualidade, isto é, modos de categorização que não se fundam em dicotomias ou dialéticas de contrários excludentes, são fundamentais para a ereção de qualquer forma de categorização mais condizente com a natureza numênica e fenomênica:

Não-discretude e gradualidade são necessários porque:

Razões pelas quais categorias naturais devem conter uma margem de flexibilidade:

a) processamento dependente de contexto não pode começar/acontecer sem alguma flexibilidade e gradualidade ao se construir e ajustar interpretações ao contexto relevante; b) aprendizagem e extensão diacrônica de categorias não podem acontecer sem gradualidade

sombreada.14

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(...) both categoriality and non-discreteness have always been necessary ingredients in the representation and communication of experience – in the appropriate context. (1995, p.12)

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Non-discreteness and graduality are needed because:

O contexto mais apropriado para não-discretude é assim o de nova aprendizagem, mudança diacrônica e extensão analógica. Esses processos dependem sobremaneira da analogia e da

similaridade, que são, em princípio, não discretas e logicamente ilimitadas15[grifo nosso].

A reivindicação de uma abordagem teórico-metodológica distinta da discreção herdada do aristotelismo não é absoluta. Significa dizer que não se pode simplesmente substituir a discretude pela gradualidade categorial. A esse respeito Givón (1995) declara:16

Razões pelas quais categorias naturais devem conter rigidez considerável:

a) processamento mental sem limites de tempo real não podem ocorrer sem tal rigidez; b) muito do processamento rápido está/é automatizado, e assim depende pesadamente de

módulos de processamento neurológico on-off.

Ao dirigir essas considerações de caráter cognitivo-epistemológico para o funcionamento da gramática, Givón (1995) afirma17:

O equilíbrio entre processamento automatizado (mais categorial) e atento (mais contextual e flexível) é um tanto quanto de um domínio específico, mas é atestado na gramática, na ativação léxico-semântica e no reconhecimento da forma de palavras. Não-discretude na língua não é assim uma alternativa para categorias discretas, mas muito mais seu complemento em um

sistema complexo e híbrido [grifo nosso]. (1995, p. 13)

Entende-se, destarte, que se, de um lado, não se deve depositar muito crédito em teses muito rígidas, não se deve, de outro lado, ignorar a possibilidade de erigir teses mais estruturais. A estruturação não deve padecer de rigidez excessiva. Há a admissão de que a língua apresenta formas e funções sedimentadas, mas esse assentamento não se dá de modo regular, pleno de correspondências ordeiras entre as diferentes componentes da língua. Não houvesse a discreção, não seria possível referir a escalaridade. A escalaridade aparece nas zonas de interseção, nas acomodações oriundas de constantes mudanças dos sistemas lingüísticos. A discreção é possível em razão do uso reiterado de relações entre formas e funções, que não obedecem a regramentos simétricos, em razão de incidirem processos analógicos per si refratários a princípios constitutivos inteiramente regrados. De todo modo, o

a) context-dependent processing cannot proceed without some flexibility and graduality in construing and adjusting interpretations to the relevant context.

b) Learning and diachronic extension of categories cannot proceed without shaded graduality. (p.13)

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The context most appropriate to non-discreteness is thus that of new learning, diachronic change and analogical extension. These processes depend heavily on analogy and similarity, which are in principle non- discrete and logically unconstrained.

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But equally, some categorial rigidity is indispensable, because: Reasons why natural categories must retain considerable rigidity:

a) mental processing within realistic time constraints cannot proceed without such rigidity;

b) much of rapid processing is automated, and thus depends heavily on rigid on-off neurological processing modules.

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The balance between automated (more categorial) and attended (more contextual and flexible) processing is somewhat domain-specific, but is attested in grammar, lexical-semantic activation and word-form recognition. Non-discreteness in language is thus not an alternative to discrete categories, but rather its complement in a complex hybrid system. (1995:13)

que comanda tais relações entre formas e funções semânticas, sintáticas, lexicais e fonológicas é o uso dos falantes de um dado sistema.

Além do referido autor, citemos ainda o seguinte trecho de Croft & Cruse (2004, p.77) ao propor o modelo de prototipia da estruturação categorial, o que se dá por meio da proposição da categoria de centralidade graduada:

Nem todos os membros de uma categoria têm o mesmo estatuto dentro da categoria. As pessoas têm intuições que alguns membros da categoria são exemplos melhores da categoria do que outros. Membros que são julgados ser os melhores exemplos de uma categoria podem ser considerados os mais centrais da categoria. Tem havido considerável quantidade de trabalho experimental por psicólogos cognitivistas a respeito da noção de Otimidade-do- exemplar18. (CROFT & CRUSE, 2004, p.77).

Isso significa dizer que não se pode pôr por terra inteiramente o sistema de classificação tradicional, o qual já se encontra discretizado por automatismo, em que não se leva em consideração categorias discretas rígidas organizadas por uma parametrização coerente. A tradição representa o triunfo desse automatismo pela recorrência e pela freqüência de um dado tipo de categorização. Noutros termos, houve uma testagem relativa entre os responsáveis pelo erguimento de categorias, que proveram as categorias hoje reconhecidas como pronominais19. A nosso ver, há uma razão para esse estado de coisas consagrado pela tradição gramatical, a qual será discutida mais detidamente no capítulo 320. Resta declarar, no entanto, que em um período pré-NGB houve muita diversidade terminológica e taxionômica entre os gramáticos de língua portuguesa. O que não invalida por inteiro o que declaramos vez que, a despeito das diferenças, é possível evidenciar identidades profundas entre os diversos membros da tradição gramaticológica de língua portuguesa e, de um modo geral,ocidental. Não vamos, contudo, nos estender muito a respeito das considerações relativas à tradição gramaticológica, porque o trabalho adquiriria uma orientação divergente da que nos interessa.

Bidermann (2001) parece concordar com esse ponto de vista, embora assuma uma linha de problematização diferente, não cognitiva ou epistemológica de forma declarada, ao enunciar:

Em suma, nenhuma das propostas modernas que foram aqui consideradas revelou-se ideal no tratamento da classificação dos elementos do léxico. Parece que não encontraremos tão

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Not all members of a category have the same status within the category. People have intuitions that some category members are better examples of the category than others. Members that are judged to be the best examples of a category can be considered to be the most central in the category. There has been a considerable amount of experimental work by cognitive psychologists on the notion of Goodness-of-Exemplar. (CROFT & CRUSE, 2004, p.77).

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O nosso experimento, em termos cognitivos, é cotejar os gramáticos e lingüistas, porque a categorização da classe remanescente representa a escolha de categorias ótimas, ou assim consideradas.

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Convém assinalar que a noção de centralidade nos será cara ao discutirmos o estatuto de protótipo das proformas para os pronomes, e, dentro da classe das proformas pronominais, das proformas substantivais como os mais típicos exemplos de expressão de proformalidade.

facilmente uma solução válida para enquadrar todos os aspectos heterogêneos da classificatória gramatical do léxico. (2001, p.299).

Eis o motivo pelo qual não consideramos sensato desvencilhar-se inteiramente da contribuição nomenclatural e conceitual da tradição, conquanto lhe falte maior explicitude teórica e generalidade das categorias empregadas para explicar a identidade e a natureza de cada classe21.

O reconhecimento das formas pronominais é automático, porque a tradição se incumbiu de incutir a identificação das formas, ainda que a categorização não tenha sofrido um rigoroso processo de depuração teórico-metodológica. Noutros termos, os gramáticos souberam como sedimentar e aparelhar o ensino das categorias, ainda que imperfeitas, provavelmente porque as formas foram agrupadas por traços relativamente comuns ou lateralmente comuns. Os pronomes, em especial, espelham esse hibridismo in extremis. A classe comporta formas com funções as mais diversas entre si e com funções que não lhes são privativas, isto é, com funções que também se aplicam a outras classes. Para efeito de ilustração introdutória, sob a denominação de pronome, encontramos as formas pessoais e os conectores relacionais. Os primeiros designam as pessoas do discurso, ao passo que os últimos designam termos referidos e, simultaneamente, atuam como elementos de junção interoracional ou intraoracional. A habitualmente combatida definição (para muitos, combalida e escusada de uso), de pronome como termo substitutivo do nome, pode se estender aos nomes e a sintagmas nominais. Então, a crítica já corriqueira que se faz é que tais formas também poderiam, a se observar estritamente o que diz a definição, ser classificadas como pronominais (MONTEIRO, 1994).

Em sendo assim, aparentemente, não seria possível definir a classe, porque ela seria um balaio ou um guarda-chuva, em que se abrigam formas e funções de natureza muito diversa. No entanto, essa destruição da categorização habitual somente será reclamada por uma descrição categorial demasiado aristotélica, que não se valha de analogias minimamente, nem tampouco considere relevante o legado da tradição. As noções normalmente avocadas para discrecionar a classe dita pronominal de dêixis, de pessoa, gênero neutro, genericidade ou a propriedade de substituir nomes não responderiam a contento pela configuração da classe. Supomos, contudo, que a avocação desses traços para a configuração da classe tem uma razão de ser, conquanto não aparente, em termos categoriais aristotélicos, ser inteiramente coerente.

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À ausência de considerações teóricas mais claras Perini (1999:18) denominou de Doutrina da Gramática Implícita (DGImp).

Neste trabalho, conforme já enunciamos, propomos uma nova categoria a qual, presume-se, será capaz de elucidar parte significativa dos impasses referentes à classe pronominal e aos mecanismos e procedimentos disponíveis na língua para seu funcionamento, inclusive uma teorização acerca da irrupção de novas formas. Essa categoria está subordinada a injunções de ordem pragmática, semântica e morfossintática.

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