• Nenhum resultado encontrado

Causalidade Simples vs Causalidade Complexa

No documento Teatro vs. game: o drama gamificado (páginas 134-144)

FASE 3: NARRATIVIDADE

2 Causalidade Simples vs Causalidade Complexa

Como já foi explicado, o gráfico da narrativa evoluía de acordo com duas coordenadas: (x) a passagem do tempo e (y) a pontuação de felicidade. Fixos neste eixo cartesiano, existiam “módulos de cenas” autônomos. Cada módulo apresentava uma situação fechada que culminava em um conflito ou impasse, próximo ao que, no teatro, entendemos como “nó dramático”.

A interatividade era liberada pelo software no auge do conflito que acontecia, a cada quatro minutos, mais ou menos, instigando o espectador a mudar o rumo dos acontecimentos. Pela prática, verificamos que esse era o menor período necessário para que uma situação capaz de estimular a ação dos interatores fosse instalada.

De acordo com suas escolhas diante dos conflitos apresentados, os “módulos de cenas” alinhavam-se e formavam uma narrativa. Assim, na relação entre o possível oferecido pela “programação dramática” e o imprevisto experimentado pelo público, nasciam os princípios poéticos do espetáculo. No depoimento de muitos espectadores, essa brincadeira era divertida e surpreendente no início, porém, tornava-se previsível no decorrer do tempo. Tentemos entender um pouco esses comentários.

Um dado módulo, que chamarei de “M1”, é atualizado pelos atores quando o “Placar de Felicidade” entra na faixa de “Euforia”. Nessa cena, P2 dança, conta piadas e ri histericamente; devido à restrição do espaço, sua agitação incomoda os outros personagens. Também eufóricos, devido à pontuação acima de 70 pontos, eles se exaltam e ofendem P2. Delineia-se um conflito entre os personagens. Nesse momento, a interatividade é liberada.

A seguir, temos o registro da apresentação realizada no dia 06/04/13, em que, diante dessa situação, os interatores acionam a função “Humilhar”.

Vemos que P1 e P3 executam a respectiva função, colocando o “chapéu de burro” na cabeça de P2; jogam objetos sobre ele; fotografam e riem de P2. Em reação, P2 vocifera de raiva dos personagens, e xinga o público por ter feito tal escolha.

Figura 24 – Desenvolvimento do “espetáculo-game”, P2 dança sozinho e conta piadas.

Figura 25 – Desenvolvimento do “espetáculo-game”, execução da função de sociabilidade

 

Figura 26 – Desenvolvimento do “espetáculo-game”, execução da função de sociabilidade

“Humilhar” acionada pelo público: P1 e P3 fotografam e riem de P2.

Figura 27 – Desenvolvimento do “espetáculo-game”, P2 reclama da função “Humilhar”

  Figura 28 – Desenvolvimento do “espetáculo-game”, P2 reage mostrando sinais de

agressividade.

Na Figura 28, vê-se, ao fundo, P1 limpando a sujeira que ele mesmo fez e P3 preparando-se para fazer um louvor à alegria. P2, no primeiro plano, não esconde sua raiva, advertindo que o público tomasse cuidado com suas próximas escolhas. O que aconteceria em seguida? Não era fácil prever, afinal, tudo dependeria do “Placar de Felicidade”.

A despeito da fragmentação do roteiro, o objetivo dos atores consistia em manter a linearidade de causa e efeito. Como já foi dito, não existia um modelo de ligação entre as cenas, por isso, eventualmente, fazia-se necessário improvisar pequenos diálogos. Desconsiderando essa margem de improvisação, é possível ilustrar a maneira como os “módulos de cenas” se alinhavam.

Chamei a situação inicial (em que P2 dança sozinho) de “M1”. Observemos as coordenadas desse módulo (x: 30-45 min; y: 70-100 pontos) e suponhamos que o “Placar de Felicidade” estivesse com 80 pontos.

Gráfico 5: “Programação dramática” do “espetáculo-game”, possibilidades sequenciais.

Diante das ofensas entre os personagens, o interator podia acionar qualquer uma das funções disponíveis, fosse para (a) amenizar, fosse para (b) intensificar o conflito.

Na tentativa de amenizar (a), o interator poderia ter acionado uma das funções positivas (“Desculpar”, “Relaxar” ou “Confraternizar”), mas qualquer uma delas faria subir a pontuação, afastando, então, o placar, da “Faixa de Plenitude”. Assim, nas novas circunstâncias, contraditoriamente, surgiriam conflitos ainda mais agressivos: em “M2”, no gráfico, P2 ficaria mais agitado e expansivo. No intuito de proteger suas privacidades, os outros personagens usariam fitas adesivas para delimitar fronteiras no exíguo espaço da “INCUBADORA”. Devido à diferença dos territórios, essa divisão levaria a ofensas ainda mais violentas do que as iniciais, até, enfim, desembocar em novo “nó dramático”.

100

70

30

y

15 min. 30 min. 45 min. 60 min.

x

Euforia

Plenitude

Depressão

M1 M2 M3 (a) (b)

Voltando à “M1”, no sentido oposto, a fim de intensificar o conflito (b), nessa apresentação, os interatores acionaram uma função negativa (“Humilhar”). Como também aconteceria no caso das outras funções negativas (“Brigar” e “Castigar”), a escolha levou a uma explosão de ânimos. Todavia, o placar voltou para a “Faixa de Plenitude”. Ora, pela regra estabelecida pelo jogo, com a pontuação nessa faixa, eles ficariam mais calmos e experimentariam o conforto coletivo: a convivência, portanto, voltou a ser pacífica e a violência iminente percebida na Figura 28 (P2 segurando um bastão) não se efetivou.

Assim sendo, nessa apresentação registrada, a função “Humilhar” eleita pelo público levou à “M3”, em que P1 fazia uma limpeza e dedetização no espaço e P2 sentia-se reconfortado. Um estado de mal-estar subjacente, contudo, faria com que P2 reclamasse da maneira como P1 estava organizando os objetos higienizados. Esse pequeno desentendimento conduziria a outro “nó dramático”, ainda que ameno, e a interatividade seria novamente liberada.

Quero mostrar que, escolhendo qualquer função, o público teria modificado o “Placar de Felicidade” e preparado o contexto para o evento seguinte. Todavia, o acionar de uma função negativa, como “Humilhar”, ao contrário do esperado, levou ao apaziguamento, e não ao incitamento do conflito. Esse era um paradoxo do jogo que gerava estranhamento e, sobretudo, surpresa.

No estudo de processos sistêmicos, Morin (1999) fala em “ecologia da ação”: “toda ação, desde que ela começa, desde que ela entra no mundo, entra num jogo de interações que a fazem muito rapidamente escapar de seu autor” (MORIN, 1999, p. 72). Assim, em “INCUBADORA versão final”, embora as ações fossem inicialmente categorizadas como positivas e negativas pelas regras do jogo, ao longo do espetáculo, elas desencadeavam processos inesperados e contraditórios. No “espetáculo-game”, positivo e negativo tinham, portanto, efeitos contingentes.

Se fosse dado outro exemplo em que, ao invés de 80 pontos, o placar estivesse com 100 pontos, ao acionar “Humilhar”, o placar continuaria na faixa de “Euforia”. Neste caso, a escolha poderia fazer eclodir situações agressivas.

A evolução do gráfico dependia de uma simultaneidade de fatores, razão pela qual entendíamos tratar-se de uma “causalidade complexa”. A despeito das variáveis, para o espectador mais atento, não demorava a ficar claro que, apesar de serem vários, todos os caminhos levavam ao colapso do sistema.

Todo o investimento da “programação dramática” conduzia os eventos para uma mesma “moral da estória” (ainda que apresentada por três desfechos distintos), a saber, a falência do modelo.

Nos registros que mostram o fim desse mesmo espetáculo, nota-se a bagunça de objetos no espaço, as fitas demarcando a divisão de territórios e o suor dos corpos encharcando os figurinos. P2 faz elogios públicos à boneca P4, e P3, por sua vez, mostra-se incomodado com essas demonstrações, impróprias, de afeto. Intolerante com esse suposto atentado ao pudor, P3 saca o revólver e atira em P2. P1 entra em pânico diante das circunstâncias. A interatividade é, então, liberada: que “função de sociabilidade” o público acionaria? “Brigar”, a fim de acirrar o conflito e, no calor da situação, permitir que P1 também fosse morto por P3? “Relaxar” ou “Confraternizar”, para dispersar a tensão do ambiente? “Humilhar”?

Figura 29 – Fim do espetáculo, P2 dança com P4 (boneca) e P3 dá sinais de incômodo.          

 

Figura 31: Fim do espetáculo, P3 mata P2.

  Figura 32 – Fim do espetáculo, P3 olha irritado para P1, que busca ajuda do público.

   

                                     

Figura 33 – Fim do espetáculo, P1 usa P4 (boneca) para se proteger de P3.

Nessa apresentação, o público escolheu a função “Brigar” e P1 também foi morto. O “espetáculo-game” acabou com um dos desfechos “Game Over”, abaixo da “Faixa de Plenitude”.

No documento Teatro vs. game: o drama gamificado (páginas 134-144)