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2. Por uma teoria de classes de palavras

2.1. Da palavra ao morfema

2.1.1. O morfema

As dificuldades decorrentes dos estudos de segmentação mórfica resultaram, então, na substituição do foco de análise da palavra para o morfema. A análise centrou fogo na sintaxe intralexical, ou seja, no estudo do comportamento das partes do vocábulo. Conforme a descrição de Rosa (2000), surgiram três modelos de análise morfológica, com base em unidades intralexicais mais abstratas, aspirantes a prover os estudos com maior rigor, a saber: o modelo palavra e paradigma; o modelo item e arranjo; e o modelo item e processo.

Sumariamente, o primeiro modelo não discriminava os elementos mórficos, ou seja, não havia a segmentação intralexical característica dos estudos estruturalistas novecentistas.

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Referimo-nos a determinadas expressões adverbiais ou preposicionais, que, graficamente, segmentam-se em alguns casos e não se segmentam em outros: embaixo – em cima; depressa – de repente. Naturalmente, o arbítrio dessas decisões de segmentação se reflete por hiper- ou hipossegmentação entre os aprendizes da modalidade escrita. Essas dificuldades e impasses de segmentação, aparentemente surpreendentes para avaliadores ortodoxos, sofreram muita oscilação no decurso da história da língua escrita de língua portuguesa. Os exemplos acima, fruto de arbítrios desprovidos de um princípio geral regulador, são prova do que afirmamos.

Valendo-nos do exemplo das entradas dicionariais gregas para as formas verbais e nominais. Entre os verbos, a forma modelar, a partir da qual se orienta o consulente, é a primeira do singular do presente do indicativo. Ao seu lado, acostam-se as formas do futuro, do aoristo e do perfeito. Entre os nomes, a forma modelar é a nominativa singular, juntamente com a genitiva singular. Elas funcionam como espécies de lexemas, sem haver preocupação minuciosa de discriminar os morfemas flexionais que se acrescem a bases lexicais verbais ou nominais. Por esse motivo, abundam as listas. A GT recorre a esse modelo ainda hoje, conquanto não de modo exclusivo.

No segundo modelo, Item e Arranjo, as unidades mínimas obedecem a um padrão geral de disposição intralexical. Esse padrão discrimina a organização da sintaxe intralexical com base na adjunção de morfemas flexionais ao morfema lexical. As unidades mínimas são os morfemas que se identificam por meio da substituição ou comutação. O cruzamento do eixo das sucessões com o eixo das equivalências, isto é, o eixo sintagmático com o paradigmático, permite a identificação das formas e das funções mórficas mínimas. Esse expediente se coaduna perfeitamente com a perspectiva estruturalista de que o sistema funcional se rege por meio de oposições estruturais. Vai ao encontro, portanto, da própria noção de valeur, de Saussure. O contraste, por conseguinte, entre as formas é determinante para a verificação do estatuto de cada morfema. Suas identidades e diferenças dentro de cada vocábulo determinam sua identificação morfêmica.

O terceiro modelo, Item e Processo, compõe uma análise mais abstrata, por meio da qual as lacunas das lexias são teoricamente sanadas por meio de procedimentos abstratos de regularização. Desse modo, as formas teóricas suprem as eventuais insuficiências morfológicas concretas. O contraste digno de nota é que no modelo anterior, Item e Arranjo, recorre-se muito mais a formas correntes, isto é, às lexias, ao passo que, no modelo Item e Processo, as formas mais abstratas são validadas, ou seja, os lexemas. As lexias, neste modelo, são explicadas à luz de processos de regularização, conforme supradissemos. As lexias, as ocorrências portadoras de afixos derivacionais e flexionais, são transformações ou manifestações da multiface concreta do lexema abstrato.

2.1.1.1. A definição de morfema e os seus tipos

O morfema, entre os lingüistas novecentistas, passou a representar a unidade mínima de análise mórfica. Sua definição fundamental conjuga forma e sentido irredutíveis e a sua

combinatória intralexical. Contudo, a delimitação das unidades mínimas não transcorre sem percalços, de tal modo que os morfólogos, de qualquer perspectiva, não distinguem sempre nitidamente o âmbito morfológico e o sintático. Biderman (2001, p.133) conceitua-o assim: “(...) uma seqüência fonológica recorrente tendo um significado constante.” Ressalte-se que tal seqüência deve ser abstrata, porque, concretamente, os morfemas podem ser variações, que respondem pelo fenômeno da alomorfia.

Fundamentalmente, os morfemas se bipartem em radicais e afixos. Os primeiros, considera-se, pertencem a um inventário aberto, por portarem significado lexical, e os últimos a um mais restrito, por portarem significado mais gramatical. A tipologia de morfemas para a definição do comportamento dos constituintes da sintaxe intralexical varia conforme o autor. Podem ser agrupados da seguinte maneira: aditivos (radicais, afixos em geral (prefixos, sufixos, infixos, circunfixos); reduplicativo (muito comum no fenômeno conhecido como redobro em grego e latim, em determinadas formas verbais do pretérito); alternativos ou suprafixos (alteração da qualidade ou quantidade de vogais ou consoantes, com mudança de acento ou de tom), respondem pelos fenômenos incidentes em português da apofonia (alteração da vogal de um dado radical em razão do prefixo) e da metafonia (alteração do timbre da vogal do radical em formações de feminino e de plural)142; cumulativos, representados por morfemas que codificam mais de uma categoria simultaneamente, como os sufixos verbais de segunda pessoa do pretérito perfeito, que indicam as categorias número- pessoais e modo-temporais; zero, uma noção que não tem acolhida unânime entre os lingüistas, em razão de pressupor, no caso da análise do estatuto das vogais dos nomes masculinos (o,e), uma definição de gênero imanente que desconsidera a possibilidade de desinência de gênero para os substantivos masculinos. O zero também seria criticável por transformar-se em um dispositivo vulgarizado por explicar toda e qualquer potencialidade de formação mórfica não atualizada na superfície lingüística; subtrativos: são morfemas que sofrem uma perda fônica para marcar uma oposição funcional.

Naturalmente, o funcionamento dos morfemas para atender à conceituação de Biderman (2001) não é simples, porque, mesmo em uma língua flexiva143 como o português,

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A metafonia também pode ser classificada como um morfema redundante, isto é, ela pode indicar mudança de gênero ou número nominal juntamente com determinantes marcadores de gênero e desinências de gênero (quando for o caso).

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Convém mencionar o que Camara Jr declara a respeito dos sufixos flexionais: “(...) os sufixos flexionais são em número relativamente pequenos em português. Acrescentemos que só se encontram entre os nomes e os verbos, a rigor”. Com efeito, não há em português, terminações específicas regulares para assinalar outras classes de palavra. Conforme expomos no capítulo 3, seção 3.4., os nomes e os verbos e seus correlatos proformais estão sujeitos aos mecanismos de formação derivacional ou flexional, ao passo que as demais

os morfemas não guardam relações forma-função rígida, a não ser, arriscamo-nos a declarar, entre as formas verbais, em que parcela de suas categorias são expressas por morfemas gramaticais muito estáveis, se contrastados com os morfemas gramaticais das formas nominais. Referimo-nos aos morfemas indicativos de tempo, modo, número e pessoa, não os de voz e aspecto (não expressos tão bem definidamente em português, como, por exemplo, em grego, latim ou esperanto, principalmente no tocante aos morfemas marcadores de voz). Essa discussão, contudo, será retomada aquando da definição das macroclasses no capítulo seguinte.

Estamos, certamente, deixando de mencionar problemas teóricos referentes a essas noções, mas nosso trabalho não pretende vistoriar e inventariar, de modo minudente, as teorias morfológicas, a não ser que no que compita à área que nos interessa para nossa propositura teórica fundamental. Ademais, em concordância plena com Rosa (2000, p.69):

O redimensionamento do conceito de morfema significou retirar dele o papel central na análise morfológica. Na busca de explicação para a competência lexical (grifo da autora) dos falantes, o que passa a ser necessário não é o estabelecimento de listas de elementos mínimos, mas a resposta a questões acerca de que palavras os falantes podem formar, que tipos de palavras, novas ou antigas na língua, são capazes de analisar, que relações estabelecem no âmbito do vocabulário. (2000, p.69)

A principal crítica reside na exigência, na morfologia lingüística novecentista clássica, de uma relação biunívoca entre forma e sentido entre os morfemas. Assim, a suposição original de que para cada morfema flexional haveria uma contraparte de significado foi abaulada severamente. Essa relação, conforme já mencionamos, é assimétrica em nível lexical, com a concepção tradicional clássica de palavra intuitiva e pré-teórica, mas em nível intralexical igualmente. Para efeito de ilustração, basta pensar em qualquer categoria nominal e verbal, cuja expressão semântica não é exclusiva de morfemas flexionais ou categoriais, ou ainda derivacionais. Por exemplo, para expressar noções modais, a língua portuguesa não provê apenas a categoria do modo verbal, expressa cumulativamente ou não por determinadas desinências ou sufixos verbais. Outro exemplo, para indicar a primeira pessoa, em português, há os sufixos pessoais verbais: o (amo); i (amei); e (ame); ø (amava, amara, etc)144. Assim, o

proformas, em razão de seu estatuto de gramaticalidade maior, ainda que pleriformas, não apresentam alteração mórfica regida pelas formações derivacionais ou flexionais nem referência extralingüística.

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Naturalmente essa classificação poderia sofrer ainda questionamentos. Por exemplo, por que não houve inclusão do ‘e’ da terminação da forma ‘amei’, se é privativa dos verbos da primeira conjugação? Em lugar de se classificar o ‘e’ como alomorfe da vogal temática, ele poderia ser classificado como parte constituinte da desinência número-pessoal de primeira pessoa do pretérito perfeito privativa dos verbos da 1ª conjugação. Poderia ainda ser questionado o estatuto de desinência número-pessoal do ‘e’ do subjuntivo, o qual serviria tão somente para indicar as desinências modo-temporais. No entanto, a contra-argumentar, se são morfemas privativos de tempo e modo da 1ª conjugação, como não lhes imputar mais de uma classificação? Mais, se as

paradigma da primeira pessoa apresenta várias expressões mórficas. Por outro lado, uma mesma expressão mórfica pode ter diversas funções, como o sufixo verbal –ste, que cumula a indicação da 2ª pessoa do singular, do pretérito perfeito, do modo indicativo. Uma mesma forma pode manifestar ainda diferenças derivacionais ou flexionais, como no caso de derrube. Nesse caso, ressalte-se, há uma alteração paradigmática, porque não se trata da mesma classe de palavra. Nessa forma, o –e final pode ser uma vogal temática nominal (formação deverbal) ou uma desinência número-pessoa e modo-temporal cumulativamente da forma verbal do presente do subjuntivo.

Essa assimetria complexa na relação entre as formas e suas funções, levou os morfólogos a proporem novas categorias para explicar o seu comportamento heterogêneo. Os morfemas passaram a ser bipartidos em formativos e expoentes (ROSA, 2000, p.71). Os formativos respondem pelo comportamento formal, as alterações fonológicas relativas às raízes e afixos. Os expoentes respondem pela estrutura semântica distinguidora de raízes e categorias gramaticais.

Ao fim e ao cabo, essas problematizações reabilitaram as discussões relativas à palavra, a ponto de surgir uma distinção da morfologia centrada na palavra ou lexema, e uma outra fundada em morfemas (constituintes intralexicais).

Essas noções basilares vão suster considerações sobre as classes a seguir e, principalmente, sobre as proformas em geral e a categoria que lhe dá sustentação, a proformalidade.

2.1.1.2.Morfema e morfe

Cabe ainda uma diferenciação entre unidades puramente morfológicas mais abstratas e sua atualização lexical. Os morfes correspondem à contraparte atualizada e podem compactar- se em uma única unidade morfológica. Assim, por exemplo, nas formas contratas de preposição e artigo, no, pelo, há uma juntura fonética que gera a impressão de uma única forma, como em (8), ou a sobreposição de dois morfemas em um, como em (9):

(8) - Pelo o que o senhor falou, a informação tecnológica não tem só um valor científico, tem também um valor econômico.

(9) Um dia meu pai não teve condições de ir à reunião e eu fui representá-lo. (Brasil/Oral)

classificações se ajustam às conceituações e aos dados lingüísticos analisados, torna-se difícil restringir a tipificação a um quadro restrito.

Biderman (2001, p.130) conceitua morfes como “variantes mórficas, ou alomorfes, do mesmo morfema.” E conclui, em seguida, a respeito da relação entre morfemas e morfes: “Estamos considerando, portanto, a noção de morfema como um conceito teórico que se manifesta concretamente na forma de morfes.”

Essa distinção é cabível no quadro geral dos estudos estruturalistas, que, a propósito, sugeriu distinções êmicas e éticas para as componentes lingüísticas, como semema, tagmema e mesmo para signos extralingüísticos, como gustema, comportamentema, ou movimentema, conforme nos instrui Crystal (1973, p.186). Trata-se de uma correlação assídua, ao se investigar um dado fenômeno, entre uma noção mais geral, mais sistêmica e abstrata, uma noção, portanto, êmica; em confronto com sua correlata noção mais específica, plural e concreta, portanto, ética.

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