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2. Por uma teoria de classes de palavras

2.3. Os níveis de análise como parâmetro ou critério distintivo das

2.3.1. O critério da forma

Em primeiro lugar, pode-se declarar que o critério formal é o que mais se compatibiliza com os procedimentos da GT, vez que estúltima pode ser reconhecida como uma “técnica de descrição de formas” (NEVES:1987). Justifica-se, assim, o apreço maior da GT por descrever formas, não raro de forma abusivamente arbitrária.

O critério formal pressupõe a existência de categorias gramaticais. Isso porque ele conta com a variação, no caso dos nomes, de gênero, número, grau, caso (com ressalvas), e, no caso dos verbos, de tempo, modo, aspecto, voz, conjugação, número e pessoa. Naturalmente, a expressão dessas categorias não se dá, conforme já declaramos, de modo privativo, por intermédio de morfemas gramaticais. Há uma coincidência da expressão dessas categorias nominais e verbais por meio de recursos gramaticais e lexicais.

A partição da análise formal em classes e categorias não é nova. As classes são as clássicas partes do discurso, ao passo que as categorias correspondem aos acidentes. É interessante observar, por exemplo, a exposição clara dessa distinção em um de nossos gramáticos tradicionais de nomeada, Ribeiro (1893), que denomina o estudo das palavras de lexeologia, a qual se subdivide em taxeonomia, seção responsável pelo quadramento classes de palavras, e kampenomia ou ptoseonomia, seção responsável pelos acidentes gramaticais.

Os problemas aparecem em razão de não haver uma simetria perfeita na relação entre as palavras, seu significado e sua referência. Aí residem os velhos problemas relativos à homonímia e à polissemia, cuja resolução, em regra, depende do arbítrio do lexicólogo ou lexicógrafo. Há, portanto, termos que desempenham, com forma igual, funções morfossintáticas e morfossemânticas diferentes, como:

(19) a do intelectual e do filósofo, pois estes são obrigados, por dever do ofício, a opinarem sobre o assunto.

(20) Dia 19 de março, Dia de São José ( o patrono da Igreja) (...)

(21) Transferência directa ou indirecta de sangue ou seus derivados (plasma, glóbulos vermelhos ) de um indivíduo são ( dador ) para a circulação de um doente (receptor).

A mesma em forma é um verbo fletido, em (19), uma forma de tratamento, em (20), um adjetivo, em (21).

Uma mesma função pode abrigar termos de matriz morfológica diversa. Assim, verbos como cair e despencar pertencem ao mesmo campo semântico, e, eventualmente, a critério do

usuário da língua, poderiam concorrer para referir o mesmo estado de coisas. Ou expressões correlativas como as preposições como (22) e feito (23) concorrem para construir expressões comparativas. Assim, a assimetria torna porosa a fronteira formal entre as classes.

(22) (...) o vento soprava na minha cara, secando o suor, e por quase um segundo, outra vez, como quem de repente suspira ou pisca e segue em frente, veloz feito uma mariposa (...) (23) As vibrações foram reduzidas a níveis mínimos, pela aplicação de um peso de 500 gramas,

próximo à alavanca, entre outras medidas, cuja finalidade é agir como amortecedor de vibração.

A verificação da porosidade entre as classes também é comum no processo de derivação denominado conversão, ou, conforme a terminologia da gramática tradicional, derivação imprópria. O trânsito das formas de uma classe para outra, sem falar do discurso de menção, característico do conhecimento metalingüístico, é extremamente freqüente. Para efeito de sumária exemplificação, observemos as ocorrências a seguir, que são invenções nossas perfeitamente encontradiças nos usos correntes:

(24) Se assim, se o amanhã é incerto, por que não aproveitar este momento?. (Conversão de uma forma adverbial em substantivo);

(25) - O Sr. padre Natário está a falar sério? (Conversão de uma forma adjetival em advérbio modal);

(26) Considerado com o Pelé do antes da Guerra ( II Guerra Mundial ), Leónidas da Silva foi um dos mais brilhantes avançados-centro do futebol mundial. (nome próprio transformado em nome comum – antonomásia);

(27) O trabalho deles foi muito facilitado, porque, há coisa de um ano, veio uma brigada (...) (substantivo transformado em base de locução prepositiva);

(28) falou o leva-e-traz, com a cara mais lavada. (sentença substantivada);

(29) (...) uma mulher monstro ou uma mulher encantadora. (substantivo convertido em adjetivo).

Convém ressaltar que há processos mais freqüentes, inter-classe, processos intra-classe, como no caso da antonomásia. Há também processos mais elaborados e de deriva mais delongada, a exigir uma maturação temporal, como no caso das gramaticalizações.

Nosso principal propósito aqui é determinar ou identificar, entre as formas típicas de (macro) (sub) classes, as formas que refletem maior genericidade por meio de gramaticalizações mais ou menos consolidadas.

Não é, portanto, nosso intuito propor uma resolução integral e integrada159 de todos os problemas relativos às classes e às categorias.

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O que seria levar a cabo uma proposta de integração de componentes a partir dos usos, com o percurso pragmática ↔ gramática ↔ pragmática. Tal empreitada está para além das possibilidades e, quiçá, necessidades deste trabalho.

Não podemos, contudo, deixar de discorrer a respeito, porque, sem um quadro taxonômico mínimo das classes e das formas constituintes (em regra relacionado com a classificação da tradição gramatical, em virtude de apresentar, ao menos quanto às formas, homogeneidade maior do que as diversas propostas conflitantes e idiossincráticas de lingüistas160) não seria possível destacar a propensão da língua para eleger formas prototipicamente genéricas de cada classe, subclasse e morfemas intralexicais.

A definição da NGB para a configuração das classes também se embasa na variação formal. Há, portanto, dois grandes grupos de palavras: 1) palavras variáveis; 2) palavras invariáveis.

As primeiras estão sujeitas a variação de caráter derivacional ou flexional. A diferença fundamental residiria no grau de obrigatoriedade da ocorrência de afixos marcadores das classes. Se a obrigatoriedade não existe, trata-se de derivação. Se há, trata-se de flexão. Não há, porém, uma demarcação tão clara que permita uma identificação simples dos morfemas gramaticais geradores de derivação e de flexão. De todo modo, as palavras variáveis são aquelas a que se adjungem; se nomes, os afixos indicadores de gênero, número e grau; se verbos, os afixos indicadores de tempo, modo, pessoa, aspecto. Os afixos de caráter flexional indicariam processos mais genéricos e sedimentados da língua do que os afixos de caráter derivacional. Bem, com base nessa definição, o quadro ficaria da seguinte forma:

Categorias Palavras variáveis Palavras invariáveis

Gênero, número, grau Substantivo

Gênero, número, grau Adjetivo

Gênero, número, grau Pronome

Gênero, número Artigo

Gênero, número, grau Numeral

Tempo, modo, aspecto, voz, pessoa, número.

Verbo

Grau Advérbio Advérbio

Conjunção

Preposição

Quadro 16

Urge acrescer, antes de encetar a discussão sobre essa tipologia tradicional com base em modificações formais fundadas em categorias derivacionais e/ou flexionais, que essas mudanças formais não esgotam as considerações normalmente encontradas nos compêndios gramaticais sobre a morfologia das classes. Essas considerações, inicialmente, tratam do problema tipológico mais no âmbito do lexema do que das lexias. Ou seja, não vamos

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Isso não implica uma rendição acrítica à tradição e aos seus critérios e princípios, não raro inexistentes, de tipificação das classes e de descrição das categorias.

considerar os processos derivacionais das classes assim chamadas abertas por excelência, nomes e verbos161.

O comportamento das categorias em cada uma das classes obedece a especificidades que seguramente nos levariam além dos limites desta tese. A despeito dessa escusa, vamos tecer considerações sumárias sobre suas características.

O gênero dos substantivos é tema controverso. Para nós, contudo, interessa dizer que o consideramos, prototipicamente, uma categoria do âmbito flexional, por eleição dos substantivos alusivos a referentes sexuados como o parâmetro por excelência para a categorização da categoria. Desconsiderada essa visão, majoritariamente, a subclasse nominal dos substantivos somente pode ter seu gênero definido no âmbito sintático, porque não há, para a maioria dos substantivos, mudança de gênero com base na referência. A razão já foi apresentada por Camara Jr (1997, p.89), ao declarar que a imensa maioria dos entes não está sujeita à correlação gênero/sexo. Por outras palavras, a maior parte dos entes não pode ser sexuada, não contém em sua natureza sexualidade. Em virtude disso, as expressões referenciais que codificam tais referentes não indicam sexo e, portanto, não estão sujeitas à flexão. Não há, por exemplo, obrigatória mudança de gênero, o que seria a conditio sine qua non para assinalar o gênero substantival como flexional para substantivos como mesa ou armário, para os quais teríamos de, necessariamente, em caso de flexão, contar com as formas *meso e *armária. Nesses casos, o gênero é de cunho estritamente sintático, sem motivação de base referencial. De um modo geral, é assim que funciona.

Em português, com efeito, não há uma demarcação clara de gênero com base nas terminações dos nomes. Observe-se o quadro abaixo:

Demonstrativo da ausência de correlação entre terminações e gênero dos substantivos

Gênero Tema em –o Tema em –a Tema em –e

Feminino Tribo Casa Urbe

Masculino Ovo Poeta Orbe

Quadro 17

A ausência de uma regularidade entre a terminação e o gênero leva autores como Graça Rio-Torto (2001) a postular o caráter estritamente sintático do gênero em português.

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Não pretendemos, portanto, dar conta das especificidades de formação lexical substantival por afixação (prefixação, sufixação, parassíntese, conversão e regressão) ou composição (formações complexas ou compostas – aglutinadas ou justapostas), além de processos marginais como acronímia, empréstimos (xenismos ou barbarismos), hibridismos, abreviação, abreviatura e siglonimização; ou de formação lexical verbal, a distinguir questões relativas à conjugação (regularidade e irregularidade – defectividade, anomalia), formação dos tempos (tempos primitivos e derivados), distinção de formas nominais e verbais. Por conseguinte, os problemas de alomorfia e variação contingentes serão, explicitamente, suspensos para a discussão a ser tecida aqui, a não ser à guisa de ilustração de questão a ela pertinente. Em verdade, a complexidade de cada um desses temas, por si só, renderia teses em separado.

Não cremos, contudo, que essa linha de raciocínio seja sustentável de modo absoluto, porque há referentes para os quais a relação gênero gramatical/sexo é referendada pelo referente. Segundo Rocha (2000), o percentual de substantivos que admitem tal relação é minoritário, cerca de 5% do total dos substantivos da língua. De todo modo, não permite que represente uma regra categórica de funcionamento dessa categoria nominal, porque não se aplica à totalidade dos casos162. A confirmação da falibilidade da tese defendida por Graça Rio-Torto (2001) se verifica quando se levam em consideração ocorrências como as seguintes:

(30) E julgara Vasco por momentos que, ao expeli-la de tal modo das tenebrosas funduras onde a

monstra se aninhara,

(31) Ai, a sujeita é matreira!

(32) a este, João, é que fora pouco mimoso da graça de Deus. Quando veio ao mundo, redondo como as pane-las de Vale de Ladrões, vestido de velo de rato, benzeram-se. O crianço papeava como se estivesse a dar a alminha ao Criador.

Observe-se ainda o caso a seguir, em que um termo, usualmente empregue para designar entes reificados, é usado para assinalar um ser humano e, possivelmente por esse motivo, sofre a derivação de gênero substantival, contrariando a norma vigente:

(33) - O Pinto Porto! - acudiu-lhe a Judite. - Isso, minha filha, o Pinto Porto.. A minha falta de memória para nomes.. Ora, nem esse coiso, o Pinto Porto, arranjara alguma da...

Há casos, porém, que contraditam argumentação supraconstruída, porque o exemplo representa uma quebra do gênero sintático padrão com uma referência não humana:

(34) Dá assim à coisa e, quer dizer, aquela máquina vai aproveitar o trigo grado e o partido vai à parte. Aquela máquina (.. ) INQ Separa? INF separa o coiso.

É possível, contudo, que, por se tratar de uma expressão referencial anafórica de um substantivo de gênero sintático masculino – o trigo – a expressão genérica capture seu gênero. Observe-se mais um caso em que a forma em apreço funciona, cataforicamente, para indicar uma referência locativa:

(35) INQ1 E depois, ela dentro dessas tinas para onde é que se levava? INF Bem, bom, mesmo em cima de um carro. INQ1 Para onde? INF (.. ) Para o coiso, para o lagar (..). E depois lá no lagar...

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Eis a razão de termos considerado a categoria prototipicamente de caráter flexional, definido por meio da vizinhança, ou seja, o gênero dos substantivos é sintático. Contudo, os substantivos cujos referentes são sexuados quadram melhor como deriváveis, porque sofrem alteração de sua base em função da natureza do referente. Para esses, então, não conviria tipificá-los como variações flexionais, mas derivacionais. Por conseguinte, a terminação também sofreria alteração terminológica, não sendo mais considerada vogal temática, mas sim desinência ou sufixo nominal de gênero.

A expressão ‘o coiso’, novamente, estaria a copiar o gênero do substantivo para o qual aponta, vez que não se trata de referente sexuado. Assim, essa derivação de gênero de substantivos de referentes não sexuados complexifica a descrição, porque contraria os casos típicos de derivação de base sintática ou genérica. Por outro lado, a ausência de uma definição clara de terminação, em língua portuguesa, para assinalar o gênero com base ou não na referência, sempre gerou oscilações a respeito da escolha de um dado gênero. Em sendo assim, outrora, as palavras linguagem (36) e tribo (37) tinham gêneros diferentes dos prescritos atualmente:

(36) Ca, segundo o linguagem grego, foy composto este nome per duas partes de leteras, convem a saber, de "es" e de "elleos", que quer dizer bathalhador honrrado e acabado em força e em lide.

(37) Depois da morte de El-Rei Saul, o tribo de Judá seguiu as partes de David, e os outros onze tribos obedeceram e juraram por seu rei a Isboseth, filho herdeiro do rei defunto.

Agora, palavras como aguardente (38), agravante (39), poeta (40), sofrem oscilações entre os usuários da língua.

(38) Ia-me esquecendo o aguardente, ou rum, como eles chamam.

(39) " Mas ele está preso, com o agravante de ser oficial superior; apesar da boa conduta em toda a vida profissional, ele passa a ser considerado um criminoso ", disse Alencar.

(40) A poeta faz o seu trabalho, toma do vazio algumas palavras, e humildemente espera, mas não sabe bem o quê.

Essas ocorrências de gênero estritamente sobrecomum, segundo a GT, conquanto de fontes de gêneros textuais de natureza diversa – o que não deixa de contribuir para uma relativa generalidade a respeito do que vamos declarar –, ilustram que, quando se trata de referentes sexuados, há uma tendência a identificar os relativos ao sexo masculino com a terminação ‘o’ e os ao sexo feminino com a terminação ‘a’. Em sendo assim, o gênero dos substantivos não seria categoria de cunho estritamente sintático, pois a natureza do referente pode influir no comportamento do gênero. A definição do estatuto mórfico das ditas vogais temáticas substantivais se torna problemática, porque, entre esses casos, não são estritamente parte da base lexical para a formação de outras formas, mas indicam o gênero (confundido com sexo) dos referentes codificados163. De todo modo, a categoria do gênero não é inteiramente gramaticalizada, desde que se considerem esses morfemas desinências genéricas.

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Os casos de heteronímia (homem/mulher; bode/cabra; cavalo/égua), conforme a elucidativa exposição de Câmara Jr., não caracterizam derivação nem muito menos flexão, porque são bases léxicas de natureza diferente.

Isso porque a aposição de substantivos designadores de sexo – macho e fêmea – revela uma indicação, a se admitir a categoria como relacionada, nesses casos, explicitamente ao sexo, com bases puramente lexicais e não gramaticais. A aparição ou uso de casos como os listados abaixo com os termos macho e fêmea relaciona até mesmo sexualmente referentes humanos:

(41) Rita ainda teve forças pra pedir para o homem limpar o menino, ajeitar ele como pudesse ali mesmo pelo chão forrado de trapo, e lhe confirmar se ela tinha parido um menino macho a mais pra ganhar o mundo, ou uma mulher pra sofrer...

A indicação clara do sexo do referente parece não ser satisfeita com a terminação ou morfema intralexical de gênero dos substantivos codificadores de referentes sexuados.

A indicação do gênero dos substantivos de referentes sexuados apresenta ainda outros tipos de morfema além dos aditivos, os alternativos e os subtrativos. Os primeiros são metafonias e os últimos simplesmente supressões fônicas. Os exemplos abaixo esclarecem os casos minoritários de indicação mórfica do gênero de substantivos minoritários:

(42) avô – avó (43) réu – ré

Mas, a nosso ver, o mais apropriado seria admitir que o gênero dos substantivos é heterogêneo, isto é, não reclamar uma condição categorial universal estritamente derivacional ou flexional. Em sendo assim, a maior parte dos substantivos atende ao quesito da derivação sintaticamente definida. No entanto, os substantivos cujos referentes são sexuados admitem a flexão de gênero, mesmo para aqueles cujo gênero, conforme as imposições prescritivas da GT, seria uniforme independentemente da natureza do referente ser masculina ou feminina164.

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Rocha (1998, p.213-219) também aposta em uma solução híbrida para o problema do gênero dos substantivos. Distingue, em primeiro lugar, os substantivos de gênero imanente e os substantivos de referentes sexuados, tal como fizemos. Revela que a maioria dos substantivos se insere no tipo imanente, sem sexualidade. Em seguida, demonstra que, entre os substantivos de referente sexuado, não há morfema único definidor de uma regularidade absoluta. Além disso, acresce que os substantivos portadores de referente sexuado, por razões pragmáticas, nem sempre atualizam formas substantivais para ambos os sexos, como é o caso de patentes militares. Esses alomorfos atestariam, juntamente com as lacunas de formas de um dos gêneros, o caráter derivativo dos substantivos. Mas, logo a seguir, o autor reconhece nisso um caráter flexivo-derivacional. Estamos concordes, em razão da irregularidade e da opcionalidade, que o substantivo, em relação aos imanentes, sejam categorizados como parte de um processo derivacional. Estamos concordes também que há uma oscilação para a definição do gênero dos substantivos, mas não concordamos com a admissão de que os substantivos de referentes sexuados apresentem um caráter flexivo-derivacional pura e simplesmente. Finalmente, há os casos completamente alheios aos alomorfos, compondo formações inteiramente aleatórias dos morfemas de gênero, isto é, muito idiosincráticas ou uniusuais, tais como frade-freira; silfo-sílfide. Não se trata de amor à polêmica, mas admissão de que, para os referentes sexuados, é possível considerar as terminações o/a como desinências de gênero em razão da expectativa de regularidade, comprovada pelas ocorrências (30), (31) e (32). Como resultado, estamos de acordo com relação ao caráter flexivo-derivacional, mas o caráter derivacional é periférico. Ademais, as desinências o-a são o protótipo de morfemas de gênero substantival. Não raro, usuários infantis da língua questionam adultos sobre a propriedade de ‘fofura’ para designar bebês do sexo masculino. Essa propensão

A propensão da GT em considerar o gênero uma categoria do âmbito da flexão se deve, a nosso ver, à propensão dos estudiosos tradicionais de universalizar a categoria com base em um parâmetro antropocêntrico165. Com efeito, os seres animados, em especial os seres humanos, são sexuados. A referência privilegiada natural conferida aos seres humanos proveu a tradição com o entendimento de que o gênero seria uma categoria flexional, porque, entre os substantivos cujos radicais se mantêm para referentes de ambos os sexos, pode-se falar em flexão de gênero efetivamente (embora com morfemas concorrentes).

Essa compreensão pode ser radicada em um percurso já mencionado do mais concreto para o mais abstrato, sem que, contudo, os níveis mais elevados de abstração se despreguem inteiramente de noções dos níveis mais concretos. Em sendo assim, é compreensível que a morfologização do gênero tenha ocorrido, de modo assistemático, apenas para os substantivos sexuados, especialmente os referentes aos seres humanos. Essa morfologização ou sedimentação mórfica gera a expectativa de que haja regularidade entre todos os substantivos, constituindo um falseamento explicável à luz de uma descrição governada, a um só tempo, por parâmetros universalistas e antropocêntricos166.

Os substantivos apresentam outros problemas formais. Isto é, as categorias avocadas para explicar o seu enquadramento como classe não são simplesmente identificáveis porque não se encontram integralmente gramaticalizadas, isto é, morfologizadas. Aliás, a concorrência entre as formas gramaticalizadas e as formas lexicais para a expressão dessas categorias não poderia ser diferente, uma vez que as formas mais gramaticalizadas indicadoras de categorias de qualquer ordem, presume-se, em conformidade com nossas considerações introdutórias, surgiram de formas lexicais, as quais, por meio de abstratizações sucessivas,

revela a expectativa de regularidade que nos pode permitir a generalização para esse universo de substantivos com a aceitação da alomorfia para completar o quadro flexional de gênero. Porém, um trabalho interessante seria o cômputo rigoroso da produtividade de todos os morfemas indicadores de gênero entre os substantivos de referente sexuado, assim como uma varredura o mais possível exaustiva dos substantivos para os quais não há forma correlata por razões pragmáticas. A avaliação da lacunaridade do gênero dos substantivos de referentes sexuados permitiria a certificação do caráter periférico da derivacionalidade dos substantivos de referente sexuado. O autor, contudo, ao fim e ao cabo, opta pela flexi-derivação: “Gênero é, portanto, um mecanismo lingüístico complexo sobre o qual atuam Regras Sintáticas de Concordância, Regras Morfológicas de Derivação (sobre o substantivo) e Regras Morfológicas de Flexão (sobre o substantivo e sobre os determinantes)” (1998,p.219).

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A perspectiva antípoda desta é a da negação à subclasse substantival como um todo de qualquer vestígio de flexão, o que nos parece impróprio para o grupo minoritário de substantivos flectíveis em virtude da natureza do referente.

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Uma língua que conservasse uma parametrização formal/funcional bem definida entre os gêneros e os

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