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2. Por uma teoria de classes de palavras

2.3. Os níveis de análise como parâmetro ou critério distintivo das

2.3.4. O critério da produtividade

A discussão pertinente à produtividade já foi principiada na seção anterior. Ela se radica em uma maior ou menor cobrança designativa ou apelativa. Nesse sentido, naturalmente, os itens lexicais referidores de entes de qualquer mundo possível, exceto a metalinguagem, surgem em ritmo muito mais célere do que os formativos constituintes do que se concebe como gramática ou estrutura gramatical. Então, a produtividade a que se faz alusão aqui diz respeito à verbigeratividade, ou seja, ao surgimento de novos itens lexicais. Assim, o léxico, em sentido estrito, é mais produtivo, ou seja, mais verbigerante, do que a gramática, em sentido estrito, vez que o rearranjo dos dispositivos gramaticais é muito lento e raro, embora não inexistente.

Reside nessa bipartição a suposição de um campo de significação característico do léxico e outro da gramática. Os significados podem ser bipartidos, fundamentalmente, em dois tipos, os que referem qualquer entidade identificável por meio de uma imagem ou passíveis de ostensão (designação direta em uma possível situação comunicativa, ou seja, entes que apresentam concretude no mundo extramental), e os que referem entes desprovidos das propriedades semânticas mencionadas. Os primeiros são usualmente reconhecidos como signos lingüísticos portadores de significado lexical, os quais também são denominados de morfemas lexicais (MARTINET,1983). Os últimos são elementos morfológicos que, em última instância de realização, não encontram sequer sobrevivência referencial isoladamente.

Por outras palavras, são mais abstratos uma vez que sua pronúncia isoladamente não é, na maioria dos casos, possível. Observemos a contribuição de Jakobson (1970):

Apesar da existência de algumas formações de transição ou limítrofes, há na língua, nítida e definida, uma discriminação entre estas duas classes de conceitos – materiais e de relação – ou, em termos mais técnicos, entre seu aspecto lexical e seu aspecto gramatical. O lingüista deve ser fiel a esta dicotomia estrutural objetiva e traduzir cabalmente em sua metalinguagem técnica os conceitos gramaticais de fato existentes numa dada língua, sem impor quaisquer categorias arbitrárias ou estranhas à língua observada. (JAKOBSON, 1970, p.66)

Importa ressaltar ainda, a respeito dos morfemas gramaticais, que eles são identificados por meio de contrastes funcionais com os demais. Por fim, conforme já dissemos na seção 1, a propósito da distinção léxico-gramática, a gramaticalização, em estágio avançado ou não, não se incompatibiliza com processos alternativos de referência por meios de morfemas lexicais. A rigor, eles convivem nos sistemas lingüísticos de qualquer língua natural. À guisa de ilustração, em português, a expressão do superlativo pode ser codificada por meio de afixos (prefixos ou sufixos) e por meio da repetição lexical169.

Entre os lingüistas contemporâneos, o principal advogado da bipartição do léxico em uma dupla estruturação é Martinet (1983). Essas duas grandes vigas são intituladas de articulações da linguagem. A primeira articulação tem estatuto referencial pleno e apresenta, em virtude dessa maior representatividade referencial (potencial e real), um caráter aberto. Isso porque os referentes estão sujeitos a mudanças, ou ainda novos referentes, em uma civilização tecnologicamente inventiva como a nossa, estão constantemente a aparecer, demandando, destarte, novas designações lingüísticas. A segunda articulação da linguagem não estaria sujeita às mesmas pressões de mudança, em virtude disso seus itens constituintes teriam um caráter de fixidez ou estabilidade formal e semântica muito maior do que os da primeira articulação. Seus itens não teriam contraparte referencial do mesmo estatuto dos itens da primeira articulação. Assim, v.g., os fonemas não manifestam seu significado isoladamente, não podendo, em razão disso, referir (instaurar a identificação de um dado ente) ou compor significado em termos equivalentes aos de um nome ou um verbo.

Macambira (1981, p.22) também deposita algum crédito na produtividade para distinguir macroclasses de palavras em dois grandes grupos, um sistema aberto e um fechado:

Chama-se aberto, porque o número das palavras é ilimitado e tende a crescer no decorrer do tempo. Ao sistema aberto pertencem as quatro classes seguintes: o substantivo, o adjetivo, o verbo e o advérbio nominal, que de quando em quando agasalham novo termo.

Supõe, por conseguinte, que a produtividade seja privativa dessas quatro classes.

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A fim de analisar exemplos em abundância, vide o dicionário de gramaticalizações de Heine & Kuteva (2002).

Chama-se fechado, porque o número das palavras não tende a crescer, mas antes a se conservar como era no tempo de Pedro Álvares Cabral. Ao sistema fechado pertencem as sete classes seguintes: o artigo, o numeral, o pronome, o advérbio pronominal, a preposição, a conjunção e a interjeição. (1981, p.23)

É interessante chamar atenção para a bipartição das formas adverbiais em nominais e pronominais.

Subjacente a essa bipartição está a compreensão de que a língua apresenta um sistema motivado pela abertura referencial e um fechado por referir significados gramaticais. Por outras palavras, supõe-se que há uma demarcação nítida entre o significado referencial e o significado gramatical. Nem sempre, contudo, é fácil, parece-nos, provar que tal assertiva é verdadeira, ainda que também creiamos na sustentabilidade e operacionalidade dessa diferenciação.

Macambira (1981, p.24) adita um comentário interessante quanto à freqüência de ocorrência dos dois grandes grupos de palavras da língua:

Embora numericamente inferior, o sistema fechado ocorre porém com maior freqüência do que o sistema aberto. As preposições em, de, a, por exemplo, encontram-se, em geral, mais freqüentes em qualquer trecho do que um substantivo, adjetivo ou verbo qualquer.

Esse comentário nos será caro, visto que vai ao encontro de nossa tese de que a generalização semântica decorre exatamente de uma espécie de usança acentuada. Não nos parece casual que as preposições mencionadas pelo autor não sejam as preposições acidentais, cujo caráter preposicional ainda se encontra em vias de assentamento. Diferentemente, as preposições citadas são formas antigas da língua, daí a sua plurivalência semântica, que, acresça-se, é mais abstrata e estritamente intralingüística (a não ser em usos marcados, como personagens apologéticos ou nominalizações metalingüísticas).

De modo que nos parece mais refinado, Rosa (2000, p.89) procura definir a produtividade com base na Regra de Formação de Palavras (doravante, RFP), porque a morfologia opera com virtualidades lexicais, as quais seriam previsíveis, em termos relativos. Nesses termos, tenta delimitar o âmbito do léxico e da gramática. Já discutimos em 1.1.1.2. que teóricos experimentados nem sempre demarcam com nitidez as fronteiras entre léxico e gramática. Para esse mister, a derivação ora é incluída no léxico, ora na gramática. No caso de Rosa (2000), inclui-se a derivação no âmbito do léxico, por julgar que a produtividade diz respeito às palavras de inventário aberto. Optamos, contudo, pela sua inclusão na gramática, em razão de apresentar regularidade relativa. O que entendemos por regularidade relativa é que as categorias nominais e as particularidades semânticas expressas por afixos apresentam relativa estabilidade. Assim, à guisa de ilustração, supondo-se que os afixos derivacionais

teriam, eles também, seus elementos prototípicos. Por exemplo, em termos prototípicos, isto é, como itens identificados como os melhores exemplares da subclasse de afixos derivacionais, o sufixo –dade formaria itens lexicais referidores de qualidade abstrata e o sufixo –ense comporia os adjetivos pátrios ou gentílicos. Naturalmente, tais afixos não evitam que outros afixos expressem as mesmas noções, mas eles configuram tipos, possivelmente pelo maior grau de incidência. Por exemplo, a concorrer com –dade, o sufixo –eza, com –ense, os sufixos -eiro, -ano, entre outras formas inteiramente idiossincráticas.

Lyons (1975, p.436), a princípio, não desqualifica a distinção entre significado lexical e significado gramatical:

O primeiro ponto a perceber é que os itens lexicais são tradicionalmente tidos como portadores tanto de ‘significado lexical’ como ‘significado gramatical’ (tanto significado ‘material’ quanto ‘formal’). Para empregar a terminologia da escolástica, uma gramática ‘especulativa’: um item lexical particular, e.g., vaca, não apenas ´significa´um ´conceito´ particular (o significado ´material´, ou ´lexical´, do item em questão), mas ele significa de acordo com um ‘modo de significar’ particular, e.g., como uma ‘substância’, uma ‘qualidade’, uma ‘ação’, etc. Embora raramente os lingüistas refiram-se nesses termos atualmente, esta concepção geral da diferença entre o significado ‘lexical’ e ‘gramatical’ de itens lexicais é ainda corrente. Além disso, pareceria ter uma certa validade. (LYONS, 1975, p.436).170

Importa observar a suposição de que há traços semânticos extensionais marcadores de classe. Tal concepção corresponde à visão tradicionalista de partição das classes, a qual é abraçada abertamente tão somente pelos adeptos da gramática tradicional em sua vertente mais ortodoxa.

Percebe-se a admissão da distinção com restrições. Isso se deve ao fato de a sustentação da diferença não ser inteiramente corroborada pelas línguas naturais concretas. De algum modo, esse assunto já foi mencionado nesta tese, ao se discutir as diferenças de léxico e gramática. Lyons (1975, p.438) retoma a discussão nos seguintes termos:

Considera-se tradicionalmente que os itens lexicais têm tanto significado ‘lexical’ (‘material’) e ‘gramatical’ (‘formal’). Itens gramaticais são geralmente descritos como possundo apenas significado ‘gramatical’. Vimos que um certo número de itens que ocorrem na estrutura de superfície das sentenças como ‘verbos’ podem ser interpretados como a ‘realização lexical’ de distinções ‘gramaticais’ aspectuais, causativas e outras. Se essas sugestões estavam corretas ou não é uma questão que podemos deixar por um lado. No presente estado da teoria sintática, a distinção entre itens lexicais e gramaticais é de algum modo indeterminada. A razão é que a distinção entre conjuntos abertos e fechados de alternativos pode apenas ser aplicada com respeito às posições de ‘escolha’ na estrutura

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The first point to notice is that lexical items are traditionally said to have both ‘lexical’ and ‘grammatical meaning’ (both ‘material’ and ‘formal meaning’). To employ the terminology of scholastic, ‘speculative’ grammar: a particular lexical item, e.g., cow, not only ‘signifies’ a particular ‘concept’ (the ‘material’, or ‘lexical’, meaning of the item in question), but it does so according to a particular ‘mode of signifying’, e.g. as a ‘substance’, a ‘quality’, an ‘action’, etc. although linguists rarely express themselves in these terms nowadays, this general conception of the difference between the ‘lexical’ and ‘grammatical’ meaning of lexical items is still current. Moreover, it would seem to have a certain validity. (LYONS, 1975, p.436).

profunda das sentenças; e, como nós temos visto, há considerável espaço para desacordo em relação ao lugar em que essas posições de ‘escolha’ estão. (1975, p.438).171

É mister considerar que as posições de escolha em inglês são mais variadas que em português, que possui um sistema morfológico mais rico do que o inglês.

Finalmente, em termos absolutos, Lyons (1975) postula ser impraticável uma distinção essencial entre os dois tipos de significado:

O principal ponto que deve ser estabelecido aqui é que não parece existir diferença essencial entre o ‘tipo de significado’ associado com itens lexicais e o ‘tipo de significado’ associado com itens gramaticais naqueles casos em que a distinção entre esses dois tipos de classes de elementos de estrutura profunda pode ser firmada. As noções de ‘sentido’ e ‘referência’ são aplicáveis a ambos. Se existe qualquer generalização que possa ser feita sobre o significado de elementos gramaticais (e será lembrado que certos elementos ‘puramente gramaticais’ não têm significado), pareceria ser que ‘escolhas’ gramaticais têm a ver com noções gerais de referência espacial e temporal, causação, processo, individuação, etc(...) Entretanto, não podemos supor de antemão que tais noções, mesmo se forem claramente identificáveis, serão necessariamente ‘gramaticalizadas’, mais do que ‘lexicalizadas’, na estrutura de qualquer língua particular. (1975, p.438). 172

Inclina-se, ao menos em alguma medida, para uma visão de que a gramática está subsumida no léxico, e, por conseguinte, a gramaticalização poderia ser considerada um epifenômeno da lexicalização incidente de modo irregular nas diferentes línguas. Ou ainda de que procedimentos gramaticais ou lexicais concorrem para a expressão de funções gramaticais. Como se apresenta uma noção de fronteira, a opção do analista pode bandear para um ou outro lado da linha divisória ou de interseção dos pontos de controvérsia.

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